APRENDENDO A... ...SER AVÔ |
Estou apresentando a vocês um livro que pretendo publicar em papel um dia, mas decidi primeiro ir lançando aqui no blog, assim que os capítulos fiquem revisados. Por isso será acrescentado um capítulo em cada publicação.
A ideia é, sempre que for lançar um capítulo novo, publicá-lo junto com os anteriores. Assim, ao final, teremos o livro completo na sequência que ele vai ser publicado.
Convido todos a lerem e postarem suas críticas nos comentários, pois assim vocês irão corrigindo os erros que, com certeza, os cometi aos montes.
O nome do livro é "Aprendendo a... ...ser avô" e esse aprendizado é um caminho que tem seus primeiros passos quando você é ainda criança. Por isso eu estou narrando todos os aprendizados pelos quais passei até chegar a ser avô.
Vocês terão contato com o "ser avô" mesmo, a partir do capítulo que receber esse título "... ser avô". Só a partir daí que conto as minhas experiências propriamente ditas, com esta função.
O chapéu escolhi como capa do livro porque meus netos tem um encanto muito grande com os chapéus, sobretudo esse da foto. Tenho foto com todos os meus netos, em momentos diferentes, com este chapéu na cabeça. Então, quando eles, os netos, virem a capa do livro, vão sentir que estou falado com eles mesmos.
Aos capítulos, então.
DEDICATÓRIA
Este livro eu dedico às pessoas que
me acompanharam nesta caminhada de aprendizado. Especialmente à minha
companheira de todas as horas, Cleide, que me proporcionou muitas alegrias e
conquistas na vida, sobretudo esses netos lindos e maravilhosos com quem tenho
o privilégio de conviver.
AGRADECIMENTO
São seis os personagens centrais deste
livro que, ao final das contas, serão aquelas pessoas que levarei para além da
vida. Lara, Vítor, Lucas, Davi, Caio e Laís, sem essa turma minha vida seria quase
insípida. Teria apenas o sabor deixado pelas pessoas que passaram por ela, mas
não teria a doçura que esses seres maravilhosos trouxeram.
SUMÁRIO
Apresentação
Introdução
... ser filho
... ser
namorado
... ser noivo
... ser marido
... ser pai
... ser sogro
... ser avô
... ser médico-avô
... ser juiz-avô
... ser
fonoaudiólogo-avô
... ser guia de
turismo-avô
... ser
advogado-avô
O sétimo
elemento
Epílogo
APRESENTAÇÃO
Quando decidi
que iria escrever um livro contando a experiência que venho tendo como avô, achei
bom informar isso aos seres que me possibilitaram viver tudo isso e a
receptividade foi das melhores. Um deles me sugeriu que escrevesse um livro
para cada neto, pois ele queria um livro exclusivo. Lógico que declinei do
convite, pois jamais seria capaz de tamanha tarefa. Cheguei até a considerar a
proposta, pois somente assim poderia garantir ocupação para os próximos dez
anos da minha vida. Seria uma maneira de viver agradáveis anos, rememorando as
experiências que passei com esses seres iluminados que trouxeram mais luz e
mais tempero para a minha vida.
Dez anos escrevendo
parece muito, mas é um tempo razoável, já que teria de escrever seis ou sete
livros simultaneamente. Estranho escrever seis ou sete livros simultâneos, mas não
seria possível escolher um dos netos para começar a empreitada. Logo, teria que
começar um livro para cada um dos seis ou sete netos e seria uma luta, até
conclui-los ao mesmo tempo.
Essa incapacidade “técnica” me levou a
escrever apenas um livro que pudesse refletir toda a minha vivência como avô e
tentar passar um pouco da minha experiência nesta área, de forma que todos
possam perceber o quanto a gente é capaz de encontrar a felicidade em seres tão
maravilhosos.
Decidido,
então, como seria o livro, fui buscar um nome que pudesse retratar com
fidelidade a experiência pela qual estou passando desde quando nasceu a minha
primeira neta, até o nascimento da sexta, passando por quatro netos entre a
mais velha e a mais nova, além da expectativa do sétimo neto, que, ao me lançar
nesta tarefa de avô-escritor, ainda não sabíamos o sexo, mas já estávamos
esperando esse bebê que deve completar uma família recém agregada à minha.
Pensei em
alguns títulos para o livro e me prendi mais naqueles que davam a impressão de
que eu estava sempre me preparando para alguma coisa. Pensei primeiro em algum
título que envolvesse a palavra estagiário, pois, desde que vim para esse mundo
eu me sinto um estagiário em alguma coisa, até desembocar no estágio de avô.
Abandonei essa ideia porque estagiário dá a impressão que se está começando uma
carreira e, se tem uma coisa que ser avô não é, é carreira. Não tem nada de
carreira nisso.
Descartado
estagiário, decidi, finalmente por aprender. Primeiro pensei em aprendiz, mas
isso daria noção também de uma função, o que não é. Fixei então em alguma coisa
que indica uma ação contínua, pois entrei nesta vida aprendendo e, com certeza,
sairei aprendendo. Então o nome do livro ficou “Aprendendo a...”. Durante o
livro vou desfilar todas as fases que passei na vida para conseguir o
privilégio e o direito de aprender a ser avô.
Durante a vida
temos que atuar em diversos palcos e em cada um deles a gente tem que viver
personagens diferentes que, dependendo da pessoa, a essência do personagem não
muda, mas o modo de atuar muda, e muito. Em cada um desses palcos o início é
puro aprendizado e, quando a gente já está se sentindo confortável no figurino,
vem outro palco e a gente tem que aprender tudo de novo. Alguns personagens
novos aproveitam as características dos anteriores, outros são totalmente
desgarrados do passado e, ao fim e ao cabo, no final da vida, você se torna uma
colagem de todos os personagens que você viveu ao longo dos anos. Acredito
piamente que o personagem que vivo hoje, de avô, seja o mais longo de todas as
interpretações que a vida me exige, por isso talvez mereça um livro.
É sobre isso,
então, que estou me propondo a escrever esses rabiscos. Talvez possa ajudar a
alguém, que ainda tem dúvida se ser avô é bom, a vencer esta barreira. Mas já
vou avisando de antemão que é necessário ter coragem para exercer este papel,
pois requer um pouco mais que disponibilidade. Requer uma dose de renúncia
bastante acentuada. Esse palco, às vezes, parece um campo minado, que todos
irão perceber até o final desses alfarrábios.
Boa leitura a
todos e, do fundo do meu coração, espero que todos gostem disso aqui.
INTRODUÇÃO
Numa noite
qualquer, eu e minha esposa estávamos já deitados, curtindo coisa como: um ao
outro, um programa de televisão ou atualizando as mensagens das redes sociais
quando, de repente, surgiu no celular da minha esposa, uma mensagem de áudio
que não era ninguém falando, mas sim o pulsar intenso de uma vida. Era a
gravação da batida do coração de alguém que já existia, mas ainda não sabíamos.
Mais um neto ou neta aparecendo no pedaço, pois naquele momento não sabíamos
sequer o sexo da criança.
Das várias
sensações que a vida nos permite sentir, aquela de ter a notícia de que teremos
mais um membro na família, sempre é a que mais nos causa o sentimento de
gratidão a Deus. Foi assim com meus filhos e é assim com cada um dos meus netos
e netas. Não foi diferente, então, com a notícia de que o sétimo estava vindo e
mais vivo do que nunca, como provavam as batidas fortes naquela mensagem de
áudio, que minha esposa recebeu naquela noite de dezembro de dois mil e
dezessete.
As pessoas que
me conheciam há mais tempo, quando me ouviam falar que tenho seis netos, logo
perguntavam se cada filho meu teve três filhos. Depois que começamos a falar
que estávamos “grávidos” de outro neto, o espanto era maior ainda. Quem estava
gravido? O filho mais velho ou o filho mais novo?
Entretanto,
quem é mais chegado a mim e à minha família, sabe que temos mais filhos que
aqueles que minha esposa deu à luz. São pessoas que vão sendo acrescentadas no
meu coração de pai e que se alojam sem pedir licença e viram filhos com a mesma intensidade daqueles que veio à
luz pela minha esposa. Essa agregação vai acontecendo de forma tão natural e
magistral que se torna impossível ficar alheio a ela. Veja essas histórias.
Na mesma época
que eu e minha esposa tivemos que mudar de cidade, para uma que ficava a três
mil quilômetros ao norte, nosso filho mais velho teve que mudar, por questão de
estudos, para uma cidade situada a mil e cem quilômetros ao sul. Somando os
dois deslocamentos, tem-se quatro mil e cem quilômetros como a distância que
nos separava de nosso filho mais velho. Como o curso era de seis anos, nos conformamos
de ficar durante todo esse tempo longe dele, vendo-o apenas em alguns dias do
ano, numa visita dele ou numa visita nossa. Não precisa falar que coração de
pai e mãe ficaram apertadinhos, sem saber o que o rebento estava passando por
lá. Muita oração e fé foram necessárias para esperar que tudo iria dar certo.
De vez em
quando íamos lá visitá-lo, minha esposa sozinha ou nós dois. Nessas ocasiões,
pouco a gente tinha contato com as pessoas do relacionamento do nosso filho
naquela cidade. Tudo o que sabíamos sobre as pessoas com as quais nosso filho
se relacionava por lá, era das narrativas que ele fazia. Sempre nos reportando
que era bem tratado, mas, sempre entendíamos isso como uma maneira de ele não
nos preocupar.
Por ocasião da
formatura do nosso filho, ficamos naquela cidade um tempo maior, propiciando a
ele a oportunidade de nos apresentar às famílias com as quais ele convivia.
Impressionante o que presenciamos nesses encontros. Declarações de profunda
consideração pelo nosso filho me fez perceber que durante todos aqueles anos,
ele foi acolhido por famílias naquela cidade que o fizeram se sentir em casa,
que acabou por fazê-lo sentir pouca falta da casa dos pais. Famílias que
adotaram pra valer meu filho, formaram uma rede de proteção tão fantástica, que
não é nenhum exagero falar que era o manto de Nossa Senhora que o estava
embrulhando naqueles seis longos anos. Junte-se a isso o apoio que um casal de
cunhados dispensou durante esse período, e tem-se o ambiente perfeito para que
o sofrimento de nosso filho fosse o mínimo possível. Aquele tempo que passamos
lá, para comemorar a formatura, foi determinante para eu entender que devia
tudo aquilo a alguém e precisaria fazer algo para retribuir tudo o que fizeram
para o meu filho mais velho.
Durante as
poucas visitas que nosso filho fazia em nossa cidade, foi construindo um rol de
amizades que, naquela ocasião, foi de uma importância fundamental e aquela
importância perdura até o momento atual, e frutificou. Eram tempos bicudos para
mim e não tinha condições de oferecer àquele jovem filho, que passava férias em
casa, nada além de atenção e carinho. Nesse contexto, faltava-lhe, por exemplo,
meios suficientes para frequentar os ambientes que os jovens frequentavam por aquelas
bandas. Os amigos conquistados naquela ocasião, até nesse quesito, decidiram
por ajudá-lo. Especialmente um deles.
Um desses
amigos, quando ninguém acreditava que ele se submeteria a isso, decidiu namorar
e tinha duas garotas que estavam a fim dele. Por questões desconhecidas, uma
das garotas conquistou o coração desse amigo do meu filho e eles começaram a
namorar. Como esse rapaz frequentava a nossa casa, era natural que sua namorada
também se aproximasse de nós. Essa garota vivia na nossa cidade, mas seus pais
moravam, e moram até hoje, em um estado do centro-oeste e, com isso, sempre a
notávamos triste, especialmente nas datas em que normalmente as famílias se
encontravam para celebrar. Era assim no dia das mães, no dia dos pais, natal,
ano novo etc. Em algum momento por essa época, atendendo a algum pedido,
decidimos que teríamos que adotar aquela garota. Assim conseguiríamos aplacar
um pouquinho da falta que ela sentia, de um pai e uma mãe, já que a distância
não a permitia tê-los por perto e, de quebra, ganharíamos uma filha, realizando
um sonho meu, já que, biologicamente, não havia conseguido isso.
Entendi a
chegada dessa menina em nossa família como uma grande oportunidade de retribuir
tudo aquilo que muitas famílias haviam feito por meu filho enquanto ele cursava
sua graduação. Encarei desta forma e achei que tinha isso como uma missão e me
preparei para dedicar a ela a mesma atenção que dedico aos outros filhos.
Então, o filho que recebeu um tratamento todo especial por uma gama imensa de
famílias em uma cidade distante, foi o mesmo que trouxe para o seio da nossa,
uma pessoa que nos proporcionou retribuir aquele tratamento que ele recebeu por
lá.
Essa menina que
chegou, acabou por ser nossa filha e nossa relação foi cheia de altos e baixos
naquele início de relacionamento, assim como é com todos os filhos, mas a gente
se curtiu de uma maneira muito especial e fomos aprendendo a gostar um do
outro. O nascimento da filha dessa moça foi o teste final desse relacionamento paternal
que nasceu no namoro daquele amigo do meu filho. A dúvida que me batia era
sobre a maneira como iria tratar a filha dessa moça, que viria a ser a minha
primeira neta. Será que a consideraria neta pra valer? Essa dúvida evaporou por
completo quando eu vi aquela menininha branquinha que acabara de nascer e,
mesmo passando por algum perrengue, por ter atrasado um pouco para vir ao mundo,
ainda assim aquele serzinho me conquistou de imediato. Ali completou a adoção
daquela menina dengosa que escolhemos como filha e assim estava aumentada a
nossa prole, com todas as consequências que isso pode acarretar. Uma
experiência das mais agradáveis que senti.
Então ficou
configurado assim, a filha teve um casal de filhos, o filho mais velho teve
dois filhos e o filho mais novo, outro casal de filhos. Somam, então, seis
netos. Mas eu disse anteriormente que ficamos “grávidos” de mais uma criança,
que não sabíamos ainda seu sexo, mas ouvimos seu coração pulsar forte.
Minha esposa é
Pedagoga, especializada em Orientação Educacional e, nessas condições,
trabalhou em uma escola pública de certa tradição e por lá conseguiu construir
um grupo de amigos bem interessante. Quando saiu daquela escola manteve os
contatos e hoje se tornou um grupo de pessoas que, de vez em quando, se reúnem
para se curtirem, jogar conversa fora e botar as fofocas em dia. Com isso, a
amizade entre elas foi crescendo e é até gostoso de vê-las assim.
Uma das pessoas
que trabalhava naquela escola e continua fazendo parte do grupo “dessas
meninas”, se tornou ainda mais especial para minha esposa. Na verdade, essa
menina lutou até que conquistou um lugar muito especial no coração da colega de
trabalho de outrora que, ao final, tornou-se uma relação de mãe e filha. A
necessidade dessa menina de ter uma mãe era premente.
Sua mãe faleceu
em consequência de complicações havidas na gravidez e no parto, deixando-a órfã
de mãe desde sempre e, com isso, não havia ainda experimentado a sensação que é
ter uma pessoa para chamar de mãe. Com a aproximação da minha esposa, essa
menina estava preenchendo uma lacuna muito significativa de sua vida. Depois de
uma infância, adolescência e juventude bem atribulada e cheia de oportunidades
que pudessem levá-la a caminhos não aconselháveis, essa menina, finalmente, se
tornou uma mulher cheia de qualidades, virtudes e esperanças, mas sempre com
aquele vazio de quem nunca teve o colo de uma mãe.
Nesse contexto,
essa menina se aproximou de nós, considerando minha esposa a mãe “escolhida”,
como ela mesma escreveu em seu trabalho de conclusão do mestrado. Seu pai, a
única pilastra que lhe havia dado sustentação desde quando nascera, ficou por
muitos anos sobre uma cama, requerendo cuidados especiais dela. Durante esse
tempo todo, apesar de o pai dela não reagir e interagir na medida esperada, ela
não descuidou um segundo sequer dele, mostrando sua índole de menina que se fez
forte e superou muitos obstáculos que lhe foram impostos ao longo da jornada.
Quando o pai
descansou, essa menina se agarrou mais ainda a nós e, depois de algum tempo,
passei a ocupar aos poucos um pedacinho daquele lugar de pai que ela sempre
trouxe em seu coração. Esse pedacinho, me faz muito orgulhoso e agradecido pela
deferência. Vale dizer, ganhei mais uma filha e, nessas ocasiões, não há nada a
fazer, senão agradecer a Deus por esse magnifico presente.
Então, essa
nova filha nos presenteou com a gravidez de mais uma criança que seria incluída
na nossa galeria de netos e, dali a alguns meses, se tudo acontecesse do jeito
que pensamos, estaria por aí correndo na frente e a gente correndo atrás, como faz
com todos eles que “poluem” a nossa casa e nossa vida, nos deixando cansados e
exauridos, mas felizes e agradecidos por descobrir, a cada dia, novos motivos
para nos sentirmos vivos. Assim é, que temos sete netos.
Cada um dos
netos que vai aparecendo apresenta características diferentes, interagem com a
gente de forma diferente, trata a gente de forma diferente e, com isso,
força-nos a buscar a todo dia uma nova maneira de viver o momento, pois, jamais
se aplica a um momento futuro a mesma coisa que se aplicou no momento passado.
Tenho a
felicidade de ter os netos todos morando na mesma cidade. Mais ainda, no mínimo
uma vez por semana eles estão todos juntos. Era de se supor que fossem todos
mais ou menos parecidos. Entretanto, são tão diferentes um do outro que, às
vezes, chego a pensar que eles são de galáxias diferentes.
Para se ter uma
ideia de como cada serzinho desses é diferente um do outro, percebam esse
detalhe: meus dois filhos casaram-se com duas irmãs. Cada um deles tiveram dois
filhos. O mais velho, dois homens e o mais novo, um homem e uma mulher. Então,
são quatro netos que são criados por pais que são dois irmãos e por mães que
também são duas irmãs. Na teoria, isso faria com que os quatro netos tivessem
comportamentos mais homogêneos, já que eles têm até o mesmo DNA. Mas não é
assim. Esses quatro netos são muito diferentes entre si. Os outros dois, que
completam os que já correm por aí, também tem suas características marcantes e
formam uma trupe de crianças que exige uma atenção fora do normal.
Quando a gente
é pai, a tendência é tentar pasteurizar a criação e, depois olhando para o
resultado se pergunta: criei todos da mesma maneira, como pode ter saído
pessoas tão diferentes? Essa pergunta não tem resposta, pois não é possível
mudar o resultado. Entretanto, é possível fazer os pequenos sofrerem um pouco
menos, entendendo que eles são diferentes e, portanto, precisam ser tratados
diferentes, não podem ter um tratamento pasteurizado. Como a gente, quando
percebe isso, já tem os filhos criados, só nos resta a oportunidade de usar
essa abordagem com os netos. Então, é com os netos que nos desdobramos para
tratar de forma individualizada e exclusiva. Por causa desse comportamento, as
pessoas têm a impressão que os avós mimam demais os netos.
Uma das atividades
que nos dá muito prazer é reunir, em um determinado dia da semana, todos em
nossa casa para almoçar. O ambiente que, normalmente é ocupado por mim e minha
esposa, fica “poluído” com quatorze pessoas. Quando se está preparando a
refeição, a minha esposa já procura fazer tipos diferentes de comida, a fim de
agradar a todos os netos. Na hora de preparar o prato para servir as crianças,
essa diferença também salta aos olhos. Não bastassem a comida ser diferente,
ainda é necessário colocá-las nos pratos de forma diferente. Por exemplo,
sempre que se faz um tipo de carne, para agradar aos netos, faz-se também
frango, pois alguns deles gostam mais de frango assado, normalmente coxinha da
asa. Acontece que dos três que gostam mais de frango, cada um gosta de forma
diferente. Um gosta de frango picado e os outros dois gosta da coxinha inteira.
Os que gostam da coxinha inteira, um as come com arroz e feijão, o outro come
apenas o frango. É claro que os avós procuram atender todos os gostos, pois a
maior satisfação que um avô tem, é ver seu neto satisfeito.
Veja, então,
como num simples almoço existem tantas variantes que nem sempre é possível para
os pais atenderem. Entretanto, os avós atendem. Isso é mimar demais esses
pequenos seres? Acho que não. Isso é somente dar o tratamento exigido por cada
um desses serezinhos maravilhosos que nos dão razão para a vida. Mas, como já
se disse por aí, isso cansa. Chega no fim do final da semana, os avós estão
exaustos. Mais que isso, os avós estão exauridos. Mas, se fosse possível
conseguir fotografar a alma dos avós nesse momento, seria a fotografia de um
sorriso.
PERSONAGENS
Antes de
começar, acho que é necessário descrever as pessoas que me levaram a considerar
a hipótese de escrever este livro. Vou tentar contextualizar aqui cada uma
dessas pessoas tão importantes na minha vida que, depois de suas existências
não consegui mais deixar de ter motivos para estar vivo para sempre. Sei que a
imortalidade é impossível, mas, escolhi viver de modo que possa estar para
sempre na memória dessas pessoas. Um dia, quando não estiver mais por aqui,
acho que eles terão muitas histórias para contar a seus filhos, netos e
bisnetos sobre como seu avô era. Se eu conseguir isso já terá valido a pena
viver.
A neta mais
velha – a desbravadora
Essa menina
nasceu numa fase da minha vida que estava passando por uma repaginação total.
Em dois mil e dois fui acometido de um infarto no miocárdio que será narrado
por aí ao longo deste livro, que me levou a repensar uma série de coisas da, e
na, minha vida. Muitos valores foram reinventados e as pessoas passaram a ter
mais importância na minha vida do que as coisas. Passado o perigo, algum tempo depois, nasceu a minha primeira neta. Aquela menina branquicela veio para,
definitivamente, me mostrar o que realmente tinha importância na vida.
Foi questionado
pela minha esposa na época sobre a confusão que ela poderia fazer em sua cabeça
pelo fato de ter três avôs, ou três casais de avós. Eu dizia na época que, ao
contrário, ela não iria questionar isso e, mais ainda, quando tomasse
consciência da situação teria a sensação de ter sido muito mais amada do que as
pessoas que têm apenas dois casais de avós.
Não deu outra.
Certa feita, quando minha neta mais velha começava a ter noção de que tinha
mais avós que as outras crianças, ela deu uma demonstração explícita do quanto
eu era importante em sua vida. No meio de uma crise de ciúmes com relação a um
outro neto, ela me tasca a seguinte frase: - “deixa, você não é mesmo meu avô”.
O contexto em que esta frase foi dita, me mostrou aquela menina declarando amor
eterno a mim que sou seu avô postiço. Foi a prova definitiva que eu fazia parte
da sua vida. Hoje, não consigo imaginar minha vida sem ela e, pelo que percebo,
também ela não consegue imaginar sua vida sem mim.
Segundo da
fila, meu neto mais velho – o suíço
Depois que a
minha neta mais velha reinou por quase cinco anos, sendo única em três famílias
diferentes, na do seu pai, da sua mãe e minha, eis que nasceu o meu neto mais
velho. Esse chegou e completou a bagunça que tinha no meu coração. Quando
imaginei que já tinha esgotado toda a cota de felicidade que pudesse sentir na
vida, eis que surge essa pessoinha que muda este conceito. Quando esse menino
nasceu tive a sensação que o mundo se completava aí. Tinha tanta certeza disso
que escrevi o poema mais lindo dentre todos os que fiz até hoje, com o título
de “Ainda faltava ele”, cuja segunda estrofe era a seguinte:
Desde sempre sonhei muito com uma descendência
feminina
O universo conjugando inexplicáveis loucuras a me deu
Numa explosão inenarrável onde a razão não predomina
Na repentina freada, encontro no meu íntimo que...
ainda faltava ele
Nesse trecho do
poema exalto a felicidade de ter tido uma descendência feminina, através da
minha neta, mas destaco que ainda faltava esse neto que acabara de nascer.
Logo, quem lê este poema com atenção vai entender que para mim bastava. Meu
mundo estava completo. Esse piá veio mansinho e de repente se alojou de tal
maneira em meu coração que hoje, me questiono, como pude viver tanto tempo sem
ele. É puro êxtase quando estou ao seu lado. Quando estou longe dele a saudade
é imensa.
Terceiro da
fila – o impetuoso
Claro que
quebrei a cara quando ousei tentar pensar que meu mundo estava completo com o
nascimento do segundo da fila. O terceiro da fila chegou para provar que estava
retumbantemente enganado.
Uma das
atividades minha e da minha esposa é apresentar palestras para pais nos cursos
de preparação para o casamento ou em congressos em que é necessário falar sobre
criação de filhos. Gosto de falar que às vezes os pais criam o primeiro filho
e, a certa altura, batem no peito e dizem: “vejam como somos bons pais,
observem o comportamento do meu filho”. Daí vem o segundo filho e aquela teoria
de bons pais precisa ser revista, pois o comportamento do segundo filho é
diametralmente oposto ao do primeiro filho. Agora já não dá mais para bater no
peito e se gabar disso.
Com o
nascimento desse rapazinho tive a comprovação cabal da teoria de que não é o
pai que faz o filho e sim o filho que faz o pai ou, adaptando ao caso, não é o
avô que faz o neto e sim o neto que faz o avô. Ele me provou que qualquer regra
escrita em qualquer manual não é genérica. Você precisa fazer adaptações senão
não consegue levar as coisas adiante. É a história de trocar o pneu com o carro
andando, pois os netos anteriores tinham um comportamento tão dentro do
esperado que tornava muito fácil a missão de ser avô. Mas com o terceiro da
fila, foi preciso reinventar uma maneira de ser avô num nível mais hard.
Para se ter uma
ideia, ganhar um “eu te amo” desse camaradinha é muito gratificante porque, ao
contrário dos outros, ele não é dado a essas demonstrações.
O quarto da
fila – o arguto
O ano de dois
mil e doze foi profícuo em netos na minha vida. nasceram logo dois. Com a
diferença de pouco menos de três meses os dois chegaram para melhorar ainda mais
aquilo que já era o máximo.
Sua capacidade
de perceber as coisas que o cercam é impressionante. Isso traz alguns
inconvenientes. Como por exemplo, é o carinha que mais delata os primos. Eu e o
pai dele o chamamos, de vez em quando, de “x-9”. Entretanto é uma criança
meiga, doce e muito fácil de conviver. Gosta de cantar, de preferência letras
em inglês, já que, como a neta mais velha, ele estuda em uma escola bilíngue e
essa língua pra ele é moleza.
Apesar da sua
doçura, é uma criança difícil de lidar, pois ele não aceita as coisas assim de
qualquer jeito. Fica contrariado muito facilmente e, quando isso acontece, é
difícil convencê-lo de ficar na casa do vô. Muitas vezes tivemos que persistir
muito para não pedir a seus pais para virem buscá-lo no meio da noite.
Apesar da sua
característica de “x-9”, é aquele que mais busca a harmonia entre todos. Sempre
está colocando panos quentes em qualquer conflito que possa existir. Sempre tem
uma solução para propor e busca isso de forma muito determinada. Quando percebe
alguma encrenca entre os primos, enquanto não consegue ver todos bem, não
sossega.
O quinto da
fila – o ansioso
Quando setembro
chegou nasceu esse neto que foi o primeiro do filho mais novo. A expectativa do
seu nascimento para mim foi mais instigante do que qualquer um dos outros
netos, pois tinha uma curiosidade bastante grande sobre como o meu filho mais
novo iria encarar a paternidade e fiquei apreensivo com isso.
Quando ele
nasceu esta preocupação foi esmaecida, tornando-se quase imperceptível. Aliás, ainda
nos últimos meses de gravidez já havia dissipado boa parte da apreensão que
tinha. Meu filho mais novo estava se mostrando uma surpresa interessante e isso
gerava uma expectativa bastante positiva com relação ao futuro dos meus netos.
Lógico que nisso tem uma mãozona da minha nora mais nova.
Mas esse neto
cresce e se mostra uma criança muito interessada em esportes, sobretudo
futebol. Alia a isso uma ânsia que só vi mesmo na infância de seu pai. É
impressionante como esse meu neto processa as informações que lhe são passadas,
o que o faz estar sempre matutando alguma coisa e ansioso para que as coisas
que ele pensa possam acontecer. Isso faz suas unhas acabarem com muita
facilidade. Não consegue processar muito bem a escuridão, pois é muito difícil
vê-lo sair sozinho do quarto e ir até a cozinha, por exemplo. Sempre que
aparece uma necessidade dessas ele chama algum primo para ir junto com ele, ou
o avô. O interessante é que quando a gente fala que ele tem medo do escuro, ele
retruca dizendo que não é verdade e argumenta que dorme no escuro, o que é
verdade.
A sexta da fila
– a intrépida
Essa nasceu
para pôr abaixo qualquer teoria sobre educação de criança que possa ser
possível contemplar como sendo razoavelmente lógica. Não existe um padrão que
possa ser aplicado a ela. Junto com seus primos ela se torna um moleque com
todas as conotações que esta palavra quer expressar.
Entretanto, não
conheço nenhuma menina nesta idade capaz de expressar tão bem o instinto
maternal igual a essa minha neta. É incrível como essa menina é dedicada ao
cuidado de suas “filhas”. Ela é capaz de ir a um parque de diversões e levar
uma boneca que a acompanha em todos os brinquedos, em todos os momentos, de
todas as maneiras. Não abandona sua “filha” em hipótese nenhuma. Também é
incapaz de sair de casa e deixar um primo ou irmão pra trás. Se na saída, algum
dos meninos está descalço, ela é capaz de ajudá-lo a procurar o chinelo, ajudá-lo
a colocar no pé, mas não sai enquanto todos não estiverem prontos. Às vezes,
por brincadeira, eu saio, indo em direção ao elevador e digo, “quem me ama me
segue”. Nessa hora, na maioria das vezes ela grita “meninos, vamos!”.
Observando o
comportamento dessa menina é impossível não traçar um paralelo com uma tal
teoria de que a criança nasce sem gênero e durante a sua formação ela adquire
essa identidade. Minha neta desmonta essa teoria em meia hora. Não é possível
ficar do lado dela por meia hora sem descobrir que a criança nasce com o gênero
bem definido. É impossível observá-la e não perceber que ali está alguém do
gênero feminino.
APRENDENDO A ...
... SER FILHO
Tai uma coisa
que tem me desafiado a vida toda e, no fim, o palco onde foi montado o campo
desta batalha já está para ser desmontado e não consegui sequer sair das
primeiras páginas do livro indicado para se aprender a ser filho. Algumas vezes
imaginei que estava bastante adiantado na matéria, como, quando nasceram meus
filhos, mas logo o tempo me ajudou a entender que estava tateando ainda nesta
empreitada.
Quando nasceu o
meu primeiro filho supus que, finalmente, tinha entendido como deveria ser para
me tornar um filho. Ledo engano. Na primeira oportunidade que tive de provar
que havia aprendido a ser filho, os vícios anteriores prevaleceram e eu
continuei a tratar meus pais com o mesmo desdém de sempre. É certo, contudo,
que esse fracasso não pode ser creditado somente a mim. Outras pessoas e
fatores contribuíram para que isso ocorresse.
Sou de uma
família que o número de filhos nunca foi problema. Aliás, o número de filhos é
a solução. Sou o segundo filho de uma série, quase infindável, de sete. Não tenho
a menor ideia se meus pais imaginavam ter menos filhos do que tiveram, tampouco
qual o motivo que os levaram a tê-los à profusão. A única coisa que sei é que é impossível
alguém dar atenção para tantos filhos assim. Resultado: os filhos, se, e quando, se criam, vão furando tetos até chegarem à idade adulta.
Meus pais, até
nascer o quarto filho sempre trabalharam na roça, e minha mãe, até onde me
lembro, era a que mais produzia nos afazeres nas lavouras. Lógico que ainda
tinha sobre seus ombros todas as rotinas que diziam respeito à cuidar da
família. Assim ela ia se equilibrando entre cuidar da casa, cuidar dos filhos e
trabalhar nas lavouras que tinham que tocar. Essas funções, minha mãe sempre
tinha que executá-las em dupla. Quando estava na roça, lá estávamos seus filhos
para ela dar conta, quando estava nas tarefas domésticas lá estávamos nós,
inclusive nosso pai, para ela dar assistência.
Ficou famoso um
caso contado pela minha mãe que, quando eu era pequeno, nem andava ainda, e já
tinha que ser levado pra lavoura e era colocado dentro de uma bacia de
alumínio, enquanto eles faziam o que tinha que ser feito com as plantações. Num
desses dias em que eu estava embaixo de um pé de café, ela viu uma cobra perto
da bacia em que eu estava e bateu desespero nela. Claro que conseguiu me salvar
da cobra e tudo se resolveu. Mas, por pouco que eu não teria sido picado por
aquela cobra que, nem sei se era, ou não, venenosa. Acho que nem ela sabia, ou
sabe, disso. Na narrativa não aparece a figura do meu pai e, na verdade, não
tenho narrativa nenhuma em que eu possa identificar uma ação do meu pai em
nossa direção. Ao mesmo tempo em que meu pai é famoso na nossa família por
nunca ter nos encostado a mão, ou nos dado um castigo, também não consigo me lembrar
dele fazendo alguma coisa por nós, que pudesse ser entendido como preocupação
com a nossa formação.
Antes que
alguém pense que tenho alguma mágoa pelo meu pai, quero esclarecer que até hoje
o considero a pessoa que foi fundamental para a minha formação, o exemplo de
vida que ele viveu, ainda hoje, é um referencial para várias atitudes minhas.
Sempre que me encontro em alguma encruzilhada, tento imaginar como é que meu
pai agiria naquela situação e, quase sempre consigo me desvencilhar bem dos
enroscos. Ou seja, a formação que meu pai nos deu foi muito por ele “ser” e
muito pouco por “fazer” e nada por “ter”. Enquanto minha mãe, além de ter sido
fundamental o “ser”, assim como meu pai, uma porção mais acentuada do “fazer”
integrou o ingrediente que ela nos deu e, também, o nada de “ter”.
Então, nesse
cenário, é pouco provável que alguma mãe pudesse sair da superfície e mergulhar
um pouco mais fundo na formação de seus filhos. Com isso o aprendizado para que
a criança possa vir a ser um bom filho fica prejudicado. Logo, a culpa por eu
não ter aprendido a ser um filho não pode recair totalmente sobre as minhas
costas. Sei que tenho culpa sim, numa proporção até boa, mas não somente eu.
Quando tomei
consciência disso poderia ter virado esse jogo, mas não virei e segui por esse
mundo sem aprender a ser filho. Algumas atitudes minhas me envergonham ainda
hoje, só de pensar. Coisas que, se pudesse voltar o tempo, com certeza
corrigiria, mas não dá mais tempo.
Por volta dos
meus onze, doze anos, trabalhava eu na primeira das muitas farmácias que
trabalhei e ganhava lá um salário que nem me lembro quanto era, mas me lembro
bem que não ficava com muito para mim, pois a maior parte do que ganhava,
contribuía com a minha família. Isso era imperativo porque todos os membros da
família que ganhassem alguma coisa deveriam contribuir para que pudéssemos ter
o que comer e o que vestir. Para incrementar um pouco a renda, neste período
aproveitava os finais de semana e exercia outras atividades. Era comum
aproveitar os domingos à tarde para vender picolé na praça ou engraxar sapatos.
Desta forma conseguia contribuir um pouco mais com minha família e até sobrava
algum para comprar alguma coisa pra mim, como material escolar, por exemplo.
Nesta mesma
época, fiz amizade com um menino, filho de uma família de origem alemã, que
morava na cidade e que a minha mãe e a mãe dele ataram um relacionamento e nós
dois ficamos amigos meio que por osmose. Eu e esse amigo tínhamos muita vontade
de acompanhar tudo o que estava acontecendo pela cidade, mas não tínhamos
dinheiro para isso. A minha família vivia economizando o almoço para comer a
janta, a família dele, um pouco mais abastada que a minha, mas sua mãe, viúva
de origem alemã, era bem controlada. Mas isso não nos impedia de acompanhar as
coisas que queríamos. Desenvolvemos, eu e meu amigo, uma técnica de conseguir
assistir a tudo que queríamos, sem precisar desembolsar nada, já que não
tínhamos. Essa técnica consistia em “varar” tudo que fosse necessário para
atingir o objetivo. “Varar”, no caso, significava arrumar uma maneira de entrar
sem pagar nas atrações. O nosso desafio maior era “varar” o cinema para
assistir aos filmes. Então, eu e meu amigo esperávamos começar a projeção,
quando era projetado o Canal 100, os trailers dos próximos filmes, e neste
momento, nós entrávamos por trás do cinema, através dos vitrôs do banheiro, que
eram basculantes e sem vidros. Entrávamos, ficávamos por ali um pouco e depois
saíamos como se tivéssemos ido ao banheiro.
Fazíamos isso
sempre nos finais de semana, especialmente aos sábados, que podíamos chegar um
pouco mais tarde em casa, porém fazíamos isso também durante a semana, sempre
que uma atração nos interessava. Então, a gente “varava” o cinema sempre que
decidíamos. Claro que o gerente do cinema sabia disso. Aliás, até as poltronas
do cinema sabia que nós assistíamos aos filmes sem pagar um tostão. Entretanto,
não tinha como eles nos pegarem, pois fazíamos a coisa direitinho e
ludibriávamos a todos. Um belo dia, chegamos para “varar” da mesma forma que
fazíamos sempre e encontramos vidros nos vitrôs do banheiro. Havia sido
colocado naquele dia. Como o gesso, que segurava os vidros na estrutura de
ferro, estava ainda mole, retiramos e com isso foi possível remover um dos
vidros e conseguimos nosso intento.
No dia
seguinte, parou um jipe da polícia em frente à farmácia, procurando por mim. Eu
ali, com pouco mais que onze anos à frente de dois policiais, me informando que
eu estava sendo levado para a delegacia e explicando o motivo, para surpresa do
meu patrão, o dono da farmácia onde eu trabalhava, que me lançou um olhar tão
penetrante que até hoje não consigo esquecer. Ou seja, fui preso, hoje se diz apreendido, com menos de
doze anos. O fato de ser preso não me causava nenhum desconforto, mas, me
causava um remorso muito grande, pensar na vergonha que meus pais, sobretudo o
meu pai, iriam passar em saber que um filho seus estava preso. Quando meu pai
teve que ir me buscar na delegacia, foi como se me tivessem lançando um punhal
nas minhas costas. Naquela hora minha vontade era me enfiar num buraco. Acho
que nunca dei um desgosto tão grande para meus pais como aquele. Mas, em
especial para o meu pai, pois minha mãe me acompanhava no dia a dia e parece
que ela sabia em seu íntimo que eu era capaz de proezas iguais ou piores que
essa. Entretanto, meu pai era mais ingênuo que minha mãe e em seu coração, acho
que não cabia o pensamento de que qualquer de seus filhos pudesse um dia
necessitar ser resgatado de uma delegacia porque fizera alguma estripulia mais
pesada.
Depois desse
episódio dei uma maneirada nas coisas. Mas, continuava sendo um adolescente
rebelde e, nessas condições, apesar de sempre contribuir financeiramente com
minha família, nunca deixei de causar problemas sérios aos dois. Talvez me
achasse no direito de ser um filho rebelde, pelo fato de sempre ajudá-los materialmente.
Na vida adulta também não faltaram situações em que o filho aprontou muito.
Meu pai faleceu
em mil novecentos e oitenta e sete, aos sessenta e dois anos. Um dos meus
filhos estava com nove para dez anos e o outro estava perto de completar sete
anos. Hoje sei o quanto meu pai sofreu durante o período transcorrido entre
adoecer e falecer. Sua morte se deu em função de uma septicemia, provocada por
um câncer na próstata. Na ocasião não tinha noção que era esse o quadro do meu
pai. Da última vez que ele foi internado, de onde saiu só depois de falecer,
fui informado que ele estava hospitalizado. Entretanto, por questão
profissional, programei para encontrar com ele dali a, mais ou menos, dez dias,
pois isso ia coincidir com outra viagem programada e aí racionalizaria meu
tempo. Meu pai lá moribundo numa cama de hospital, quase morrendo, e eu
tentando racionalizar meu tempo. Mas tomei essa decisão que, à época achei a
mais certa. Quatro dias depois, já noite avançada recebo uma ligação da cidade
onde meu pai morava, dando a notícia de que ele havia falecido. Ou seja, quando
eu tive a grande chance de mostrar ao mundo que havia aprendido, preferi tomar
atitudes que nem de longe parece caber a um filho. Meu pai faleceu sem que eu
tivesse uma última conversa com ele, ou como me disse alguém um dia: estava
escrevendo um rascunho da minha vida e não deu tempo de passar a limpo. Não
tivemos aquela última conversa, quando às pessoas é oferecida a oportunidade de
se entenderem, se perdoarem ou, simplesmente olhar um para o outro e expressar
num gesto qualquer o quanto aquela convivência foi importante.
Esse
acontecimento me consumiu por um grande período da minha vida. Não conseguia me
perdoar por ter negligenciado num momento tão importante da vida do meu pai.
Somente muito tempo depois dois fatores me fizeram entender que eu devia
aceitar aquilo. O primeiro foi um pensamento que sempre me ocorre desde então: meu
pai teria aceitado a minha decisão? O que ele teria feito no meu lugar? É
provável que ele não teria agido da forma que agi, mas, com certeza, ele
aceitaria a minha decisão. Entretanto, outro fator importante foi um evento
ocorrido comigo.
Era o ano de
dois mil e dois, noite da véspera do dia que faria quarenta e oito anos, meu
filho mais velho ainda estudava fora e meu filho mais novo vivia conosco. Nesta
noite fui acometido de um infarto e levado às pressas para o hospital. Enfrentei
alguns dias de UTI e ao final desse processo resultou na instalação de três stents na artéria direita do meu coração
que apresentava até noventa por cento de obstrução em determinado ponto.
Enquanto estava internado na UTI, ficava imaginando a situação do meu filho
mais velho. Se acontecesse alguma coisa pior comigo, como é que ele se
sentiria, sendo que já fazia mais de quatro meses que a gente não se via? Isso
me fez reviver um pouco aquela situação que vivi com o meu pai. Personagens
diferentes, motivos diferentes, mas, no fundo, a mesma situação, poderia morrer
sem que meu filho pudesse ter uma conversa final comigo. Assim consegui
enterrar definitivamente aquela inquietação pela qual passava, já que todos
estamos suscetíveis a esses tipos de acontecimentos. Foi só depois que enterrei
definitivamente essa inquietude que parei de ter sonhos recorrentes com a
presença viva do meu pai. Hoje, sempre que rezo, peço ao santo do meu pai para
me proteger das agruras da vida.
Disse antes que
o palco está quase sendo desmontado e o personagem de filho está por se
encerrar sua participação na minha vida e ainda não aprendi a ser o filho que
talvez todos os pais desejem. Meu pai faleceu, mas minha mãe continua viva e
muitas vezes, quase sempre, me pego falhando nesse papel. Muitas coisas me
fazem desviar a atenção que deveria ter com ela. Assim, afirmo de novo: acho
que é um aprendizado que não evoluiu muito.
APRENDENDO A ...
... SER
NAMORADO
Todo homem
nasce, cresce, fica bobo e casa. Assim dizia uma brincadeira que fazíamos
quando novos. Quem inventou isso se esqueceu de dizer que antes de casar o
homem namora, ou talvez quisesse mesmo dizer que a fase de ficar bobo é o
namoro. É isso mesmo, pois não tem período em que ficamos mais embobado do que
aquele em que conhecemos alguém, nos enamoramos, vamos afinando nossa
convivência, até sentir aquela vontade intensa de casar-se.
Tinha eu
dezessete anos quando conheci minha única namorada. Até então, levava uma vida
normal, não tinha nenhuma amarra, nenhuma coisa que me impedia de sair para
onde quisesse, de pescar com os amigos, de jogar bola a qualquer tempo,
bastando que estivesse de folga. Ao conhecer a minha namorada tudo isso mudou.
Já era impossível marcar compromisso com os amigos, jogar futebol, sair por aí
andando de bicicleta, ir roubar fruta em algum pomar desavisado. Tudo passou a
ser “controlado” pela pessoa com quem namorava e, o mais estranho, é que a
namorada jamais me proibiu de fazer qualquer coisa dessas. Mas o meu tempo
passou a ser outro, a minha preocupação passou a ser outra. Agora eu tinha que
aprender a ser namorado.
Hoje, até tem
vários meios que, se o adolescente quiser, poderá lançar mão e aprender a ser
namorado, mas, há cinquenta anos não existia isso e a gente tinha que aprender
a ser namorado na prática, namorando. Tinha que construir o aprendizado
tateando aqui e ali até chegar a algum lugar. Foi assim que tive que aprender a
ser namorado.
Residíamos em
uma cidadezinha do interior do Paraná, levando uma vidinha bem pacata. Olhando
assim, ninguém sairia dali, já que tudo o que precisávamos para viver, ali era
encontrado. Mas a mão invisível, de alguém, comanda as coisas de maneira que a
gente ignora, e determina como as coisas irão acontecer.
A diversão
principal do jovem casal de namorados que a esta altura tinham dezessete e
quatorze anos, era ir ao cinema da cidade, lugar onde eles podiam namorar à
vontade, sem se preocuparem com os olhares. Nesse período acho que assistimos a
todos os filmes que passou por aquele local. Assistir é jeito de falar, pois
não estávamos muito preocupados com o que acontecia na telona, nosso negócio
ali era outro. Além do cinema, íamos também muito ao clube da cidade, onde
aconteciam bailinhos, bailes e bailões. Nossos preferidos eram os bailinhos,
pois, nesses não corríamos o risco de encontrar o pai da minha namorada, já que
ele, de vez enquanto também frequentava os bailes e bailões, especialmente nos
carnavais, pois, o meu sogro, normalmente, fazia parte da banda que animava as
folias.
Na inocência
possível de um casal de namorados, virgens e recatados, a gente seguia aquele
ritual de ousadias supremas para a ocasião. O primeiro beijo de boca que dei em
uma mulher aconteceu quatro meses e quinze dias depois que comecei aquele
namoro. Até então, apesar de “tanto tempo” namorando, ainda era, como se diz
hoje, “boca virgem”. Depois que perdemos a virgindade da boca, avançamos um
pouco mais, mas, nossa índole, nossa intenção e a vigilância constante dos
familiares, não nos deixaram ultrapassar alguns limites e conseguimos chegar
até o casamento sem ter praticado uma relação sexual, seja de que modo fosse.
Trocando em miúdos, casamos virgens, os dois.
Por questões
profissionais, a família da minha namorada mudou-se para outra cidadezinha do mesmo
estado e eu fiquei pra trás por algum tempo, até que decidi acompanhar a minha
namorada, me mudando também para aquela outra cidade. Foi uma passagem efêmera
por lá, que serviu apenas como ponto de partida para tomar uma decisão mais
ousada na vida. Quando fui para essa nova cidadezinha, me empreguei numa
farmácia, que era a profissão que exercia na ocasião. Até então, tinha exercido
apenas três atividades: quando eu ainda era criança, aos oito anos de idade,
trabalhei como pajem de outras duas crianças. Depois, aos onze anos, comecei a
trabalhar em farmácia, como faxineiro e serviços gerais que, numa progressão
normal, virei balconista, aplicador de injeção, fazedor de curativo e tudo o
mais que um funcionário de uma farmácia fazia à época.
A certa altura
da minha adolescência, aproveitando uma oportunidade, decidi por aprender uma
profissão que pudesse me garantir um futuro melhor. Foi quando frequentei uma
escola e aprendi a ser torneiro mecânico. A escola era um convênio entre o
SENAI e uma usina de açúcar que existia na minha cidade, na qual meu pai
trabalhava. Estava acertado que os três primeiros alunos da turma seriam
contratados como ajudante de torneiro, na oficina da usina. Como fiquei entre
os três primeiros, acabei ocupando uma das vagas oferecidas e consegui aprender
a profissão de torneiro mecânico, com teoria e prática.
Mas, me
desencantei com a nova função, abandonando-a e retornando às farmácias. Depois
disso comecei a namorar e me mudei para a cidade para onde tinha ido minha
namorada, trabalhando em farmácia. Ocorre que, quatro meses depois que estava
naquela cidade, perdi aquele emprego e não consegui colocação em outra farmácia.
Se eu quisesse continuar a morar perto da namorada teria que arrumar outro
jeito. Foi aí que decidi retomar a minha carreira de torneiro mecânico,
conseguindo me empregar numa oficina que havia na cidade. Ganhando menos, tendo
que me sustentar, não houve jeito de continuar trabalhando naquela oficina. Decidi,
então, por sair de lá e buscar outra solução. Depois de tentar algumas coisas,
não sobrou alternativa, senão a de tentar a vida numa grande cidade do Brasil.
Na época, acho
que até hoje, o grande fetiche de todo mundo era ir para São Paulo e fazer a
vida nessa megalópole. Para mim não foi diferente. Como eu morava no Paraná,
seria de se esperar que ao pensar em mudar para uma grande cidade, eu optasse
por Curitiba. Mas o fetiche falou mais fundo e decidi por ir para São Paulo.
A questão do
aprendizado para ser namorado acontecia desta forma. Tudo o que eu fiz até
então, parecia que era porque eu estava sendo um bom namorado e queria estar
sempre por perto da minha namorada e, agora que tinha que me distanciar dela,
seria, pensava eu, para conseguir uma maneira de a gente continuar a namorar e,
em última análise, conseguir meios para nos casarmos.
Na véspera do
dia em que completaria dezenove anos, parti para São Paulo, ou seja, passei meu
aniversário daquele ano em uma cidade que nunca havia pisado. A única
referência que havia levado para tentar começar minha vida lá era o endereço de
um amigo que, assim como eu, tinha se tornado torneiro mecânico depois daquele
curso. Esse meu amigo trabalhava como torneiro em uma oficina mecânica de São
Paulo que ficava na Rua Afonso Sardinha, na Lapa. O endereço, então, que havia
levado era o desse amigo. Entretanto, o endereço que possuía, só descobri lá,
era o da oficina.
Não me recordo
bem o porquê, no dia que cheguei a São Paulo, não havia expediente, ou, pelo
menos, a oficina, que o meu amigo trabalhava, estava fechada. Complicou tudo,
pois o único endereço que eu tinha era aquele, que ninguém estava lá. Faltou o
chão, pois não tinha condições de ir para um hotel, nem conhecia a opção de
pensões. O dinheiro que possuía não chegava a cem cruzeiros, moeda da época.
Sem saber o que fazer, entrei em um bar que havia na esquina e tentei alguma
informação sobre a oficina. Alguém no bar me informou que havia uma chance,
pois o pessoal da oficina, naquele dia, havia saído para uma “pelada” por perto
e, normalmente, depois dos jogos eles apareciam no bar para comemorar alguma
coisa, ou mesmo para simplesmente beber um pouco. Agarrei-me nesta chance e
fiquei por ali até que alguém chegasse. Quando chegou uma turma que parecia ter
chegado de um jogo, a pessoa do bar me avisou que essa turma era a que eu
esperava. Fiquei feliz e decepcionado ao mesmo tempo, pois o meu amigo não
estava no meio daquelas pessoas.
A minha
esperança, lógico, era encontrar meu amigo e ter algum lugar para ficar até as
coisas se ajeitarem. Mas, ao não o perceber no meio da turma, temi pelo que
poderia me acontecer. Um fio de esperança se acendeu quando alguém daquela
turma, entendendo meu drama, disse que iria entrar na oficina e mexer no
armário do meu amigo e ver se encontrava alguma coisa que indicasse o endereço
onde ele morava. Bingo! Ao revirar os pertences do meu amigo, o rapaz encontrou
uma carta recebida da família, onde indicava o endereço que eu tanto ansiava naquele
momento.
O endereço que,
finalmente, apareceu na minha mão, era de uma rua chamada Horácio Romeu, mas
não informava bairro, vila ou qualquer outra coisa. Na minha pouca experiência,
imaginei que aquela rua fosse na Lapa mesmo, já que na minha cabeça
interiorana, ninguém moraria longe do trabalho. Sai pela redondeza desesperado
com aquele endereço na mão, perguntando a todos se sabiam onde ficava aquela
rua. Que falta fazia o google maps! Em vão foi a minha busca. Ninguém fazia a
mínima ideia onde ficava aquele endereço, até que alguém me sugeriu que eu
voltasse à Estação Rodoviária, que na época São Paulo só possuía esta e
oficialmente chamava-se Terminal Rodoviário da Luz, e lá tinha um posto
policial que poderia me informar corretamente onde encontrar aquele endereço.
Peguei um
ônibus de volta para a rodoviária, gastando um pouco mais do pouco dinheiro que
me restava. Chegando lá, me dirigi a um posto policial, mostrei o nome da rua e
o atendente não encontrou aquele logradouro em nenhum registro. Bateu o
desespero. Aquela cidade me assustava muito. Talvez, percebendo o meu
desespero, o policial que me atendeu, se dirigiu a outro posto que havia ao
lado, para tentar descobrir algo sobre o nome da rua que possuía. A sorte bateu
à minha porta. O policial do outro posto alcançou alguns papeis que, imagino,
era algum comunicado da prefeitura e percebeu que ali indicava onde ficava
aquela rua. Fez qualquer comentário sobre o fato de ser uma rua nova, e me
passou as coordenadas de onde ela ficava. Pirituba, Jardim Mutinga. Como
poderia chegar lá?
Quando o
policial me informou que deveria pegar um trem para chegar àquele endereço,
tremi na base. Na minha expertise interiorana, trem era transporte caro demais.
Primeiro, só se pega trem para longos percursos, depois, viagem de trem,
normalmente, custaria mais do que aquilo que poderia pagar. Todo caso, deveria
ir até a Estação da Luz, pegar um trem que fosse até a estação Pirituba, descer
do trem e pegar um ônibus que me levaria até o endereço onde pretendia chegar.
Lá se iam mais alguns cruzeiros, eliminando qualquer possibilidade que não
fosse a de encontrar o meu amigo. Por isso, fiz aquilo que o policial me
indicou e, encurtando a história, cheguei à casa do meu amigo, encontrei-o lá e
me sobravam apenas vinte cruzeiros no bolso.
Esse amigo foi
um daqueles anjos que sempre tive a sorte de encontrar pela vida afora. Ele
morava numa casa que era uma espécie de república, vivendo com mais três
pessoas. Imediatamente ele conversou com dois dos outros três, que estavam
presentes, e concordaram que eu iria ficar ali por algum tempo, até as coisas
se ajeitarem. O quarto morador, por certo, pensei eu, não teria nada contra,
como, realmente, não teve. Senti-me confortável, depois de passar um perrengue
doido. Como era um final de semana, meu amigo, além de me acolher, me colocou
cem cruzeiros nas mãos e disse que na segunda-feira iria procurar um emprego
pra mim.
Na esquina das
ruas Afonso Sardinha com Domingos Rodrigues, na Lapa, havia uma farmácia, que
existe até hoje, embora com outro nome. A farmácia chamava-se Jaborandi e seu
proprietário era o presidente do CRF-8. Como a oficina que o meu amigo
trabalhava era nas imediações, ele conhecia o pessoal de lá. Meu colega
conversou com o gerente desta farmácia e no dia seguinte eu estava empregado.
Assim iniciava minha vida profissional em São Paulo. Depois do primeiro mês,
aluguei uma vaga em uma pensão bem próxima, na própria Afonso Sardinha, e me
mudei para lá. Dois meses depois de me instalar na pensão, o dono da farmácia
compra outra pelos lados de Pirituba, nas imediações da Vila Barreto e me
mandou pra lá, com a missão de gerenciar aquela nova aquisição. No primeiro
mês, morava em Pirituba e trabalhava na Lapa, a partir do terceiro mês, morava
na Lapa e trabalhava em Pirituba. A nova farmácia se mostrou inviável e o dono
decidiu por fechá-la três meses depois. Nesse ínterim deixei aquela pensão da
Afonso Sardinha e passei para uma na Nossa Senhora da Lapa.
Com a farmácia
fechada, fiquei desempregado, já que o meu lugar na anterior havia sido ocupado
por outra pessoa. Desempregado, decidi dar um tempo no Paraná, para namorar um
pouco, já que não via minha namorada desde quando rumei para São Paulo. Fui de
mala e cuia para o Estado onde estava minha namorada, sem dinheiro, pois o que
ganhei naqueles seis meses, enviei um pouco para minha mãe e o resto usei para
viver naquela cidade maluca.
Nessa época,
minha mãe continuava a morar no município que eu começara a namorar e minha
namorada morava na cidade para onde havia mudado, que eu fora atrás. Decidi,
nesta minha volta temporária para o Paraná, estacionar na cidade de minha mãe e
ir apenas nos finais de semana na cidade que minha namorada morava. Mas para
isso era necessário de algum recurso para sobreviver esse período. Conversei
com o dono de uma das farmácias que havia trabalhado e trabalhei ali durante
esse tempo.
Quem me via
naquele período imaginava que o sonho de “fazer” São Paulo havia sido desfeito.
Entretanto, estava apenas tomando um fôlego para enfrentar o segundo round da luta. Passei o fim de ano com
os familiares e vendo a namorada mais amiúde, e por volta da metade de janeiro
decidi voltar ao ringue. Preparei minha mochila e, com dinheiro no bolso
suficiente apenas para chegar a São Paulo, parti rumo àquela máquina de fazer
louco.
Cheguei a São
Paulo sem nenhum dinheiro. Aqui, não é sentido figurado. Cheguei sem nenhum
tostão no bolso, suprema loucura, mas foi assim. Cheguei à cidade numa
sexta-feira à tarde. Era mestre em chegar nas datas impróprias. Então, cheguei
naquela selva numa sexta-feira, sem emprego, sem dinheiro, sem lugar para ficar
ou, pelo menos, dormir. Não tinha como procurar emprego, por consequência, não
tinha como procurar um lugar para dormir, tampouco conseguir um lugar para
comer alguma coisa. Nessas condições me preparei para passar duas noites, pelo
menos, dormindo na própria rodoviária.
Os bancos da
rodoviária, embora desconfortáveis, eram disputados por muita gente que não
tinha para onde ir. Entretanto, não era permitido dormir ali. A partir de uma
certa hora da noite os vigias passavam pelos bancos acordando as pessoas e
pedindo para elas saírem. Assim foi que passei as primeiras duas noites dessa
minha segunda incursão pela cidade. Em todas as farmácias no entorno da
rodoviária que estavam de plantão, me oferecia para trabalhar e ninguém me dava
trabalho. A alimentação nesses três dias foi dramática. Não conseguia pedir.
Hoje, pediria, mas à época até ensaiava pedir, mas me faltava coragem. Na
segunda noite, de domingo para segunda-feira, me encostei em um balcão, num dos
botecos existentes na rodoviária, pedi uma sopa, saboreei aquele manjar e,
quando ninguém observava, saí sorrateiramente do boteco, sem pagar a conta. Ou
seja, coragem para pedir, não tive, mas tive coragem de roubar um prato de
comida, talvez nesta situação limite, conseguiria pedir aquele prato de comida.
Mas, se eu pedisse e a pessoa não me desse, não restaria outra opção a não ser
continuar com fome, que temia não aguentar. Já, se eu aplicasse aquele golpe,
era garantia, mesmo cometendo um delito, de matar minha fome, que naquele
momento, estava insuportável. Deplorável atitude, mas aquela sopa foi
suficiente para me fazer vencer aquela noite.
Na manhã
seguinte, segunda-feira, com todas as farmácias funcionando, expandi meu campo
de pesquisa para conseguir um trabalho. Saí da rodoviária, desci a Duque de
Caxias, em direção à São João, pesquisando em todas as farmácias existentes, se
tinha a necessidade de algum balconista. Entrei na São João, em direção à Barra
Funda. Ao chegar na Marechal Deodoro, a esperança voltou. Era uma praça que
ficara muito feia depois que foi cortada pelo Elevado Costa e Silva, o Minhocão,
que hoje, depois que assumiu a prefeitura pessoas que gostavam de revisar a
história, trocaram o nome para Elevado João Goulart. Ali havia uma farmácia que
parece não existir mais, que, para minha sorte, estava precisando de um
balconista. Esta farmácia, chamava-se Morimed e era de propriedade do mesmo
dono do laboratório que à época fabricava um multivitamínico chamado Vitasay.
As farmácias em
São Paulo, não sei se ainda é assim, funcionavam em regime de plantão, sendo
liberado à todas que não estavam de plantão, para abrirem no sábado até as treze
horas e, no domingo depois das vinte e uma. Esta, onde estava precisando de um
balconista, abria todos os dias as sete da manhã e fechava à uma da madrugada.
Um grupo de balconistas trabalha das sete da manhã às sete da noite e outro
grupo trabalhava da uma da tarde até a uma da madrugada. E foi nesse grupo, que
varava tarde e noite, que havia a vaga onde eu seria encaixado. Quando estava
de plantão, continuava no mesmo horário e quando não estava de plantão,
funcionava das sete da manhã à uma da tarde no sábado, reabrindo no domingo às
vinte e uma horas e fechando à uma da madrugada, já de segunda-feira.
Mas, felicidade
suprema, a farmácia me deu o emprego que eu precisava para iniciar meu segundo round na megalópole. Emprego garantido,
deveria iniciar meu turno às treze horas daquela segunda-feira. Era necessário,
então, buscar alguma maneira de tomar um banho. Lembrando que estava sem nenhum
dinheiro no bolso, literalmente. A única opção que possuía para tentar isso,
seria tentar me instalar naquela última pensão que havia ficado no final do
primeiro round. Entretanto, aquela
pensão ficava na Avenida Nossa Senhora da Lapa, uma distância de aproximadamente
dez quilômetros e eu tinha apenas algumas horas para tentar esta solução. Logo,
precisaria sair da Praça Marechal Deodoro, na Santa Cecília, e ir até a Avenida
Nossa Senhora da Lapa, na Lapa, a pé, e voltar. Decidi arriscar e parti em
disparada até aquela pensão, conversei com a pessoa responsável que entendeu
minha situação, arrumou uma vaga para mim, tomei um banho o mais rápido
possível e me pus a andar de volta, lembrando que tudo isso, com uma fome que
não aguentava mais, pois dinheiro não tinha e as pensões, via de regra, não forneciam
refeições. Mas, o bom foi que consegui estar na hora marcada para iniciar o
turno das treze horas.
A salvação da
lavoura, foi que o ganho dos balconistas era composto de duas partes: uma fixa,
que era o salário mínimo, que cada um recebia no final do mês e uma parte
variável, representada pela comissão sobre os produtos que cada um vendia,
sobretudo dos produtos considerados de empurroterapia. Essa parte variável era
paga diariamente. Meia hora antes de encerrar o expediente, o gerente da
farmácia recolhia todos os talões de nota e fazia o cálculo do quanto cada um
teria direito de receber naquele dia. Quando recebi aquele valor, referente às
comissões do dia, me senti aliviado. Foi o primeiro dinheiro que colocava a mão
nos últimos quatro dias. Com esse dinheiro foi possível, então, primeiro comer
alguma coisa, lembrando que nos últimos três dias, a única refeição que conheci
foi aquela que roubei naquele boteco da rodoviária. Por fim, era possível pegar
um ônibus para chegar até a pensão na Lapa. Lembro-me até hoje da refeição que
tomei naquela noite/madrugada. O local onde tomei aquela refeição, que ficava próximo
ao Theatro São Pedro, servia uma sopa bem suculenta, com macarrão padre nosso,
contendo batata inglesa, carne moída e, o mais importante, acompanhada por uma
porção generosa de pão. Matei, faustamente, minha fome e parti para a minha
primeira noite de sono sobre uma cama, depois de uma eternidade tentando dormir
em um banco de rodoviária.
Assim foi o
início do segundo round naquela
aventura que era conseguir meios suficientes para continuar namorando, noivar e
conseguir casar-me com a minha namorada que havia ficado lá no Paraná me
esperando.
APRENDENDO A ...
... SER NOIVO
Oficialmente
fiquei noivo a apenas alguns meses antes do casamento. Entretanto, considero
que a partir do momento que eu e minha namorada decidimos que queríamos casar
um com o outro, estava ali selado o nosso noivado e isso aconteceu pelos idos
de setenta e quatro do século passado, o mesmo ano que voltei para São Paulo a
fim de enfrentar o segundo e definitivo round
da minha luta para dominar aquela cidade.
Sempre achei
que não conseguiria dar um suporte material adequado à minha esposa e filhos,
caso continuasse a trabalhar como balconista de farmácia. Entretanto, era nisso
que eu trabalhava e ao ir para São Paulo, tinha que começar com alguma coisa.
Mas, desde sempre, estava decidido a mudar de profissão e, durante o período
entre o primeiro e o segundo round,
decidi que iria trabalhar com computador. Não fazia a menor ideia do que isso
significava, mas decidi que era com isso que iria trabalhar. Dizia isso para
minha namorada e ela aceitava, meio cética, pois, se eu não sabia do que se
tratava, imagine ela.
Então, na
segunda ida minha para enfrentar aquela máquina de fazer louco, firmei o
propósito de, em qualquer circunstância, nunca mais retornar para o Paraná, a
não ser para visitar os parentes, a namorada e os amigos. Com isso na cabeça,
enquanto trabalhava naquela farmácia da Praça Marechal Deodoro, iniciei minha
saga por encontrar uma maneira de realizar minha determinação de trabalhar com
computador. Uma das providências, depois que me estabilizei um pouco, foi mudar
para uma pensão que existia na Rua São Vicente de Paulo, a uns cento e
cinquenta metros da farmácia. Desta pensão eu só saí quando me casei.
Minha meta,
lembrem-se, era trabalhar com computador, por pior que isso pudesse significar.
Com isso em mente, sempre estava atrás de qualquer coisa que pudesse me levar a
esse mundo. Um belo dia descobri que uma empresa que existia na Alameda Barros,
a uns trezentos e cinquenta metros da farmácia, estava oferecendo um curso de
Cobol. A empresa atuava como um birô, como eram conhecidas as empresas que
prestavam serviços no ramo de informática. Como o acesso a computadores era
muito oneroso, um birô era contratado pelas empresas para processar
contabilidade, folha de pagamento etc. Esse birô, que se chamava Schema,
decidiu oferecer também cursos de informática e iniciou por oferecer um curso
de linguagem de programação que à época era aquela mais usada nos computadores
de grande porte, os chamados mainframes,
já que nem se falava em computadores pessoais, que surgiram somente na década
seguinte.
Decidi, então,
me matricular nesse curso e, como o curso era ministrado à noite, solicitei na
farmácia que trocassem meu turno e passei a trabalhar das sete da manhã até as
sete da noite. Iniciei o curso de programação em Cobol, sem ter ideia do que
iria encontrar. Imagine a dificuldade que enfrentei, pois, sequer sabia o que
era um computador e já estava ali, querendo aprender como programar aquilo.
Cobol é uma linguagem de alto nível, orientada ao comércio, considerada de
terceira geração, ainda bastante utilizada atualmente, sobretudo nos
computadores de grande porte. Depois de mais de trinta anos trabalhando com
informática me fiz especialista nesta linguagem e transitava muito bem por ela.
Mas, quando me matriculei naquele curso não tinha a mais tênue noção do que era
aquilo e o que aquilo significava. Entretanto, enfrentei o desafio, pois minha
meta era trabalhar com computador.
As aulas
aconteciam às segundas, quartas e sextas-feiras, das oito as onze da noite. Nesses
dias da semana eu começava a trabalhar na farmácia às sete da manhã, trabalhava
até as sete da noite, saía, mastigava alguma coisa e as oito horas estava lá
para enfrentar aquele curso sobre coisas muito estranhas pra mim. O curso completo
era de quatro meses, mas eu não concluí, pois tive que abandoná-lo no meio.
Fazia um mês e
meio que eu estava naquele curso, a empresa que o ministrava fez um processo
seletivo para contratar dois estagiários em operação de computador. Quem
passasse no processo seletivo seria admitido como estagiário, para trabalhar na
operação da meia-noite às seis da manhã. Da seleção podiam participar tanto as
pessoas que frequentavam o curso quando pessoas de fora. Cinco pessoas do curso
e mais umas dez de fora participaram do processo. Acabei por ficar com uma das
duas vagas. A contratação foi imediata. Quem não conhece os computadores de
grande porte não consegue divisar as funções de operador, programador, analista
de sistemas etc. Mas essas funções podem não ter nada a ver uma com as outras.
Por isso, o operador não precisa saber programar, o programador não precisa
saber operar ou analisar sistemas, o analista de sistema não precisa saber
programar ou operar computador e assim por diante. Lógico que se um analista
soubesse programar, era possível fazer o projeto de um sistema que atendesse
não só o negócio da empresa, como também aproximá-lo das necessidades do pessoal
da informática, mas isso, com certeza, não era imprescindível.
Na semana
seguinte ao processo seletivo, tinha que iniciar meu estágio em operação, já na
segunda-feira. Mas tinha um detalhe, como estagiário eu não iria ganhar o
suficiente para me manter. Na farmácia, como disse, meus rendimentos eram um
salário mínimo e mais uma parte variável, referente às comissões sobre as
vendas realizadas por mim. O salário mínimo na época girava em torno de
trezentos e oitenta cruzeiros e o grosso mesmo do rendimento estava fincado nas
comissões. Como estagiário de operação de computador, receberia um valor
próximo ao salário mínimo e, mesmo que me sujeitasse a fazer horas-extras, não
receberia por elas. Era interessante fazê-las, pela questão da aprendizagem,
mas não para incrementar os rendimentos. Se eu deixasse a farmácia seria
impossível sobreviver, pois o salário mínimo era consumido apenas com o
pagamento da vaga na pensão. Logo, foi necessário que eu enfrentasse, por um
período, os dois empregos. Então, minha jornada de trabalho ficou assim
configurada: de segunda a sexta eu entrava as sete da manhã na farmácia, saía
às sete da noite. A meia-noite iniciava o estágio até as seis da manhã, com
intervalo de apenas uma hora para começar de novo na farmácia. Resumo da ópera:
me sobrava das sete da noite até a meia-noite para eu jantar, dormir, lavar
roupa, tomar banho e me dirigir para a empresa onde estagiava, não
obrigatoriamente nesta ordem, mas tinha que fazer tudo isso. Nos finais de
semana, quando a farmácia estava de plantão, a rotina não mudava, quando não
tinha plantão, sobrava um pouco mais de tempo, ocasiões em que aproveitava ou
para fazer horas-extras, sem ganhar, ou colocar o sono em dia.
A primeira
semana desse período me mostrou uma situação quase insuportável. Como a pessoa
que conduziu o processo seletivo era a mesma que ministrava o curso de
programação que eu fazia, fiquei receoso de abandonar o curso e não poder
aproveitar aquela chance de começar a trabalhar com computador, conforme vinha
perseguindo. Então decidi, naquela primeira semana encarar as três atividades:
o trabalho na farmácia, o curso de programação e o estágio. O curso às
segundas, quartas e sextas-feiras, a farmácia e o estágio todos os dias. Em
três dias da semana, então, aquele intervalo entre sair da farmácia e entrar no
estágio tinha que ser utilizado com o curso. Não sei como aguentei essa semana.
Aliás, sei sim, não vou narrar aqui, mas sei. Apenas uma dica: trabalhava em
farmácia. Na segunda-feira seguinte, conversei com o professor e expliquei a
ele a situação e ele entendeu a minha desistência do curso e assim o fiz.
Nesse período
desenvolvi algumas técnicas de sobrevivência que levo para o resto da vida.
Roupas, quando tinha que comprar, apenas aquelas que não precisavam de passar,
inclusive o jaleco usado na farmácia. Assim, não ficavam muito feias as roupas
no corpo, já que passá-las não iria mesmo. Alimentação, desenvolvi um gosto de
comer pão com banana. Desta forma tinha no meu armário na pensão a minha janta
diária, que era pão de forma e banana. Bastava, então, passar de vez em quando
numa quitanda e comprar banana, pois o pão durava mais.
Foram quatro
meses que não desejo a ninguém, mas passou. Nesse período, parece que fui ver a
namorada apenas uma vez. Tudo isso me rendeu um apelido que, segundo meus
amigos, representava bem a minha vida naquele período. Eu era chamado de “hiena”
que, segundo consta, e era nisso que meus amigos se baseavam, esse animal come
cocô, transam uma vez por ano e vive rindo. Era assim que meus amigos me
enxergavam: uma alimentação sofrível, encontrava a minha namorada muito
esporadicamente e vivia de bom humor.
Terminado o
estágio, em primeiro de agosto de setenta e quatro fui efetivado como operador
de computador. Meu salário passou para oitocentos e doze cruzeiros e com a
grande vantagem de, agora ser remunerado pelas horas extras que fizesse. Como o
turno era de seis horas, caso eu ficasse apenas com a operação e abandonasse a
farmácia, teria mais dezoito horas por dia para me dedicar aos serviços
extraordinários. Optei por sair da farmácia e ficar somente trabalhando com
computadores. Com dezoito horas por dia disponíveis, sem ter a namorada por
perto, sem ter amigos e familiares para conviver, me sobrou tempo para ganhar
um pouco de dinheiro fazendo aquilo que tinha como meta: trabalhar com
computador. Como o birô funcionava as vinte e quatro horas do dia, todos os
dias da semana, era normal que nos finais de semana e nos feriados, a empresa
escalasse todos os operadores do time, já que o turno era de seis horas. Como
eu era o único que não tinha compromisso algum, nessas ocasiões eu era um dos
que mais trabalhava. Lembro-me de passar algumas datas importantes, como
carnaval, natal e ano novo “rodando” direto, pois os outros preferiam
aproveitar essas datas para descansar ou conviver com suas famílias.
A certa altura
desse período a empresa que eu trabalhava fez uma negociação com um birô que a
Honeywell Bull tinha na Rua General Jardim, Vila Buarque e acabamos mudando pra
lá, onde a Schema passou a funcionar com toda sua infraestrutura. Como todos
foram para o novo endereço, também eu estava agora trabalhando mais no centro
da cidade. Na época que mudamos para lá, a região ainda era considerada a boca
do luxo, em contraponto à boca do lixo, já que por ali concentrava os melhores
inferninhos de São Paulo. As ruas daquela região eram referencias para os
notívagos, Major Sertório, Bento Freitas, Rego Freitas, Araújo, General Jardim
e Marquês de Itu até hoje deve trazer saudades para as pessoas que aproveitavam
a noite de São Paulo. Mas a Vila Buarque era uma região com certa influência
cultural. Lembro-me que ao lado da empresa que trabalhava, funcionava o teatro
da Aliança Francesa, além de outros locais onde a cultura se expressava aqui e
ali. Eu, por compromisso profissional, tinha que viver naquela região. Aliás, a
única coisa que fazia por ali era trabalhar mesmo. Só andei frequentando aquela
região com objetivo de diversão depois de casado, que mais à frente relatarei
as circunstâncias. Lembro-me que num dia trinta e um de dezembro, a corrida de
São Silvestre, ainda acontecia na virada do ano, eu estava trabalhando, fechei
a empresa, deixei os computadores funcionando e fui ver a passagem dos
corredores que subiam a Consolação, de volta à Paulista.
Mas, o pano de
fundo de tudo isso era construir as condições para, enfim, me casar com a minha
namorada que havia ficado no Paraná. Com esse objetivo em mente, em agosto de
setenta e cinco troquei de empresa e passei a trabalhar numa multinacional cuja
sede ficava no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. Essa troca de empresa me
propulsou a propor para minha namorada que deveríamos nos casar em janeiro de
setenta e seis e não em dezembro de setenta e cinco como estávamos prevendo no
início do ano. Mas, por outro lado, me proporcionou uma tranquilidade
financeira maior, já que o salário que recebia nesta nova empresa, a Union
Carbide, era um pouco mais que o dobro do que recebia na empresa anterior,
ainda com a possibilidade de incrementar com as horas extras. Assim, foi que,
nesse clima de definição da data do casamento para o dia dez de janeiro de
setenta e seis, é que ficamos oficialmente noivos. Aliás, foi neste clima que
colocamos as alianças no dedo. Lembro que a cerimônia de noivado nossa foi
presenciada por uma pessoa que bateu uma fotografia minha e da namorada
colocando as alianças um no outro, mas não teve nada mais além disso. Por isso,
falo que não houve nada formal que pudesse indicar às pessoas que iríamos ficar
noivos. De repente aparecemos com as alianças nos dedos.
Então, só para
não nos perdermos, era o ano de mil novecentos e setenta e cinco, depois do mês
de agosto, quando decidimos que iríamos nos casar em dez de janeiro de mil
novecentos e setenta e seis. Ou seja, faltavam entre quatro e cinco meses para,
finalmente, concretizar aquilo que, afinal, foi o motivo que me levou a São
Paulo: me casar com minha namorada que havia ficado no Paraná.
Quem casa quer
casa, sempre é dito quando alguém está prestes a se casar. Mas decidimos nos
casar sem nem ao menos imaginar onde iríamos morar. Quem mora em uma cidade
grande como São Paulo sabe o quanto é difícil alugar uma casa, que era a única
opção. Alguns locadores de imóveis aceitavam que se fizesse uma caução de pelo
menos três meses, mas, a maioria deles só alugavam seus imóveis para quem
tivesse um fiador que possuísse alguma propriedade.
Nesta época eu
reencontrei um padre que fomos muito amigos no Paraná e que tinha chegado a São
Paulo depois de passar um tempo em Brasília. Esse padre, saudoso Maurílio
Maritano, era o pároco da Paróquia Santa Rita de Cássia, na Vila Joaniza,
região de Interlagos, perto da Estrada dos Zavuvus, que se tornou depois Avenida Yervant Kissajikian.
Depois de algum tempo afastado da Igreja, esse encontro me fez voltar a
participar das atividades paroquiais e, neste mesmo período, travei contato com
um casal de italianos que tinham vindos para o Brasil que, depois de ficar um
tempo trabalhando em Fortaleza, se estabeleceu em São Paulo. Como esse casal
era de Igreja e a mulher do casal era prima do Padre Maurílio, eles decidiram
por participar também na paróquia da Vila Joaniza. No primeiro contato que tive
com eles, descobri que morávamos perto. Eu morava numa pensão na Rua São
Vicente de Paulo e eles moravam num apartamento na Albuquerque Lins, que era a
primeira rua depois da que eu morava, em direção ao Pacaembu. Esse casal era
formado por Vivetta e Edoardo e tinham dois filhos: Elena e Riccardo. Claro que
ficamos amigos e foi um curso de noivo intensivo durante o tempo que convivi
com esse casal. Agradeço a Deus ter encontrado esse casal antes de me casar,
pois pude perceber que tipo de marido que eu queria ser.
Participava
naquela paróquia com todo o tempo que havia disponível, que era muito, já que
não tinha nenhum familiar em São Paulo. Com isso conheci todas as comunidades
que faziam parte daquela paróquia. Acompanhava aquele casal e o Padre em vários
locais do território paroquial e fiz amizades com vários moradores de várias
comunidades.
Quando
decidimos nos casar, um morador de uma dessas comunidades me ofereceu, para me
alugar, uma casa de três cômodos que ele havia construído nos fundos. Aceitei a
proposta, pois o aluguel era muito acessível e, o mais importante, não era
necessário depósito ou fiador. Não me lembro bem da localização, mas acredito
que seja no Jardim Domitila. Quando mudei de emprego e percebi que meus
rendimentos iriam melhorar comecei a pensar seriamente em alugar alguma coisa
mais no centro da cidade, já que a minha noiva não conhecia São Paulo e seria
temeroso leva-la para morar tão distante de onde eu iria trabalhar e, por isso,
deixa-la tanto tempo sozinha. Mas, o que fazer, se não tinha dinheiro para
fazer o depósito-caução e não conhecia ninguém que pudesse ser fiador?
Como a
probabilidade de conseguir dinheiro para a caução era ínfima, decidi tentar
descobrir alguém que pudesse ser meu fiador. Contei essa situação ao meu chefe
e ele me garantiu que resolveria meu problema, já que sua esposa era
proprietária de um imóvel na Vila Galvão, em Guarulhos e com isso ela teria
condições de fiar aquele contrato de aluguel. Fiquei todo esperançoso, mas meu
chefe conversou com sua mulher e ela se recusou a ser fiadora de uma pessoa que
nunca tinha visto mais gorda. Esse cara ficou tão chateado que decidiu me
ajudar na busca de um fiador. Agora eram duas pessoas que buscavam alguém que
pudesse fiar meu contrato de aluguel. Meu chefe acabou conseguindo que um
colega nosso, analista de sistema, que também tinha uma esposa com propriedade,
convencesse-a de ser fiadora minha. O imóvel objeto desse contrato era uma
quitinete localizada na Alameda Barros, Santa Cecília.
Meu casamento,
já disse, estava marcado para o dia dez de janeiro. Consegui resolver o
problema do aluguel já passava de quinze de dezembro, faltando menos de um mês
para o casório. Se não tinha a casa, lógico que também não tinha os móveis. Ou
seja, ia me casar no dia dez de janeiro e por volta do dia quinze de dezembro
ainda não tinha móveis para colocar na quitinete que acabara de alugar.
Em São Paulo
tinha uma grande loja chamada Ducal que vendia de tudo, inclusive móveis e
eletrodomésticos, aliás, era uma rede de lojas. Não sei qual o critério que
usei, mas foi nesta rede que decidi comprar os móveis que iria mobiliar nossa
quitinete. Encostei o umbigo no balcão da loja e comprei todos os móveis de uma
vez, que não era muito, visto que deveria mobiliar uma quitinete que era uma
sala em “L”, um banheiro, uma cozinha e uma área de serviço que mal cabia um
tanque de lavar roupas. Comprei na ocasião uma geladeira, um fogão, um armário
de aço para a cozinha, um jogo composto por uma mesa dobrável e quatro banquetas,
que usávamos para as refeições, um jogo de sofá com duas peças, sendo que a
principal formava uma cama de solteiro, quando os braços laterais eram puxados
para fora e os encostos eram colocados nas laterais, uma televisão, que só
transmitia em preto e branco, de quatorze polegadas, um colchão e um jogo de
quarto composto de uma cama, um armário e uma cômoda. A estante para colocar a
televisão eu não comprei porque uma das madrinhas do meu casamento prometeu que
iria dar. A compra de todos esses móveis e eletrodomésticos aconteceu por volta
do dia vinte de dezembro, e tinha que considerar os atrasos normais de entrega
nessa época do ano. A loja me prometeu entregar tudo nos primeiros dias de
janeiro, quando já estaria viajando para me casar.
Foi uma
satisfação muito grande ter resolvido o problema de ter onde morar e os móveis
da casa, mesmo que ainda por entregar. Pois, assim, eu poderia viajar para o
meu casamento. A minha viagem já estava marcada para o dia trinta e um de
dezembro, já que iria passar o ano novo lá e esperar para o casamento. Comprado
os móveis, então, viajei sossegado, sabendo que tinha uma grande chance de,
quando voltar casado, os móveis já terem sido entregues.
APRENDENDO A ...
... SER MARIDO
Perceberam que minha
noiva não participou, em nenhum momento, da definição de onde iríamos morar e
quais os móveis iríamos comprar, tudo eu tive que decidir sozinho. Isso, na
verdade, não foi por escolha minha. Gostaria que ela tivesse acompanhado toda
essa etapa, mas para isso ela precisaria viajar para São Paulo, o que seu pai
não admitia. Jamais seu pai admitiu que ela fosse me visitar em São Paulo.
Morei lá, enquanto namorava, por dois anos e meio, e nunca recebi a visita da
minha namorada ou noiva. Quando conheci aquele casal de italianos, tive uma
esperança de que ela fosse me visitar, até para que o casal a conhecesse, mas
minha esperança se esvaiu pela negativa do meu sogro.
Mas o casamento
aconteceu do jeito que havíamos preparado. Eu me casei sem terno, apenas com
uma calça comprada para a ocasião e uma camisa, nova também, mas nada especial,
inclusive com a manga arregaçada. Minha noiva, para surpresa minha e de todos,
apareceu para casar-se trajando uma calça comprida e uma blusa branca e, ao
invés de véu, trazia ornamentando sua cabeça, um lindo turbante branco com um
adereço do mesmo tecido que descia de sua cabeça até o meio do abdômen.
Duas crianças,
diziam todos, se casavam naquela cerimônia, realizada às onze horas da manhã de
um dia chuvoso de janeiro. Eu, vinte e um e ela dezoito anos. Olhando a idade
que as pessoas se casam hoje, realmente éramos duas crianças. Mas era tudo o
que queríamos naquele momento. Não víamos a hora de isso acontecer. Era para
nós como se fosse uma carta de permissão para fazermos tudo o que tínhamos
vontade de fazer, inclusive nos relacionarmos sexualmente. O casamento no civil
havia acontecido às nove da manhã e por volta da uma da tarde estávamos dentro
de um táxi, rumo à lua-de-mel.
Lua-de-mel é
maneira de falar. Quem disse que tínhamos condições de sair para viajar. Mas,
da maneira como tudo aconteceu, estávamos, realmente, partindo para uma
lua-de-mel. Minha, agora, esposa, não conhecia a cidade onde ela iria morar, eu
não conhecia direito a casa onde iria residir. Depois de quase três anos longe
um do outro, finalmente, agora tínhamos todo o tempo do mundo somente para nós.
Então, independente do lugar para onde íamos, poderia ser considerado que
estávamos em lua-de-mel. Mas, apesar disso, tínhamos combinado que entre a
cidade que nos casamos, Colorado, Paraná e a cidade onde iríamos morar, São
Paulo, passaríamos duas noites em Presidente Prudente, interior de São Paulo.
Chegamos na
cidade da nossa lua-de-mel por volta das cinco da tarde e escolhemos para ficar
num dos melhores hotéis existente à época, Hotel Peretti, com o propósito de
ficarmos por lá duas noites e seguir para São Paulo, na segunda-feira, dia
doze. O hotel, para nosso padrão da época era um luxo só. Tudo do bom e do melhor,
cama boa, roupa de cama boa, travesseiros bons, nada a reclamar. Reparamos tudo
isso quando saímos, pois quando entramos no hotel não estávamos interessados em
perceber sua qualidade. Queríamos, na verdade, era outra coisa. Estávamos
ansiosos para consumar o casamento e, finalmente, perdermos a virgindade.
Fui tomar banho
primeiro, depois foi minha esposa e, enquanto isso, sorvia aquele momento com a
maior ansiedade. Tentava imaginar o que sairia daquele banheiro. Sairia dali
uma mulher nua, uma mulher enrolada numa toalha ou o quê? Para meu desespero
saiu daquele banheiro uma mulher linda, tipo mignon, mas coberta por uma
camisola, ou um peignoir, como me
corrigiu recentemente minha esposa, que tinha mais botão que a batina do Santo
Papa. Mas, não foi problema, quando foi necessário, aqueles botões se abriram
com muita facilidade. Finalmente iniciamos uma tentativa de ter uma relação
sexual do jeito que sempre imaginávamos. Tadinhos de nós! Eu sem saber o que
fazer, ela, menos ainda. Ficamos naquela tentativa louca de penetração, sem
conseguir e sem saber como. A certa altura, estávamos, eu e minha noiva/esposa,
ali, sem conseguir completar o ato, e diante do impasse um olhou para o outro
demos uma risada e decidimos que não daria para continuar. Estávamos os dois
machucados e não teríamos condições de continuar, ou tentar mais nada até na
quinta-feira, lembrando que estávamos no sábado. Resumo da ópera: na nossa
primeira noite de núpcias, estávamos, as onze da noite, procurando uma farmácia
a fim de comprar remédio para passar em nossos órgãos genitais. Compramos os
remédios, jantamos e voltamos para o hotel. Só aí percebemos que no quarto que
estávamos tinha apenas duas camas de solteiro. Juntando-as formava uma cama de
casal, mas preferimos dormir os dois juntinhos numa das camas de solteiro e
assim terminamos nossa primeira noite de casados.
Nosso plano de
ficar duas noites naquela cidade meio que ruiu, pois, não tínhamos planejado
nada além de ficar no hotel, curtindo um ao outro e isso, estava mais ou menos
subentendido, significava fazer muito sexo, para matar nossa sede dele. Como o
sexo deixou de ser uma possibilidade, a cidade perdeu o encanto. Por outro
lado, algumas pessoas que foram ao nosso casamento, que moravam em São Paulo,
estariam voltando no dia seguinte e nós queríamos evitar de viajar junto com
eles. Assim, decidimos por antecipar um dia nossa ida para São Paulo e, na hora
que venceu a diária no hotel, fomos para a rodoviária a fim de pegar o próximo
ônibus. Por volta das duas da tarde já estávamos embarcados rumo à cidade que
iríamos viver durante quatorze anos.
Chegamos por
volta das vinte horas em nossa quitinete, sem saber o que íamos encontrar.
Pois, quando fui viajar, deixei a chave na portaria e pedi que quando os móveis
chegassem, o porteiro abrisse a porta e deixasse os entregadores colocar os
móveis dentro de casa. Tinha quase certeza que não teria sido entregue nada.
Quando subimos, observamos que havia sido entregue pouca coisa, dentre elas o
jogo de quarto, desmontado, o colchão, o fogão e a geladeira. A estante de
televisão, presente da madrinha, também havia sido entregue.
A única
felicidade era que estávamos na “nossa” casa, onde fomos o primeiro morador,
pois se tratava de um prédio recém-construído, tudo cheirando a novo, inclusive
a gente. Fora isso, não tínhamos uma cama, apenas o colchão. Não tínhamos
panela, prato, talheres, mantimentos etc. sequer tínhamos uma cortina na
quitinete, para nos proteger dos curiosos. Tivemos que improvisar um lençol que
fazia parte da bagagem da minha esposa, em seu enxoval. Naquela noite saímos
para comer alguma coisa e fomos dormir como dois irmãos, já que estávamos os
dois machucados nas nossas partes baixas.
Com o passar
dos dias o restante dos móveis foi sendo entregue, mas o montador do quarto não
aparecia. Decidi, então, montar o quarto e todos os móveis que dependiam de
montagem. Aos poucos as coisas foram entrando nos eixos, os presentes que
ganhamos no casamento foram enviados pelo meu sogro, através de uma empresa que
transportava passageiro e atuava no ramo de transportes de cargas. Três dias
depois que chegamos, os presentes também chegaram. Lembro-me que ganhamos três
panelas de pressão e uma delas foi entregue amassada. Também, dentre os
presentes havia quatro faqueiros completos, mas nenhum prato. Tivemos que
comprar pratos para a primeira refeição em casa e ficamos muito tempo dando
faqueiro de presente para as festas de casamento que éramos convidados. Depois
que terminei de montar o quarto, finalmente fomos dormir na cama, na primeira
noite de núpcias de verdade. Era quinta-feira e, de tanta atividade, a cama
terminou por quebrar uma das travessas do estrado. Para resolver isso, pegamos
a panela de pressão que chegou amassada e colocamos de calço sob a cama e
dormimos assim, por vários meses.
Com as coisas
entrando nos eixos era hora de voltar a trabalhar. Na virada de ano a empresa
em que trabalhava mudou a área de processamento de dados para outra unidade e,
a minha volta ao trabalho seria já nesta nova instalação. A quitinete que
aluguei ficava em Santa Cecília e eu trabalhava na Paulista. A partir de agora,
meu local de trabalho seria na Vila Arapuá, divisa com São Caetano do Sul.
A empresa que
eu trabalhava, Union Carbide, à época era dona da marca Eveready, cuja fábrica
de pilhas e lanternas estava instalada numa unidade que ficava na Rua Epiacaba,
Vila Arapuá. Além dessa linha de pilhas e lanternas, a empresa contava com
algumas fábricas de produtos químicos pelo Brasil e uma fábrica de polietileno,
em Cubatão, que era, pelo menos aqui, seu carro chefe em termos de faturamento.
Tudo isso era administrado através de um escritório montado no Conjunto
Nacional, na Paulista, onde funcionava também o Centro de Processamento de
Dados, no vigésimo terceiro andar daquele prédio. O CPD funcionava ali com toda
sua estrutura e todos os seus departamentos. Todos os departamentos poderiam
funcionar apenas durante o horário comercial. Entretanto, o setor de produção,
que envolvia perfuração/digitação de documentos e operação, tinha dificuldades
para funcionar naquele edifício, nos horários que deveriam favorecer a
segurança. Isso causava transtornos e a empresa decidiu por mudar o setor de
produção do CPD para a unidade da Vila Arapuá, que, por ser localizada às
margens da Via Anchieta era chamada internamente de Unidade Via Anchieta.
Como eu era
operador de computador, portanto da produção, passei a trabalhar naquela
unidade. O turno que passei a fazer era das dezesseis as vinte e quatro horas. Isso
trazia alguns transtornos. Primeiro, para chegar naquele endereço era
necessário pegar um ônibus na Alameda Barros, onde morava, descer na Praça do
Correio, pegar outro ônibus no ponto inicial e descer no ponto final, bem em
frente à fábrica da Eveready. Mas o problema principal era a volta. Não sei se
é assim ainda, mas naquela época, os ônibus rodavam com certa periodicidade
durante o dia e à noite, funcionava o “negreiro”, como era chamado o ônibus que
transitava durante a madrugada em intervalos até três vezes maiores do que
aqueles praticados durante o dia. Como o último ônibus normal saía à meia-noite
e vinte, era um sufoco muito grande encerrar todo o trabalho a tempo de pegar o
último horário. Trabalhávamos eu e outra pessoa, encarregada de conferir os
documentos que seriam processados, que dávamos o nome de “bater lote”. Quando
dava algum problema, tínhamos que nos submeter a esperar o negreiro ou pedir
carona na Via Anchieta, para chegar no Ipiranga, pois ali as opções eram
maiores. Lembro-me que certa noite pedimos carona para um taxista, que só
percebemos isso quando ele parou. Como sempre, não tínhamos dinheiro, o taxista
entendeu nosso problema e nos levou até o museu do Ipiranga e de lá seguimos
para nossas casas.
Com essa rotina
de trabalho, apesar de fazer muitas horas-extras, tinha a manhã toda disponível
para ficar com a minha esposa e acompanhá-la no início de sua vida como
“dona-de-casa”. No primeiro dia que tive que trabalhar, minha esposa foi
preparar nossa refeição. Colocou o feijão no fogo e, já era quase uma da tarde
e o almoço não ficava pronto. Quis saber o que estava acontecendo e ela me mostrou
o feijão que estava branco ainda e, estava esperando que escurecesse. Pedi para
ela me mostrar o pacote de feijão e vi que se tratava de feijão jalo branco.
Dei uma trolada básica nela, dizendo que se ela quisesse que aquele feijão
ficasse escuro teria que descer no mercado e comprar um vidrinho de corante,
pois aquele feijão jamais iria ficar escuro apenas por cozinhar. Acho que ela
sempre viu sua mãe cozinhar feijão carioquinha ou outro mais escuro e imaginou
que aquele que ela havia comprado também ficaria da mesma cor.
Mas fomos
tocando a vida. Financeiramente tínhamos tudo sob controle. As finanças
funcionavam assim em casa: ganhava um salário base de Cr$ 3.120,00, que
acrescentando as horas-extras e sofrendo os descontos de praxe, dava um líquido
mensal em torno de Cr$ 3.300,00. O aluguel que pagava era de Cr$ 800,00 e, como
era um prédio de apartamentos, tinha também o condomínio que era pago
trimestralmente Cr$ 1.200,00, ou seja, Cr$ 400,00 por mês. A prestação dos
móveis, lembro-me como se fosse hoje, era de Cr$ 1.171,00. Então, somando os
valores fixos das despesas dava Cr$ 2.371,00, que subtraídos dos rendimentos
sobrava algo em torno de Cr$ 930,00. Essa era a disponibilidade de grana que
tínhamos para todas as outras coisas, tirávamos daí os gastos com mercado,
feira, remédios, manutenção da casa etc. Logo, era necessário controlar tudo o
que iria gastar para não passarmos apuros.
Foi nessa
ocasião que minha esposa sugeriu uma maneira de utilizar nossos recursos de
forma bem racional. Graças a Deus aplicamos a ideia dela. A tecnologia
desenvolvida era de simples entendimento e de fácil aplicação, consistia em
prever absolutamente tudo o que seria gasto. Começamos por elaborar um cardápio
de tudo que iríamos consumir durante a semana seguinte e, com base neste
cardápio, fazíamos o mercado para comprar apenas o necessário e tudo o que era
possível comprar em feira-livre, também era comprado lá em porções suficientes
para não faltar e não sobrar nada. Assim, se, por exemplo, numa determinada
semana fôssemos comer frango em três dias, carne bovina em três dias,
comprávamos um frango, e um quilo e meio de bife. O frango era picado em três e
a carne dividida em três. Assim comíamos proteína todos os dias e chegava no
final de semana não tinha sobrado nada, nem faltado. A mesma coisa com as
verduras, definíamos que tipo de salada queríamos durante a semana seguinte e
comprávamos apenas o necessário. Assim, era comum a gente ir à feira e comprar
uma cenoura, uma beterraba, um pé de alface, um maço de almeirão, dois tomates
e dessa forma fazíamos salada durante a semana inteira e não desperdiçávamos
nada. Com essa “super” tecnologia, conseguimos varar aqueles anos iniciais,
vivendo com pouco dinheiro, mas, em momento algum deixamos de ter o necessário
para fazer tudo o que era preciso fazer.
Outros aspectos
da nossa vida estavam também correndo muito bem. Tomei a decisão, desde cedo de
procurar ser um marido o mais perfeito possível e, para isso, era necessária
muita vigilância. Na questão sexual, fomos tateando, aprendendo um com o outro
e, quem disser que o primeiro ano de casado é a melhor fase em termos sexuais,
vai receber uma reprimenda minha. Nos primeiros anos de casamento,
especialmente se você se casar virgem, o relacionamento sexual não tem nada de
super, como as pessoas dizem. O sexo funciona nesse período, como uma maneira
de o casal se tornar mais íntimo, pois, se o casal está mesmo a fim de ser uma
unidade, o ato sexual será o ápice de todo o entendimento. Mas, a relação
sexual como um ato físico que leva a pessoa ao êxtase, está muito distante
durante esses anos iniciais. Entretanto, a relação sexual nesse período
funciona como um meio do casal falar a linguagem mais perfeita que existe,
pois, somente quando se está perfeitamente integrado, corpo, coração, alma e
sentimento é que o casal consegue praticar um ato sexual sem culpa ou sem
qualquer outro sentimento que não o de completar um ao outro. Assim, então, o sexo
durante esse período é muito, mas muito importante mesmo, para a consolidação
do casamento, mesmo que o sexo seja, nesta época, muito abaixo do que aquilo
que a maioria das pessoas proclamam. Essa importância se dá porque é nesse
momento que o casal se entrega de fato, deixando-se penetrar um no outro, seja
física ou metaforicamente, mas o fato é que uma relação sexual assim, funciona
como uma maneira de os dois viverem a experiência palpável de se tornar uma só
carne.
Ainda em
setenta e seis, no segundo semestre, minha esposa começou a trabalhar.
Cadastrou-se em uma agência de serviços temporários e, nestas condições,
prestou serviços em várias empresas, em vários locais diferentes de São Paulo.
Lembro-me que um desses locais que ela trabalhou foi em uma loja de departamentos
que estava instalando sua primeira unidade no Brasil, no shopping que era
inaugurado naquele ano. O Shopping Ibirapuera seria inaugurado em agosto de
setenta e seis, juntamente com a primeira loja brasileira da C&A, que a
minha esposa trabalhou desde antes da abertura até algum tempo depois.
Tínhamos
consciência de que o trabalho da minha esposa era temporário. Nessas condições
não deveríamos e não poderíamos incluir os rendimentos dela no orçamento da
família, assim como não contávamos com os meus rendimentos de horas-extras,
quando esses fugissem da média mensal. Esses rendimentos extras, seja com
excesso de horas-extras, seja com aquilo que minha esposa ganhava, aplicávamos
em itens extras também, que, se, de repente, esses extras não mais existissem,
não iríamos sofrer. Com esse critério, chegamos a comprar um carro, usado, um Volkswagen
ano sessenta e nove, branco. Um carro bem velho que tinha seu preço bem mais
baixo que o normal, tanto que conseguimos comprá-lo à vista. Entramos o ano de
setenta e sete motorizados.
Motorizados,
decidimos partir para aventuras bem interessantes. Durante todo o tempo que
vivi sozinho em São Paulo, praticamente não conheci a cidade. Um pouco porque
não tinha companhia e muito por não ter dinheiro. Agora, com a situação um
pouco mais confortável, e com um fusca na mão, era possível sair pela city e explorá-la. As primeiras
incursões eram de exploração mesmo. Pegávamos o carro no sábado à tarde e
saíamos pela cidade com o objetivo de nos perdermos por aqueles rincões daquela
selva de pedra. Embrenhávamos por bairros, vilas, becos e lugares que jamais
havíamos passado e, quando encontrávamos uma rua, avenida ou lugar que tivesse
passado de ônibus, ou que fosse conhecida de alguma forma, se ainda fosse cedo,
tentávamos nos perder de novo, se já fosse tarde, voltávamos para casa. Tudo
isso sem GPS, Google Maps etc.
Nesta época
aproveitamos também para conhecer lugares famosos que sempre tivemos vontade de
conhecer, mas era de difícil acesso. Também conhecemos lugares inusitados. Me
lembro que existia uma avenida na zona leste famosa por ser um ponto onde os
travestis se expunham quando os carros passavam. Falei para minha esposa que
tinha curiosidade para conhecer esse point
e ela também se interessou, ou fez que se interessou, para me agradar. Nos
rumamos para lá e realmente pudemos confirmar que era verídica a informação,
pois, bastava um veículo se aproximar que os travestis abriam as roupas que
cobriam seus corpos para se mostrarem somente em trajes íntimos. Quando o carro
parava, eles vinham correndo em direção ao veículo e, no nosso caso, eles
ficavam sempre decepcionados por perceber que tinha uma mulher no carro, com
isso desistiam da abordagem e nós não deixaríamos mesmo existir a aproximação.
Noutra ocasião,
fomos “descobrir” outra curtição que acontecia em outro point bastante estranho da cidade. O Detran, que à época funcionava
perto do parque do Ibirapuera, utilizava um espaço existente do outro lado da
Avenida Vinte e Três de Maio como pista de prova de direção e estacionamento. À
noite, ouvimos falar, então, que esse estacionamento era cheio de carros, mas
em cada carro existia um casal dentro fazendo sexo. Segundo as informações, os
carros chegavam a balançar pelas atividades dentro deles. Isso nos chamou a
atenção e fomos lá conferir. Vimos que tudo que nos informaram era verdade e
até namoramos um pouco dentro do carro, mas não passamos disso.
Foi por essa
época também que minha esposa, ainda como temporária, começou a trabalhar em
uma empresa chamada Home & Family, que vendia produtos de limpeza e
utilizava a técnica de marketing de
rede, que consiste em conquistar pessoas que vendam seus produtos ou consigam
mais vendedores para vender os produtos da empresa. Desta forma, a pessoa que
vende os produtos ganha sobre suas vendas e, se conseguir novos vendedores,
ganha também sobre as vendas desses vendedores conquistados. Fez muito sucesso
no Brasil e, em certa ocasião virou febre. Mas minha esposa foi trabalhar
temporariamente nesta empresa, que ficava na Rua Jorge Chammas, Vila Mariana,
no setor administrativo. Depois, acabou por ser efetivada na função.
Durante o
período em que minha esposa trabalhou nesta empresa, atamos um relacionamento
bastante profícuo com um casal de argentinos que se tornaram nossos amigos de
fé e para sempre. Hoje eles moram na Espanha, na cidade de Málaga, mas moravam,
até há alguns anos na Itália, onde fomos visitá-los em dois mil e onze. Mas
naquela fase da nossa vida, foi a amizade mais importante que construímos, e
deixou marcas profundas em nós. Formamos um quarteto bem interessante e tocamos
o terror naquela cidade maluca.
Carlos e Anamaria,
esse era o casal de argentinos que se fizeram nossos irmãos. Ele vivia de fazer
frete daqui pra lá e de lá pra cá, cada dia com um veículo diferente. Ela
trabalhava na mesma empresa que a minha esposa, ocupando a função de chefe do
setor. Eram biologicamente alguns anos mais velhos que nós, mas psicologicamente,
até hoje acho que eles tinham a metade da nossa idade, sobretudo o Carlos. Falo
isso, porque esse nosso amigo estava sempre propondo e fazendo coisas que uma
pessoa da idade dele jamais proporia, ou faria. E a gente, nós três, eu, minha
esposa e a esposa dele, embarcávamos nas maluquices desse nosso amigo.
Tenho bem claro
em minha memória a seguinte cena: nós, dentro de uma Kombi velha amarela, de
propriedade do Carlos e da Ana, percorrendo a Avenida Paulista, por volta das
oito horas da noite de uma sexta-feira, um trânsito ainda carregado para o
momento. De repente, na espera de um semáforo, o cara desce da Kombi, vai lá
atrás, abre a tampa do motor e começa a mexer em alguma coisa. Atrapalha pra
valer o trânsito, faz todos os carros desviarem daquela estrovenga parada numa
das avenidas mais importantes do país. Lá pela terceira ou quarta vez que o
semáforo abriu, nosso amigo, simplesmente, fechou a tampa do motor da Kombi,
entrou, deu partida e saiu. Perguntei a ele o que tinha acontecido e ele me
respondeu que, não era nada. Apenas queria atrapalhar o trânsito. Veja se a
idade psicológica desse grande amigo, não era menor que a nossa.
Mas, foi com
esse casal que criamos um laço bem concreto de amizade. Estávamos em situação
bastante parecida. Ambos os casais sozinhos naquela cidade, nós com os
familiares a, pelo menos, oitocentos quilômetros. Eles com os familiares mais
perto, em Buenos Aires. Assim, a química foi perfeita. Foram meses intensos de
convivência. Aproveitamos ainda mais essa amizade para conhecer melhor aquela
cidade. Foi, com esse casal que eu e minha esposa fomos a primeira vez em um
daqueles inferninhos existentes na região onde eu trabalhei quando solteiro.
Veja essas histórias.
Certa noite,
nós quatro decidimos que queríamos ir assistir a um show adulto. Como eu sabia
onde ficava uma boate que tinha esse tipo de show, pois havia trabalhado perto
dela, fui o encarregado a indicar aonde iríamos. Primeiro problema: minha
esposa foi barrada na porta da boate. Motivo: pouca idade. Aquela criança não
podia ter dezoito anos, pensou o leão de chácara dali. Depois que minha esposa
mostrou os documentos, conseguimos entrar os quatro e nos sentamos numa mesa,
bem em frente ao palco onde iria acontecer a atração principal do show. Ocorre
que a atração principal do show, lógico, só acontece no final do espetáculo. Minha
esposa, a certa altura, chamou um rapaz que estava servindo as mesas e
perguntou: que horas as mulheres iriam entrar para apresentar o quadro
principal? Ninguém entendeu nada, nem o garçom, nem nós que estávamos ali
naquela mesa. Pelo jeito o rapaz ficou mais perplexo ainda ao ver uma menina
novinha, bonitinha, acompanhada de alguém que, no mínimo seria seu namorado,
junto com um casal, dando toda a pinta de ser também um casal hétero,
desesperada para assistir a um show feminino naquele inferninho. Só ficamos
sossegados quando minha esposa nos disse que estava com muita vontade de ir ao
banheiro para fazer xixi, mas que não iria, de jeito nenhum, na toalete daquele
inferninho. Como ela sabia que os dois homens daquela mesa não iriam embora
antes de assistir à atração principal, estava ansiosa para que começasse logo.
Uns vinte minutos depois da pergunta a mulher veio fez a parte dela num show
grotesco como era de se esperar. Vimos aquilo e fomos embora, nossa casa não
era muito longe dali. Minha esposa, então, fez o xixi dela e encerramos a noite
em nossa quitinete.
No final do ano
de setenta e sete, o Corinthians estava sem ganhar um título paulista desde
cinquenta e quatro, ou seja, já há quase vinte e três anos sem título.
Finalmente o timão iria disputar uma final de campeonato, contra a Ponte Petra.
Os jogos seriam realizados nos dias cinco, nove e treze de outubro daquele ano.
No jogo do dia cinco o Corinthians ganhou de um a zero e se ganhasse no
domingo, dia nove, se sagraria campeão. Havia meio que uma corrente a favor daquela
equipe, e como era um time da capital, contra um time do interior, a torcida
ficava um pouco favorável ao time da capital. Nós quatro, eu, minha esposa,
Carlos e Ana, por sugestão do Carlos, planejamos ir passar aquele final de
semana em São Sebastião, cidade a mais ou menos duzentos quilômetros de São
Paulo. Rumamos pra lá naquela Kombi amarela velha, ainda no sábado. Levamos uma
televisão branco e preto de quatorze polegadas, para assistir a grande final do
campeonato paulista que, pensávamos, seria ganho pelo Corinthians finalmente. Dormimos
de sábado para domingo naquela Kombi, em uma cama improvisada e de manhã quando
fomos testar a TV para assistir ao jogo mais tarde, não tinha sinal, mesmo com
uma carrada de Bombril na antena. Não queríamos perder a partida e, se
voltássemos para São Paulo naquele momento, conseguiríamos assistir, pois foi
feito um acordo que seria transmitida a partida mesmo para a praça onde o jogo
estava sendo realizado. Acontece que estávamos a mais de três horas de casa e
tínhamos pouco mais que três horas de tempo e, pior ainda, estávamos com uma
Kombi velha, e um motorista que não tinha habilitação brasileira para
dirigi-la. Para conseguir fazer aquele percurso, no tempo disponível, seria
necessário desenvolver uma velocidade que chamaria a atenção dos policiais na
Dutra. Nessa época não havia radares,
pelo menos na quantidade que existe hoje. Quando existia um, em alguma rodovia,
virava notícia nacional. Então, nós embarcamos naquela Kombi e saímos em
disparada rumo a São Paulo. Nosso objetivo era assistir ao jogo do Corinthians
naquela tarde. Nosso amigo pisava fundo no acelerador, mas não podia ser pego,
pois, primeiro atrasaríamos para assistir ao jogo, segundo porque ele não tinha
habilitação brasileira. Para evitar de ser parado nos postos policiais, ao se
aproximar ele esperava um caminhão alcançar a Kombi e seguia o caminhão, no
lado contrário à margem onde estava o posto policial. Passado pela polícia,
nosso amigo saia em disparada novamente. Como havia dois postos policiais no
percurso que fizemos, foi necessária essa manobra em dois locais diferentes da
Dutra.
No fim,
conseguimos chegar em casa, na nossa quitinete para assistir ao jogo. Quando
ligamos a televisão e nos sentamos no sofá, o juiz soou o apito inicial e o
jogo começou. Nosso filho mais velho pulava feito um corintiano maluco dentro
da barriga da minha esposa. Era o sétimo mês de gravidez dela e fizemos tudo
isso sem que ela sentisse qualquer coisa. O Corinthians perdeu por dois a um
esse segundo jogo, obrigando a realização de um terceiro jogo, na quinta-feira
seguinte, quando o timão se sagrou campeão depois de um gol do Basílio, o
grande herói do título, depois do Rui Rei da Ponte Preta, que, dizem as más
línguas, foi o décimo segundo jogador do alvinegro paulistano e que acabou
sendo contratado pelo Corinthians para a temporada do ano seguinte. Até hoje os
corintianos reverenciam o Basílio, mas se esquecem do Rui Rei, que foi
fundamental para a vitória do “curingão” naquele último jogo. Isso porque o Rui
Rei foi expulso neste jogo e muitos juram de pés juntos que essa expulsão foi
cavada pelo próprio jogador, para favorecer o Corinthians.
Nosso filho
mais velho nasceu quase três meses depois, em doze de janeiro e o mais novo
nasceu em quatorze de novembro de oitenta. Ambos são são-paulinos, não sei se
aquele episódio teve alguma influência na opção deles, especialmente do mais
velho. Mas, naquele domingo, fizemos aquela loucura, assistimos ao jogo, vimos
o Corinthians jogar como nunca e perder como sempre e a vida continuou,
inclusive nós quatro nos curtindo muito.
Esse casal foi
muito importante, num período sensível para nós, mas, infelizmente o perdemos
do radar e, depois de algum tempo conseguimos nos reencontrar através das redes
sociais e reatamos os contatos com o mesmo entusiasmo daquele tempo. Em dois
mil e onze, fizemos uma viagem relativamente longa pela Itália e, dos dezoito
dias que ficamos por lá, quatro deles passamos na casa desse casal, numa
cidadezinha chamada Torre de Picenardi, região de Cremona. Esses quatro dias
que passamos na casa deles foram muito intensos. Usando como base aquela
bucólica cidade, na companhia dos nossos grandes amigos Carlos e Anamaria,
visitamos Verona, Mantova, Brescia, Veneza, e Sirmione, onde se localiza o Lago
de Gardia, passeios interessantes. Mas nada foi mais interessante que o fato de
termos nos encontrado com aquele casal e revivermos aquele período em que
nossos filhos ainda nem tinham nascidos ou eram recém-nascidos. Neste encontro,
nós quatro, depois que os filhos já estavam todos casados, vivemos intensamente
os quatro dias que nos couberam viver. Para não passar em branco, decidimos por
fazer uma “faroreira”, na cidade de Verona, que os italianos cultuam como a
cidade da Julieta do Romeu. Fizemos um super lanche dentro do carro, para
relembrar os idos de mil novecentos e setenta e sete. Refizemos, enfim, aquela
sinapse e nos sentimos como se não houvesse descontinuado aquele
relacionamento.
Viver um
período sem que tivéssemos filhos foi muito importante para que pudéssemos nos
conhecer como duas pessoas que vinham de famílias totalmente diferentes, com
formação muito diferente e com um universo inteiro para descobrir um no outro.
O casamento é
uma coisa estranha, pois duas pessoas que foram criadas por famílias
diferentes, de origens diferentes, com valores diferentes, não tendo nada a ver
uma com a outra, de repente se juntam e vão viver assim o resto de suas vidas.
Por isso esse tempo que eu e minha esposa ficamos juntos “solteiros” foi muito
importante para construir a base desse relacionamento. Depois vêm os filhos e,
se não houver uma boa base, as coisas podem degringolar.
Embora isso,
quando os filhos nasceram não deixamos de nos comportar com a mesma
impetuosidade que imprimíamos antes deles nascerem. Jamais a presença de nossos
filhos nos proibiu de fazer coisas, muitas coisas, coisas loucas e loucuras que
jamais faríamos hoje. Dentre as tantas, a que mais nos causou prazer e nos
trouxe dividendos emocionais que ficaram marcados de forma definitiva em nossas
vivências, diz respeito a acampar.
Meu filho mais
velho nasceu em mil novecentos e setenta e oito e quando ele nasceu nós não
tínhamos carro, mas no início de setenta e nove adquirimos mais um fusca. Quem
leu aí pra cima, viu que fui proprietário de um fusca sessenta e nove, logo no ano
em que nos casamos, setenta e seis. Esse carro foi vendido e torrado inteiro na
compra de móveis e enxoval para esperar o primeiro filho. Ficamos em torno de
um ano sem carro e, quando foi possível comprar outro, decidimos por comprar
também um fusca, com uma diferença apenas: o carro que compramos era dez anos
mais velho que o anterior. Isso mesmo, agora éramos proprietários de um Fusca
cinquenta e nove.
Cinquenta e
nove foi o ano em que a Volks fabricou pela primeira vez o fusca no Brasil.
Como não poderia deixar de ser, a tecnologia alemã estava impregnada naquele
primeiro modelo, muito mais que nos fabricados nos anos seguintes. Começava
pela forma como se dava a partida no veículo. Existia uma chave que deveria ser
colocada na ignição e girar, da mesma forma que é feita nos demais fuscas,
entretanto, o motor não ligava com o girar da chave, existia um botãozinho que
era necessário acioná-lo para que o motor funcionasse. Certa feita fomos a uma
churrascaria que havia na Rua Nestor Pestana, deixei aquele fusca no
estacionamento, entreguei a chave e saí tranquilamente. Depois do almoço,
voltamos e o manobrista me falou que não conseguiu fazer funcionar o carro
porque a bateria havia arriado. Para estacionar ele teve que empurrar. Só aí me
lembrei que não havia alertado o manobrista sobre o botão que deveria ser
acionado para que o motor funcionasse.
Era esse carro
que possuía quando o meu segundo filho nasceu. Com este carro fazia tudo,
literalmente. Nessa mesma época me associei a um clube de campo que ficava no município
de Biritiba-Mirim. De onde morávamos em São Paulo até Biritiba-Mirim a
distância era em torno de cento e dez quilômetros e o camping ficava sete
quilômetros depois da cidade, ou seja, percorríamos quase cento e vinte
quilômetros para acampar.
Todo santo
final de semana, a gente saía de casa no início da noite de sexta-feira e nos
rumávamos para aquele clube de campo, onde mantínhamos uma barraca armada em um
determinado box. Aquele fusca cinquenta e nove era herói, colocamos um
bagageiro no bicho e ali colocávamos toda a bagagem que era composta de
apetrechos necessários para dois adultos, uma criança de três anos e de uma
criança de quarenta dias. Isso mesmo, essa nossa vida de camping iniciou-se
quando meu segundo filho tinha apenas quarenta dias. Era berço, carrinho de
bebê, fraldas de pano, as descartáveis ainda eram muito caras, mamadeiras,
fogareiro, comida etc. Tudo aquilo que era necessário para passar três dias. A
única coisa que levávamos a menos era a barraca, já que essa ficava armada por
lá e trazíamos apenas os quartos.
Às
sextas-feiras chegávamos lá exaustos e mal dava tempo de descarregar a bagagem
do carro, armar os quartos, comer alguma coisa, cuidar das crianças e não
tínhamos ânimo para mais nada. No sábado de manhã, enquanto minha esposa e as
outras mulheres davam um trato em tudo, normalmente os homens jogavam futebol e
depois fingíamos que ajudávamos um pouco nossas mulheres, almoçava e pegava uma
piscina, que nesse camping tinha até uma de água corrente. Nessa época o filho
mais velho já curtia água. Assim passávamos os finais de semana. No sábado à
noite, geralmente o pessoal do camping preparava algum evento num espaço social
que a gente chamava de Clube, sendo que no final de semana de carnaval esse
espaço era utilizado para bailes noturnos e matinés.
Não me lembro
quanto tempo levamos essa vida, mas sei que foi uma época interessante em que
durante a semana eu praticamente não via meus filhos, pois quando saía de casa
eles ainda não tinham acordado e quando chegava eles já estavam dormindo. O
final de semana, então, era o momento que a gente se curtia muito.
Essa época foi
especialmente marcante em minha vida porque foi quando decidimos que
deixaríamos de morar de aluguel em São Paulo e partimos para adquirir nosso
próprio apartamento. Hoje, um pouco distante daquilo, não sei se foi muita
vantagem. Quando morava de aluguel, sempre estava próximo do serviço, pois não
fazia diferença pagar aluguel longe ou perto da empresa em que trabalhava, já
que os preços se equivaliam. Então, sempre optamos por morar perto da empresa
em que trabalhávamos. Quando minha esposa trabalhava fora, optávamos por morar
perto da empresa dela, quando ela não trabalhava fora, optávamos por morar
perto da minha empresa.
Mas, nesta
época decidimos por adquirir um apartamento e fomos atrás de algum que coubesse
em nosso bolso. Isso significava morar longe de tudo. Para quem conhece um pouco a cidade de São
Paulo, vou dar algumas referências para que entendam o drama. O último
apartamento alugado que morei naquela cidade era na Rua Doutor Plinio Barreto,
que era uma alça da Avenida Nove de Julho, que desviava de um viaduto que
passava por sobre a Praça 14 Bis, na Bela Vista, o famoso Bixiga, bem próximo
da sede da Escola de Samba Vai-Vai, que nem sei se ainda está por lá. Nessa
ocasião eu trabalhava na Rua Sete de Abril, que saia da Praça da República e
terminava na Xavier de Toledo, bem no centro de São Paulo. A distância da minha
casa até o trabalho não passava de dois quilômetros e era até difícil não ir a
pé. Só deixava de caminhar para ir e voltar do trabalho, quando estivesse muito
cansado, ou quando era muito tarde da noite. Nessas situações tinha que ir até
a Praça das Bandeiras para pegar um ônibus que circulasse pela Nove de Julho.
Quando
decidimos por comprar um apartamento próprio, um dos que coube no orçamento e
que acabamos adquirindo ficava na Rua Geraldo Beting, Jardim Germânia, Santo
Amaro, divisa com Campo Limpo, quase vinte quilômetros do local que eu trabalhava.
Compramos na planta, como se dizia, depois de visitar o stand de vendas e um apartamento decorado, onde os incorporadores,
descobri isso depois, mandam fazer móveis em tamanho menor para dar a impressão
de um ambiente maior do que na realidade é. Durante dois anos, enquanto não
ficava pronto o apartamento, fiquei pagando a entrada do imóvel. Finalmente
ficou pronto, nos mudamos pra lá e, a partir daí nunca mais podia imaginar
sequer, ir trabalhar a pé. Ainda bem que tinha um fusca cinquenta e nove, potente
e heroico. De ônibus, o percurso demorava duas horas, de carro, uma hora e
vinte minutos. Frequentemente, deixava para sair do serviço depois das oito da
noite, pois neste horário a duração desse trajeto era bem reduzido. Deixando o serviço
às seis da tarde, chegaria em casa por volta das oito da noite. Se deixasse as
oito da noite, chegaria em casa, por volta das oito e quarenta. Então,
compensava trabalhar duas horas a mais todos os dias e deixar de me estressar
no trânsito. Chegava em casa um pouco mais tarde, mas bem mais tranquilo.
Com isso, o
tempo de convívio com meus filhos e minha esposa ficou bem menor do que o
necessário. Pouco depois disso, meus filhos começaram a estudar no Colégio
Costa Braga, na Granja Julieta. Então, eu levava meus filhos e mais dois amigos
deles, para a escola de manhã, quando saía para o trabalho e a mãe dos dois
amigos de meus filhos apanhava eles na escola. Voltava as nove da noite e,
quase sempre, eles estavam dormindo. Logo, durante a semana eu via meus filhos
somente de manhã, praticamente dentro do carro, eles indo para a escola e eu
indo para o trabalho. Foi nesse contexto que decidimos por dedicar às
atividades de acampamento, o que atenuou um pouco a questão do relacionamento,
pois fugíamos um pouco daquela loucura e curtíamos um pouco de ar puro e a
gente mesmo.
A empresa que
eu trabalhava na Sete de Abril no centro, chamava-se Interpublic e era do mesmo
grupo da McCann Erickson que hoje se chama W/McCann. Desse grupo também fazia
parte uma empresa de pesquisa de mercado chamada Marplan, que funcionava no
mesmo prédio da Interpublic. A McCann, que sempre foi a maior empresa do grupo,
funcionava em um prédio do centro também, na confluência da Rua da Consolação
com a Avenida São Luiz. Todas essas empresas faziam parte de um grupo de
agências internacional que era composto também pela Campbell-Ewald e se
associaram nesta época à SSC&B Lintas, que foi uma agência de publicidade
que se tornou autônoma, depois de nascer como uma House Agency da Gessy
Lever inglesa. Esse grupo decidiu investir em empresa brasileira e decidiu por
assumir o controle da Proeme, uma agência que pertencia ao Ênio Mainardi, pai
do Diogo Mainardi. Nesta época eles decidiram por construir uma sede própria,
na Rua Loefgren, Vila Clementino, margeando a Avenida Rubem Berta. Neste prédio
reuniram duas empresas: Interpublic e McCann. A Interpublic, que eu trabalhava,
era encarregada de fazer os serviços burocráticos e administrativos da McCann e
nestas condições possuía o CPD do grupo, no qual eu tinha lá uma função de
destaque. Nem é possível falar qual era minha função por lá, pois eu era
formalmente registrado como programador de computador, mas foram me atribuindo
funções que, a certa altura eu tinha sobre meus ombros a responsabilidade de
tocar o CPD, além, é claro, de ser programador, analista etc. A distância
diminuiu um pouco, mas ainda assim trabalhava a dezessete quilômetros de casa.
Cansado de dirigir
carro pelas ruas daquela cidade, decidi que iria comprar uma motocicleta para
ir e voltar do trabalho. Minha esposa já havia aprendido a dirigir e eu já
podia deixar a função de levar ou buscar as crianças na escola com ela e a
motocicleta me fez ganhar pelo menos umas duas horas de tempo, já que conseguia
fazer o mesmo percurso com a metade do tempo que levaria normalmente de carro.
A motocicleta
que adquiri era uma Honda CG 125, tamanho ideal para quem queria muito mais ser
um motociclista que um motoqueiro. Embora, nos meus deslocamentos
casa/trabalho/casa, não raro, praticava atos de motoqueiro, aproveitando os
corredores entre os carros para ganhar tempo, meu comportamento, geralmente,
era de respeitador das leis, sem abusar no trânsito, sempre dando preferência à
vida. Entretanto, todo esse cuidado com a moto não adiantou muito e sofri um
acidente que mudou minha vida, não pelo tamanho do estrago, mas pelas
consequências.
Percorria de
moto, diariamente, algo em torno de trinta e cinco quilômetros, entre minha
casa e o trabalho, indo e voltando. Na ida passava pela ponte João Dias, que na
época eram duas, uma embaixo e outra em cima. A de cima era para quem
continuasse na Avenida João Dias e a de baixo para quem desejasse pegar a
marginal do Rio Pinheiro, em sentido centro ou em sentido Interlagos. Eu sempre
pegava a de baixo, pois pegava a marginal Pinheiro e através dela alcançava a
Avenida Nações Unidas em direção ao centro. Para atingir esse objetivo, pegava
uma alça que desembocava na Avenida Guido Caloi, virava à direita e tinha
acesso à parte de baixo da Ponte João Dias.
Eu e minha
esposa sempre procuramos aproveitar todas as oportunidades que temos para
ficarmos juntos. Isso, desde sempre. Quando decidi por adquirir uma moto para
trabalhar, uma amiga nossa, que morava no mesmo condomínio, já levava nossos
filhos para a escola, juntos com os filhos dela, e minha esposa, agora já
sabendo dirigir, buscava as crianças depois da aula, levando os quatro pra
casa. Desta forma, eu podia sair um pouco mais tarde de casa, pois o tempo que
eu gastava para chegar ao trabalho ficou menor e não tinha o compromisso de
estar com as crianças as sete e meia na escola. Assim, depois que as crianças
saiam para a escola eu e minha esposa tínhamos lá quase uma hora para
conversarmos sobre alguma coisa ou se curtir mesmo. Depois disso eu saía para o
serviço e, não raro, a minha esposa descia o elevador comigo, subia na garupa
da moto e saía comigo. Chegando na portaria, uns cento e cinquenta metros
depois, ela descia da moto, nos beijávamos, ela voltava para seus afazeres e eu
seguia rumo ao trabalho.
Aquele oito de
maio foi um desses dias. Minha esposa desceu comigo, subiu na garupa da moto e
repetimos aquele ritual. Quando nos despedimos, segui o percurso diário. Ela
voltou pra casa e pouco mais de meia hora depois ela recebia uma ligação. Era
uma atendente de um ambulatório informando a ela que eu tinha sofrido um
acidente de trânsito e estava lá para encaminhar atendimento.
Saindo da Avenida
João Dias e pegando a alça que me faria ter acesso à marginal do Rio Pinheiro,
no sentido contrário vinha um carro e acabamos por colidir. Bati com o joelho
esquerdo no para-lama direito do veículo e, embora a moto e o carro não
estivessem em alta velocidade, a colisão foi suficiente para quebrar meu fêmur
e dois lugares. A mais ou menos dez centímetros do joelho, a fratura foi mais
severa, pois houve ali uma espécie de esfarelamento do osso. A outra fratura localizou-se
perto da cabeça do fêmur no encontro com a bacia. Até hoje não consegui uma
explicação lógica para aquele acidente, pois foi um esbarrão como tantos outros
que a gente leva de moto quando está no trânsito e a velocidade de ambos os
veículos era tão baixa que a colisão me levou ao chão sem, contudo, me fazer
afastar do carro, assim como a moto. Ou seja, ao parar, a disposição minha e
dos dois veículos, carro e moto, era um ao lado do outro: o carro de um lado,
eu no meio e a moto do outro lado, perfeitamente pareados. Caso alguém não
estivesse em velocidade baixa, com certeza eu ou a moto, ou ambos, seria jogado
longe, não fazendo uma linha reta pareada entre os três elementos.
Mas, aconteceu
o acidente e eu estava ali estendido no chão com o fêmur quebrado em dois
lugares. Vale dizer, tinha um pedaço de osso solto no meio da coxa que deveria
ter mais ou menos uns trinta centímetros. Estávamos no ano de mil novecentos e
oitenta e cinco e nessa época ainda não havia SAMU e, melhor ainda, as pessoas
eram mais corteses umas com as outras. O motorista do carro me perguntou se eu
tinha algum hospital de preferência para ser levado e eu lhe informei que tinha
um plano de saúde e gostaria de ser levado pra lá. O carro com o qual houve a
colisão era um Gol de duas portas e eu não estava em condições de ficar sentado
e tinha que ser transportado deitado. Portanto, deveria ser colocado no banco
de trás do carro. Imagine, eu com o fêmur quebrado em dois lugares tendo que
ser levantado por uma única pessoa, o motorista, e, pior ainda, ter que ser
colocado no banco de trás de um veículo que só tinha as portas da frente.
Fui colocado no
banco de trás daquele veículo e rumamos para o ambulatório do plano de saúde,
deixando a moto abandonada no lugar do acidente. O local para onde eu deveria
ser levado ficava em Santo Amaro, em algum lugar entre a Adolfo Pinheiro e o
Cemitério do bairro. Não sei se ainda é assim, mas à época existiam ruas nesta
região que era de paralelepípedo, o que fazia o carro tremer feito um
liquidificador. Quando fui colocado dentro do carro não senti muitas dores,
pois estava ainda quente. Mas ao nos aproximarmos do ambulatório, naquelas ruas
sem asfalto, já esfriando o sangue, aí sim as coisas começaram a apertar.
Percebendo minha situação, o motorista, ao invés de tentar me tirar do carro,
desceu e foi à recepção para narrar o que aconteceu e pedir orientações.
Decisão acertada, pois pelo quadro, eu teria que ser encaminhado para um
hospital. Alguém veio até o carro, entreguei a carteirinha do plano, fizeram a
ficha de encaminhamento e, no próprio carro fui conduzido para o Hospital Zona
Sul, que não deve existir mais, situado na Rua Iguatinga. Todo o percurso entre
o ambulatório e o hospital era de ruas com paralelepípedo. E a dor começou a
ficar insuportável. Nesse momento comecei a torcer para desmaiar.
Antes de sair
do ambulatório em direção ao hospital, passei o número do telefone de casa à
recepcionista e pedi a ela para ligar para minha esposa e explicar o que tinha
acontecido para que ela tomasse as providências necessárias. Minha esposa fora
avisada e se dirigiu para o ambulatório do meu plano de saúde. Chegando lá
informaram a ela que eu havia sido encaminhado para o hospital e indicaram a
ela o endereço.
Não consigo
imaginar o que se passou na cabeça da minha esposa durante o percurso até
chegar ao hospital. Embora tenha sido avisada de que não se tratava de nada
grave, ainda assim, se não fosse grave, não seria necessário ir para o
hospital. Nessas horas é impossível pensar em coisas boas, só pensamos em
coisas ruins, as piores possíveis. Isso explica o alívio que minha esposa
sentiu ao chegar ao hospital e ser informada que eu havia dado entrada ali
gritando. Não porque ela estivesse feliz por eu estar gritando, mas, feliz por
eu estar vivo, já que morto não grita.
O estado em que
eu estava não me permite lembrar de muitos detalhes dessa minha entrada no
hospital e início dos procedimentos. Entretanto, dois fatos ocorridos nesse
momento estão marcados bem fortes na minha lembrança. Eu cheguei ao hospital
vestindo uma calça jeans e a moça que iria me preparar para o procedimento
queria levantar minha perna para poder tirar a minha calça. Neste momento disse
para meter o bisturi na calça e rasgá-la. Estava com o fêmur quebrado em dois
lugares, um pedaço dele solto no meio da coxa e a moça querendo levantar minha
perna para não estragar a calça. Outra lembrança é que, eles decidiram por não
fazer a cirurgia de imediato. Isso porque, embora os ossos não estivessem à
mostra, ficou caracterizado como fratura exposta, visto que houve ferimento por
fora e por dentro. Decidido, então, não fazer a cirurgia ortopédica naquele
momento, seria necessário fazer uma tração para que os músculos e nervos não
encurtassem, o que dificultaria a cirurgia que seria feita quando as feridas
cicatrizassem. Para fazer essa tração, era necessário fazer um furo na tíbia,
atravessar um pino de um lado ao outro da canela. Os instrumentos utilizados
para isso é uma furadeira e uma broca. Quando começaram a furar eu senti a
broca tentando furar a minha pele, neste momento a assistente se lembrou que
não havia aplicado anestesia naquele local.
Foram meses
sofríveis, mais precisamente, foram dezoito meses para recuperação desse
acidente. Em função da localização da fratura, era impossível engessar. Se
fosse imobilizar, teria que ser feita praticamente uma armadura de gesso, que
pegaria o tronco, a partir do peito, passaria pelo quadril, atingindo toda a
perna esquerda e, na perna direita precisaria ter gesso até o joelho. Pela
descrição é possível ver a impossibilidade. O médico informou, então, que não
iria colocar gesso, mas eu deveria ficar de repouso absoluto até que as
fraturas se consolidassem. Concordamos com a exigência e o médico fez o
procedimento cirúrgico que consistiu em colocar várias peças de platina no
fêmur. Foram colocadas ao todo, entre parafusos, placas e pinos, quinze peças.
Na fratura perto do joelho foi colocada uma placa, de mais ou menos vinte
centímetros, afixada com nove parafusos. Na fratura perto da bacia foi colocada
uma placa, afixada com três parafusos e um pino-prego que fixava a cabeça do
fêmur na bacia. Essa cirurgia aconteceu no dia seis de junho. Como o acidente
ocorreu no dia oito de maio, foram quase trinta dias que eu fiquei no hospital
com aquela tração, até que os ferimentos cicatrizassem.
Alguns dias
depois da cirurgia fui liberado para ir embora e fomos pra casa todos felizes.
Deveria voltar uma vez por mês ao hospital para os exames de praxe. Nessas
ocasiões, o hospital mandava uma ambulância me pegar em casa. Morava no décimo
segundo andar de um prédio. Os homens subiam com uma maca, me amarravam nela e
ao chegar no elevador colocavam a maca de pé. Para sair do elevador e me levar
até a ambulância deitavam a maca novamente. Nos primeiros seis meses, a minha
visão diferente da janela do meu apartamento era essa viagem de ambulância e o
ambiente do hospital, sempre deitado.
Num desses
passeios médicos que fazia, o médico decidiu que seria necessário fazer outra
cirurgia porque a fratura perto do joelho não dava sinais de consolidação. Era
novembro, seis meses depois da primeira cirurgia. Nesta nova intervenção foram
retiradas todas as peças que estavam cravadas no meu fêmur. Entretanto, seria
necessário colocar outras com as mesmas características na fratura perto do
joelho. A fratura perto da bacia estava perfeitamente consolidada e não
requereu maiores cuidados, apenas se tirou as peças ali colocadas. Mas para a
fratura perto do joelho teria que fazer um
procedimento diferente. Era necessário fazer um enxerto de ossos naquele local
e, para tal, seria preciso tirar osso de algum lugar do corpo. Optou-se por
retirar o enxerto da bacia e fez-se mais um corte no pé da barriga para acessar
o melhor local para se retirar o material necessário. O enxerto foi colocado no
local da fratura, as peças foram afixadas de novo, uma placa e nove parafusos,
e esse conjunto de metal eu carrego comigo até hoje.
Foram ao todo,
dezoito meses de molho, afastado do serviço. Os primeiros dez meses não saía da
cama nem para o banho. Minha esposa me ajudava para eu fazer tudo, desde minhas
necessidade fisiológicas até os banhos que ela me dava passando toalha molhada
em meu corpo e, quando não dava para aguentar mais, colocava a cabeça pra fora da
cama e ela jogava uma água, um shampoo e assim minha cabeça era lavada. Passados
esses dez meses, fui liberado para andar de cadeira de rodas. Daí destruímos o
box do banheiro para que eu pudesse tomar alguma coisa que parecesse mais com
um banho, mesmo que fosse sobre uma cadeira de rodas. Mas essa cadeira já me
deu uma mobilidade maior e mais opções. Foram três meses que curti a vida
adoidado sobre uma cadeira de rodas. Coitada da minha esposa. Passava apurada
com as minhas vontades de passear, mesmo que fosse sobre as duas rodas de uma
cadeira. Mas a guerreira aguentou firme.
Passado o período
da cadeira de rodas veio a liberação para andar com muletas, duas, depois uma
e, no final, apenas uma bengala, ainda de bengala, recebi alta para voltar a
trabalhar. A alta foi dada quando os médicos perceberam que os defeitos que
ficaram na minha perna eram permanentes e me diagnosticaram com uma invalidez
parcial permanente e, nestas condições passei a receber um auxílio da
seguridade social. Quando foi concedido, o auxílio equivalia a um virgula
noventa e oito salários mínimos, ou seja, quase dois salários mínimos e hoje
corresponde a zero virgula setenta e cinco salários mínimos e, a cada ano que
passa vai diminuindo. Se eu viver bastante, deve chegar uma época que terei que
devolver dinheiro mensalmente à previdência, por conta desse auxílio que me
fora concedido por uma invalidez.
Sem dúvidas foi
o período em que mais sofri fisicamente e, com certeza também, minha esposa
experimentou muito sofrimento nessa época. Entretanto, hoje, olhando em
perspectiva, é possível notar que esse período foi fundamental na consolidação
da minha família. Lógico que entramos nesse período com uma base relativamente
forte referente às relações familiares. Entretanto, esse período foi
determinante em alguns aspectos que talvez seria muito mais traumático tê-los
alcançados de outra maneira.
De repente
estávamos ali, nós quatro sem nenhum parente para nos ajudar naquele momento
tão difícil das nossas vidas e eis que começamos a colher um pouco daquilo que
havíamos plantado durante os primeiros anos de nossa família. Os amigos foram
despontando assim como num passe de mágica, não imaginávamos que éramos tão
queridos como as pessoas nos demonstraram naqueles tempos bicudos.
Uma
demonstração nos chamou muito mais atenção que as outras. Um amigo meu de
trabalho, creio que uns seis anos mais novo que eu, tinha uma família daquelas
de fazer inveja a qualquer um. Quando aconteceu o acidente a família desse
amigo meu nos deu um suporte que até hoje é difícil de lembrar sem embargar a
vós de emoção. Gostaria de publicar aqui um e-mail que mandei para esse meu
amigo em dois mil e oito, vinte e três anos depois daquele acidente.
“Gostaria
muito de saber sobre sua família. Quando tivemos relações com tua família,
através de você, foi uma época muito forte para mim, a Cleide e os meninos. Foi
uma época em que vivemos uma experiência que mudou nossas vidas para sempre.
Primeiro, aquele acidente de moto que me jogou na cama por mais de um ano, com
todas as consequências familiares que se pode imaginar quando alguém fica
naquelas condições. Mexe com todos os membros da família. Com a nossa não foi
diferente. Mas naquele episódio também passamos por experiências definitivas na
nossa maneira de encarar o ser humano. Não sei se você se lembra de como sua
família, especialmente dona Léa, nos tratou naquele tempo. Como vocês cuidaram
de nossos filhos, fazendo com que eles se sentissem protegidos, mesmo sabendo
que o pai estava no hospital, que, pela idade deles, eles não tinham noção da
gravidade. O que contava para eles é que o pai estava num leito de hospital,
com a um parafuso na perna, onde tinha amarrado uma corda e no final da corda,
um peso puxando a perna. Naquele momento a proteção da sua família foi decisiva
para nós. Naquele momento, percebemos o quanto uma família pode ser importante
para outras famílias. E, de certa forma, aquela atitude da sua família, com
relação à nossa, tem norteado as atitudes da nossa família. Hoje, olhando o
passado, me fica a impressão de que aquele acidente foi colocado na minha vida
para que eu pudesse ter vivido esta experiência, cujos frutos colhemos até
hoje. Graças a experiências como estas, hoje eu e a Cleide, sentimo-nos recompensados
pela formação, sobretudo moral, que demos aos nossos meninos. Aliás meninos que
já se fizeram homens...”
Passados os
problemas todos que vivenciamos o saldo foi muito positivo. Foi uma época que
tivemos a oportunidade de uma convivência profícua entre nós quatro, com a
ajuda ímpar de pessoas brilhantes. Nunca fomos de ter vida social intensa, por
isso, nas cidades em que a gente morou nunca fomos de formar grandes círculos
de relacionamentos. Entretanto, os que fizemos, até hoje os consideramos como
membros de nossa família. Se se contasse a quantidade de amigos que fizemos em
São Paulo, acho que não chega a uma dúzia. Aliás, considerando somente
famílias, cabe nos dedos de uma mão. Mas, são pessoas que marcaram de tal
maneira a gente, que seria impossível imaginar qual o caminho teríamos tomado
se não tivéssemos encontrado essas pessoas.
Uma das
famílias já tive a oportunidade de contar o nosso relacionamento. Trata-se do
casal Anamaria e Carlos, os argentinos. Outro casal, “seo” Mário e “dona” Lea,
mãe do grande amigo Ruy, esse do e-mail acima. É dessa época também o casal
Shirley e Pita. Esses a gente conheceu em circunstância profissionais, pois eu
era o chefe do Pita em uma das empresas que trabalhei em São Paulo, daí ele
começou a namorar a Shirley e fortuitamente nos encontramos fora do trabalho e
nascia ali uma das amizades mais marcantes em nossas vidas. Embora tanto eu
como minha esposa pensássemos tão diferente daquele casal, foi uma química tão
perfeita que meus filhos têm uma boa dose de influência desse casal. Desde o
nascimento do filho mais velho que eles estavam sempre presentes. As poucas
vezes que conseguíamos uma brecha, financeira ou física, para curtir um pouco a
noite de São Paulo, depois que os filhos nasceram, era esse casal que nos
substituía na função de cuidar de nossos filhos. Acabamos por comprar
apartamento no mesmo prédio e, na ocasião do acidente, foi uma das famílias que
nos deram suporte. A amizade continua até hoje, embora apenas com a Shirley,
pois nosso amigo Pita fez o favor de nos deixar antes do combinado e foi para o
andar de cima mais cedo. Sempre que a gente passa por São Paulo, damos um jeito
de encontrar nossa amiga Shirley, ou quando ela descobre que a gente está na
cidade, acha um jeito de nos encontrar e assim essa sinapse continua ligada em
nossos corações e mentes. Como é uma amizade que vence tudo, inclusive o tempo,
nos tempos atuais essa grande amiga Shirley continua dando provas da
importância dela em nossas vidas. Meu filho mais velho, o mesmo que a Shirley
chamava de Tilim, quando era pequeno, acho que por causa de um seriado da TV
Cultura de São Paulo, decidiu fazer mestrado e apareceu esta oportunidade em uma
escola de São Paulo. Morando numa capital de um estado do Norte do país, lógico
que a logística para estar lá a fim de cumprir os créditos das matérias seria bem
complicado. Além das passagens aéreas para ir e voltar nos períodos de estudos,
ainda teria o dispêndio com a hospedagem, para, de quando em quando, passar
alguns dias em São Paulo, longe da família, estudando e vivendo. Nesse contexto
é que surge, de novo, a grande amiga Shirley e praticamente montou uma família
alternativa para nosso filho mais velho em São Paulo, de forma que ele pudesse
passar esses períodos por lá sentindo o carinho de um lar. Falo que ela montou
uma família alternativa porque, além da própria Shirley, sua filha Deborah, com
a mesma dedicação, encanto e bondade da mãe, também faz de tudo para nosso
filho mais velho e trata-o como se fosse seu irmão mais velho. Isso tudo para
um coração de pai, vocês devem fazer uma ideia do que representa.
Entretanto, das
poucas pessoas ou famílias que mantivemos relacionamento em São Paulo, uma, em
especial, guarda uma importância que transcende a imaginação que se possa ter
de amizade.
Quando
adquirimos o apartamento próprio em São Paulo, o fizemos em um conjunto
residencial composto de sete prédios, cada prédio com doze andares, cada andar
com quatro apartamentos, ou seja, um conjunto residencial com trezentos e
trinta e seis unidades habitacionais. Apartamentos pequenos, com dois quartos,
sala, cozinha, área de serviço e um banheiro. De área útil eram apenas
cinquenta e um metros quadrados. Embora não fosse a maioria, uma parte
considerável de famílias que adquiriram esses imóveis, era de casais lutando
para formar um patrimônio que pudesse dar um norte para suas famílias recém-formadas.
Em outras palavras, pessoas mais ou menos na mesma “vibe”, como diz hoje os
adolescentes, todos com objetivos relativamente comuns e focando as mesmas
coisas.
Neste cenário
apareceu um casal formado por uma pernambucana porreta e por um descendente de
alemão, que, assim como nós, tinham dois filhos homens, sendo que o mais velho
deles, era da idade do meu mais novo. Nossos quatro filhos estudavam na mesma
escola, Costa Braga, na Granja Julieta. Daí para formarmos uma trupe só, foi um
pulo. Passamos a viver meio tudo junto e misturado a ponto de, quando estavam
juntos as duas mães e os quatro filhos, ser meio difícil de saber quem era mãe
de quem e quem era filho de quem, tamanha era a integração entre a gente. Na
mesma época que mudamos desse conjunto, o marido dessa nossa amiga resolveu se
separar dela, mas isso não impediu que continuássemos com os fortes laços com
ela e seus filhos.
Trata-se de
Luciman Maria de Sousa, ou simplesmente Tia Lú, como meus filhos sempre a
chamou. Essa mulher é guerreira. Na mesma proporção que sonha e fantasia a
vida, ela luta para vencer os desafios que a vida lhe apresenta. Apesar de
todos os perrengues pelos quais essa mulher passou, que, sou testemunha disso,
não foram poucos, jamais a vi reclamar de alguma coisa ou fraquejar. Sempre ela
via uma fresta por onde passar, quando as portas e as janelas se fechavam.
Pois bem, se
essa mulher já era assim em tempos normais, imagine quando eu sofri o acidente.
Nos primeiros meses, quando a gente ainda estava tentando nos adaptar à nova
situação, essa mulher era capaz de esquecer da própria vida para cuidar da
nossa. Não fosse esse anjo chamado Lú, esse período teria sido muito mais
difícil do que realmente foi.
Passado o
tempo, mudamos de cidade, pensando eu, que apenas ela tinha muita importância
na vida da minha família, eis que ela nos prova que a recíproca era
rigorosamente verdadeira. Das poucas pessoas que ousamos chamar de amigos em
São Paulo, a Lú foi a única que compareceu numa comemoração que fizemos, no
Paraná, para festejar a vitória em dois concursos: eu acabava de passar num
concurso público para trabalhar em Rondônia e meu filho mais velho obteve êxito
no vestibular para a Faculdade de Direito da FURG, de Rio Grande, Rio Grande do
Sul. Não bastasse isso, foi a única daquelas pessoas que, anos depois, já em
Rondônia, compareceu no casamento de meus dois filhos, um em dois mil e seis e
outro em dois mil e oito. Isso me provou que as amizades, quando são
verdadeiras, são eternas, independentemente do tempo, da distância e de
qualquer outra coisa que possa acontecer. Sempre que encontro com esses amigos
queridos, parece que a gente havia se encontrado ontem, que o tempo não passou,
mesmo que o ontem tenha sido há mais de dez anos.
Portanto, com
tanta demonstração de carinho e com tanta prova de amor para com a gente, não é
possível dizer que aquele período em que eu passei boa parte dele sobre uma
cama, tenha sido uma época ruim. Ao contrário, aquele período fez um bem enorme
para mim e minha família, de tal forma que saímos dele com a certeza que Deus é
generoso e com muito mais vontade de retribuir todo o carinho e amor que
recebemos. Com isso em mente, nossa vida foi norteada para as melhores coisas
que se pode imaginar.
APRENDENDO A ...
... SER SOGRO
Deveria deixar
para escrever este parágrafo mais pra frente, já que tive a oportunidade de ser
avô antes de ter a experiência de ser sogro. Mas, para ficar com a ordem
natural das coisas, vou continuar escrevendo este capítulo antes dos próximos.
Quando os filhos
namoram, é como se a gente estivesse fazendo um treinamento para ser sogro.
Mas, “treino é treino, jogo é jogo”, dizem os boleiros. Enquanto os filhos
estão namorando o contato que temos com os agregados é muito superficial, não
existe uma interação maior entre a gente e a pessoa com quem seu filho está
namorando.
Cabe um
comentário sobre o genro, antes de falar sobre as noras. Como já dito por aí,
tenho uma filha postiça, que me deu um casal de netos. Essa menina namorou e
casou-se com um amigo do nosso filho mais velho. Então, formalmente esse marido
da minha filha postiça é meu genro. Mas nossa relação pouco tem a ver com uma
relação entre genro e sogro. Então daqui pra frente vou concentrar nos aspectos
do relacionamento com minhas noras.
Entretanto,
devo abrir uns parênteses aqui para relatar um fato que indica muito bem o
nível de integração entre o meu “genro” e os meus filhos, sobretudo com o filho
mais velho.
(No nascimento
da minha neta mais velha, como disse por aí, foi um pouco tenso, pois ela
demorou um pouco para nascer e teve que ir para a UTI-neonatal. Num determinado
momento foi liberado para que o pai da menina entrasse para vê-la. Avisaram a
todos nós que estava liberada a entrada do pai e o meu filho mais velho e o
“genro” se apresentaram na porta da UTI para ver a criança. A moça que estava
na porta para controlar a entrada, então, avisou que só podia entrar o pai da
criança. Meu filho e meu genro, olhou um para o outro e quase em uníssono
disseram: “mas nós dois ainda não sabemos qual dos dois é o pai da criança”. A
enfermeira olhou para os dois e não viu outra solução senão deixar os dois
entrarem.
Quando minha
filha postiça, que havia acabado de dar à luz, soube do ocorrido ficou possessa
da vida, pois, o que os dois fizeram foi sugerir à enfermeira que a mãe da
criança não passava de uma desavergonhada, que nem sequer sabia quem era o
pai de sua filha. Hoje, ainda sem aceitar aquele episódio, ela dá risada disso,
mas no dia ficou foi muito furiosa.
Me parece que a
atitude daqueles dois rapazes na porta da UTI-neonatal dá a exata proporção da perfeita
integração entre meu filho e esse grande amigo que havia feito durante suas
vindas nas férias. Por óbvio que uma menina que namorasse esse rapaz não
poderia ser recebida de forma diferente no seio de nossa família).
Quando tomei
posse na função em que me aposentei, depois de passar no concurso para
funcionário público, fiquei lotado no departamento de informática da secretaria
em que eu trabalhava, em função da experiência que havia acumulado nos vinte
três anos anteriores à minha posse. Com o passar do tempo acabei por assumir a
gerência desse departamento. Minha missão ao assumir este setor seria
implementar a parte de tecnologia que fazia parte de um programa das Nações
Unidas em conjunto com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Como na época
a secretaria que eu trabalhava não possuía nenhuma tecnologia implantada,
caberia a mim montar toda a infraestrutura de informática nos três pilares necessários:
hardware, software e peopleware.
Quando já
estava no processo de montagem do peopleware
que iria tocar o projeto, apareceu por lá uma menina recém-formada na área de
sistema numa universidade paranaense pedindo emprego. Como a equipe que estava
montando seria fornecida através da companhia de processamento do Estado, tinha
a prerrogativa de selecionar as pessoas, que a empresa contrataria e deixaria à
minha disposição. É difícil dar o primeiro emprego para alguém, sobretudo
quando se está montando uma equipe que se pretendia ser precursora na
secretaria, mas alguma coisa me chamou a atenção naquela mocinha e eu decidi
arriscar e dei uma das vagas da equipe para uma analista de sistema que tinha
acabado de deixar os bancos escolares.
Essa mocinha
viria a se tornar a nora que se casou com meu filho mais velho. Depois que ela
começou a fazer parte da equipe, descobri uma pessoa determinada, sabendo muito
bem onde estava e aonde queria chegar. Uma personalidade forte, às vezes até
intransigente, mas justa. Lutava pelas suas ideias e só desistia delas depois
de batalhar muito para vê-las aceitas. Muito pouco tempo depois já era uma
referência na equipe. Apenas uma pessoa da equipe a enfrentava, exatamente por
ter o mesmo temperamento. Tratava-se de um técnico de rede que trouxemos para a
equipe. Um dia precisava em um subprojeto dois profissionais com aqueles
perfis, coloquei-os juntos, sabendo que iria sair faísca, mas no final o
resultado seria o melhor possível. Não deu outra, os dois discutiam muito e, às
vezes, chegavam até a brigar, mas o resultado foi excelente para o projeto.
Meu filho mais
novo tinha uma função naquela equipe que foi montada e acabou por fazer amizade
com aquela que se tornaria minha nora. Sempre que os via juntos, imaginava que
seria muito interessante tê-la como nora. Mas nunca forcei a barra e deixei as
coisas rolarem. Então, a minha nora mais velha se tornou amiga do meu filho
mais novo.
Essa menina
tinha mais três irmãs, uma delas, na ocasião fazia odontologia em Minas Gerais.
Certa feita, fizemos uma festa numa localidade que demos o nome de “no limite”,
em referência a um reality show que existia na televisão, onde os
participantes viviam no meio do mato. Como a festa também era num ambiente
totalmente inóspito, apelidamos a festa desta forma. Neste evento foram
convidadas todas as pessoas da minha equipe. Nem todos encararam enfrentar
aquilo, mas muitas pessoas foram, inclusive a funcionária que era amiga do meu
filho mais novo. Ela levou sua irmã que estudava em Minas, que estava de férias
na cidade. Quando olhei aquela menina chegando, que eu não conhecia, junto com
a sua irmã que trabalhava comigo, fiquei imaginando o quanto interessante seria
se algum filho meu namorasse uma das duas, se bem que a mais nova, que era, e
é, muito bonita, achei que fosse areia demais para o caminhãozinho dos meus
filhos.
Mas o tempo foi
passando e aquela amizade do meu filho mais novo continuou com aquela que se
casaria com meu filho mais velho. Um belo dia, para minha surpresa, recebo a
notícia pela minha nora mais velha, que ela estava namorando meu filho mais
velho. Não entendi nada, mas gostei imensamente da notícia e curti muito aquele
momento. Depois fiquei sabendo que meu filho mais novo já namorava a irmã da
minha nora mais velha. Ou seja, os anjos haviam ouvidos duplamente minhas
preces e Deus concedeu-me ter como nora duas pessoas sensacionais,
responsáveis, justas, honestas, em suma duas pessoas bonitas que qualquer sogro
gostaria de ter como nora. Então ficou assim, os dois filhos meus se casaram
com duas irmãs e os quatros viraram também parentes, pois além delas serem
irmãs, passaram a ser concunhadas, da mesma forma, meus filhos além de serem
irmãos, passaram a ser concunhados. Os filhos que ambos os casais teriam seriam
primos-irmãos.
Isso nos traz
muitas facilidades, especialmente quando se trata das comemorações, pois o
natural é que os pais gostam de estar com os filhos e os filhos gostam de estar
com os pais. Quando as noras são de famílias diferentes, ou se promove uma
integração, que não é muito fácil, ou é necessário escolher onde comemorar as
datas festivas, tipo natal, ano-novo, dia das mães, dia dos pais e tantas
outras oportunidades de se comemorar alguma coisa. Do jeito que ficou
configurado, basta nossos filhos convidarem o casal de pais que o problema está
resolvido. A lógica é mais ou menos a seguinte: quando você se casa, está meio
implícito, que faz parte do pacote, os pais da esposa e do marido. Entretanto,
normalmente estão excluídos os pais de seu cunhado ou sua cunhada. Quando todos
esses personagens são as mesmas pessoas, facilita tudo.
Só uma coisa me
entristece nessas ocasiões. Quando a comemoração não é feita por mim e minha esposa,
nem sempre minha filha postiça é convidada. Com isso, nem sempre todos os netos
estão presentes nessas ocasiões.
Vamos abrir um
parêntesis. (A experiência mostra que
promover a integração entre famílias é muito desgastante. Vamos imaginar numa
festa para comemorar alguma data especial: ano novo por exemplo. Quando se tem
muitas famílias envolvidas, uma delas tem que ter a iniciativa de
disponibilizar sua casa. Isso envolve um certo dispêndio de recursos, seja para
assumir os custos para a montagem do ambiente, que pode envolver o aluguel de
um salão de festas do prédio, decoração etc., ou para assumir os custos para
desmontar o ambiente, a fim de, por exemplo, entregar o salão de festas. Mas
além disso, a família que se dispõe a receber as outras em suas dependências,
sempre fica com alguns gastos extras, tipo gelo, água e outras coisas que
teoricamente não representa muito gasto no geral. Mas, vencido o patamar de ter
um lugar para fazer o evento, vem a distribuição do que cada família deve
trazer para a celebração. Neste momento, alguém faz uma lista e distribui. Começa
a briga de foice, sempre é criado um perrengue em função de alguém escolher
pouca coisa da lista e outras ficarem com muita coisa. A verdade é que sempre
tem os mais espertos que escolhem primeiro o que levar, para ter a opção de
escolher a coisa mais em conta. Então, antes de se promover a integração entre
as várias famílias, o que há é um desgaste muito grande. Chega no dia da confraternização,
todos se cumprimentam de forma efusiva, muito mais pela lembrança do motivo da
celebração do que pela participação das pessoas que colaboraram para aquele
evento). Reafirmando, isso foi só um parêntesis.
Treino é
treino, jogo é jogo. Lembram-se que já foi dito por aí. Enquanto os meninos
estavam namorando, a fase era aquela do treino. Eu imaginando que era sogro e
elas imaginando que eram noras. Os encontros eram sempre em ocasiões especiais,
normalmente em alguma festa. Eu cheiroso, elas bem arrumadinhas. No máximo uma
vez por semana a gente se via. Não era possível, mesmo que alguém quisesse, eu
criar atrito com elas ou elas criarem atrito comigo.
Primeiro é
preciso fazer uma observação relevante sobre essas duas pessoas que, graças a
Deus, foram agregadas à minha família. Apesar de serem irmãs, são duas pessoas
tão diferentes que, observando ao longe, seria muito difícil imaginar tratar-se
de duas irmãs. Apenas quando se aproxima das duas é que se percebe que elas são
irmãs, pois somente observando os valores que elas trazem impregnados em suas
personalidades é que se pode chegar à conclusão que foram criadas pelos mesmos
pais. Fora isso, em nada se parecem.
Para não ficar
aqui desfilando teorias sobre as diferenças mais profundas entre as duas, pois
correria o risco de arrumar confusão com elas, gostaria apenas de relatar uma
de ordem prática: quando meus netos fazem aniversário, ambas fazem festas
memoráveis, impecáveis naquilo que oferece aos convidados, independentemente do
tamanho do evento. Gastando pouco ou muito, dependendo das condições presentes,
as festas são sempre um primor. Entretanto, as festas da nora mais velha são
planejadas com tanta antecedência que, às vezes, ficamos com a sensação de que
ela vive planejando festas. Normalmente com meses de antecedência já estão
definidos cada detalhe. Onde vai ficar cada um dos enfeites e outros elementos
da decoração, onde vai ficar a mesa com o bolo e salgados e tudo o mais que
fizer parte da festa, estará definido com uma antecedência espantosa.
Já, a nora mais
nova, suas festas são finalizadas nos últimos dias. Com muita frequência na
semana da festa ela ainda não sabe como será a decoração. Já presenciei ela
definir o tema com menos de um mês de antecedência. É muito comum ela trazer
elementos para enfeitar a festa, sem saber como serão usados. Onde vai ficar o
bolo, onde vão ficar os salgados, terá balão, de gás ou normal, onde vão ficar
os balões, o que será servido. Tudo isso são decisões tomadas nos últimos dias.
Quem olha de fora imagina que ela está no meio de uma confusão tão grande que
será muito difícil sair uma festa daquele caos.
Porém, quando
você vai à festa de uma ou de outra nora, é garantido que você vai participar
de um evento único, lindo, que agrada a todos, adultos e crianças. Mas isso dá
bem a noção das diferenças existentes entre essas duas meninas que Deus colocou
no caminho de nossos filhos. Por outro lado, Deus sempre escreve certo, suas
histórias. Não consigo imaginar a minha nora mais velha casada com meu filho
mais novo, tampouco imagino minha nora mais nova casada com meu filho mais
velho.
Os mais novos
começaram a namorar primeiro, mas os mais velhos se casaram antes. É uma
sensação muito diferente casar um filho. Não que seja ruim. É apenas diferente.
É como se fosse um nascimento ao contrário. Quando o filho nasce, você fica
feliz porque ele está chegando para uma vida cheia de possibilidades que você
não sabe quais são, mas fará de tudo para que seja exitosa. Quando ele se casa,
você fica feliz porque está saindo para uma vida também cheia de
possibilidades, que você também não sabe quais são, mas, igualmente, fará tudo
para que seja profícua.
Posso
considerar meu relacionamento com as minhas noras muito bom. Entretanto, não
posso falar que não existem problemas. Eles existem aos montes. Alguns são
criados por mim mesmo, outros são criados por elas e outros tantos são criados
por falta de conversar sobre o assunto. Lógico, que se perguntar às minhas
noras, muitos problemas que eu acho serem causados por elas, elas irão dizer
que foram causados por mim e vice-versa.
Quando o
primeiro filho do meu filho mais velho nasceu, imaginei que iria estar sempre
presente na vida do neto e com esta ideia na cabeça, parece que errei a mão.
Pelo menos foi essa a impressão que fiquei quando arrumava um jeito de passar
todos os dias na casa deles para ver aquela criança. Não sei se minha nora se
sentiu invadida na sua missão de ser mãe, mas ela achou que eu a estava sufocando
quando fazia essas minhas visitas diárias. Primeiro ela foi muito sutilmente me
dando umas dicas de que eu estava incomodando. Depois, quando ela percebeu que
não estava resolvendo, decidiu por reclamar ao meu filho que me falou com todas
as letras para eu diminuir a marcação serrada. Quando meu filho me chamou a
atenção, fiquei revoltado, mas com o passar do tempo, percebi que ela havia me
dado várias dicas e eu não havia percebido.
Após a conversa
que tive com meu filho, puxei um pouco o freio de mão nas visitas, mas, mesmo
assim, não consegui deixar de fazê-las. Entretanto, procurava fazer essas
visitas em horários que minha nora não estivesse em casa. Normalmente ia
visitar o neto na parte da manhã, em um horário que ele não estivesse dormindo
e eu pudesse interagir com ele. Chamava essas visitas de clandestinas. Na época
em que as fazia publiquei no meu blog Netos e Netas, o seguinte post:
De vez em quando faço umas visitas
clandestinas ao meu neto. Costumo chamar de visitas clandestinas, mas poderia
acrescentar também o adjetivo roubadas, pois são visitas que faço na surdina.
Não tem dia, nem hora e ninguém sabe com antecedência. Nem todas as pessoas que
convivem comigo são a favor dessas visitas, mas uma coisa garanto, não existe
coisa melhor no mundo. É uma graça divina perceber que meu neto gosta tanto
quanto eu dessas visitas. É o nirvana quando eu chego à sua casa e ele vem ao
meu encontro com aquele sorriso do tamanho do mundo. Embora ele ainda não
pronuncie palavras, o seu olhar e seu comportamento me dizem coisas que somente
o coração é capaz de perceber. É nesse momento que a gente se dá por inteiro um
ao outro. As únicas amarras nesses momentos são as convenções estabelecidas
tacitamente entre seus pais e eu. Fora isso é só alegria. Eu sou cavalo, ele,
cavaleiro. Sou bandido, ele, herói. Sou nada, ele, tudo. Vezes sou pouco, ele é
muito, outras sou muito, ele é pouco. São momentos tão absolutamente ternos que
nem sempre é possível perceber quem sou eu e quem é ele. Só quem vive essa
experiência é capaz de entender do que estou falando. Que Deus nos conserve
assim.
Distante no tempo agora, consigo saber o que
causou tudo isso. Meu “genro”, quando nasceu a minha neta mais velha, dizia que
ele tinha me dado de presente uma personnal
neta. Ele dizia isso porque imaginava que ela serviria como um treino para eu
aprender a ser avô. De fato, um pouco do que eu sei sobre ser avô, eu devo a
esse treinamento intensivo que fiz com a neta mais velha. Entretanto, meu
relacionamento com minha neta me deixou mal-acostumado. Quando ela nasceu sua
mãe tinha uma loja de bijuteria no centro da cidade e minha neta ficava o dia
todo por lá. Com isso, me acostumei a vê-la todos os dias, pois sempre arrumava
um jeito de passar na loja e brincava nem que fosse meia-hora com ela. Ou seja,
tinha acesso ilimitado à minha neta.
Quando o neto
nasceu, quatro anos depois, minhas visitas à neta mais velha já não era tão
amiúde, pois sua mãe não possuía mais a loja e ir à sua casa requeria uma
operação mais elaborada. Mas pensei que o meu acesso ao neto recém-nascido
seria igual àquele que tinha com a neta mais velha. Ledo engano. Foi uma fase
terrível para mim que imaginava grudar pra valer no neto. Certa feita cheguei a temer que meu neto
seria afastado de mim por completo, foi num período em que só me era concedido encontrá-lo
nos finais de semana, quando a gente se reunia para o almoço do sábado. Devo
confessar que nesta fase, se não fosse a neta mais velha, acho que teria
enlouquecido. Chegou a um nível de tensão tão intenso que decidi sentar e
escrever uma carta para meu filho e minha nora. No final, acabou ficando uma
carta muito pesada e eu decidi não entregar esses escritos a eles. Vou colocar
aqui alguns trechos menos forte para se ter noção de como eu me senti na época.
... Apesar
disso, tenho o firme propósito em desistir dessas visitas matinais. Vai ser
difícil, eu sei. Nesses dias tenho exercitado isso e estou sentindo o quanto
isso faz falta para mim. Imagino que para o meu neto também. Sei que com o
passar do tempo essa falta passa. Afinal existem muitos avós que vivem sem
fazer visitas aos netos e muitos netos que vivem sem receber visitas dos avós.
A decisão de
não participar dos almoços de domingo na casa de vocês eu já havia tomado, pois
considerei que esses almoços são da família da tua esposa. Já concordei também
que nos eventos mais ampliados o meu contato com meu neto deve ser mais
restrito, para que todos possam curti-lo. Analisando bem de perto, até o almoço
de sábado fica, de certa forma, enquadrado naqueles eventos ampliados, já que
são duas horas que todos nós queremos curtir este ser absolutamente carismático
que vocês estão educando de uma forma espetacular. Filtrando tudo, então, não
sobrará muito tempo para que eu e o meu neto possamos ter um relacionamento
mais profícuo. Então, ficarei a mercês de vocês para proporcionar algum momento
em que eu possa exercitar minha paixão por esse meu herói.
... Para
encerrar, gostaria de dizer a vocês que continuo absolutamente disponível a
vocês três. Qualquer coisa que precisarem, por favor, estalem os dedos. Vocês
não sabem quanto eu torço para vocês estalarem os dedos.
Foi mais ou
menos nesta mesma época que publiquei também em meu blog outro post que retratava bem o meu estado de
espírito. É um pouco longo, mas vou reproduzir aqui. Publiquei com o sugestivo
nome de “Conselho aos avós: devaneios, sonhos, desejos e frustrações”.
Já há muito
tempo eu pensava em postar aqui alguns conselhos aos avós, mas sempre me faltou
disposição. Agora, com o nascimento de mais um neto, imagino que é inadiável,
pois é com a chegada de neto que os devaneios dos avôs afloram e podem
levá-los, se não tomarem cuidados, a traumas terríveis.
Quando nascem
os filhos a gente ousa sonhar uma série de coisas para eles. Ocorre que os
sonhos que você tem para os filhos são um misto de bonança com bem-estar.
Bonança, no sentido de o filho ser alguém bem-sucedido na vida e que consiga
ser um profissional de sucesso revertido em realização material e financeira.
Já o bem-estar a gente coloca no patamar das realizações pessoais traduzida
normalmente como felicidade.
Do alto desses
sonhos a gente sai a tentar realizá-los. Muitas vezes de forma destrambelhada,
dando, não muito raro, valor a coisas que de fato não tem. Mas, em nome dos
sonhos, nos cegamos para muitas coisas e vamos levando a vida como se isso
fosse tudo na vida. Enfim, conseguimos sobrepor a bonança ao bem-estar e, ao
final, quase sempre, a frustração é meio generalizada, já que os pais nem
sempre conseguem realizar todos os seus sonhos de bonança para os filhos e aos
filhos não é dada a oportunidade de realizar os seus próprios sonhos.
Quando nascem
os netos, as coisas são diferentes. Também existem os sonhos. E como existem!
Entretanto, são sonhos diferentes. Você já não precisa sonhar em bonança, basta
sonhar bem-estar. Então, é sobre o bem-estar que a gente sonha pra valer. Só
que, também aqui, às vezes somos tentados a sonhar errado, pois nem sempre a
gente sonha o bem-estar dos netos. De quando em vez nos vemos sonhando no
bem-estar nosso e não dos netos.
Assim é, que se
faz necessário esses conselhos. Tome alguns cuidados para não se machucar. É
amargurante, mesmo nesta idade, descobrir-se frustrado com alguma coisa, mas a
frustração pode ser grande ou pequena, dependendo de como você se prepara.
Quando você se
sentir tentado a comprar um assento de criança para colocar em seu carro,
pensando que a partir daquele momento você terá várias oportunidades de
carregar seu neto no carro, pense direito. As oportunidades que você terá para
transportar seu neto no seu carro serão tão pequenas que talvez não valha a
pena ocupar uma vaga no banco de trás de seu carro com uma cadeirinha de bebê
que será usada uma vez a cada dois ou três meses. É muito frequente você
encontrar essas cadeirinhas no porta-malas do carro dos avós.
Outra tentação
que aparece, é imaginar uma reforma na casa, sobretudo em seu quarto para
receber de vez em quando seu neto. Essa tentação acontece porque você imagina
ser mais fácil as coisas já estarem mais ou menos arrumadas quando algum neto
seu vier dormir em sua casa. Mas a experiência indica que é melhor deixar do
jeito que está porque seu neto irá dormir tão pouco em sua casa, que é
absolutamente suportável a cada dois ou três meses arrastar cama pra tudo que é
lado para acomodar um colchão para algum neto dormir.
Não muito raro
também, a gente flexibiliza todos os compromissos nossos com a vã esperança de
que vai pintar uma oportunidade inesperada para estar junto de um neto seu.
Infelizmente a esperança continua vã, pois na verdade dura e crua, o inesperado
nunca acontece. Então, quando você for tentado a flexibilizar seus compromissos
para estar com seu neto, pense bem antes de fazer. E isso vale para tudo. Sabe
aquele desejo seu de curtir uma missa junto com o seu neto. Esqueça. Mesmo que
você passe a ir à missa em horário que seu neto pode ir, você não terá a
companhia dele.
Todos esses
devaneios que os avós têm, é imaginando o bem-estar deles e dos netos. Aquele
bem-estar que se traduz em uma vivência saudável e uma aproximação profícua
entre os dois. Lógico que não é só o neto que tem benefício nesta relação.
Talvez até os avós tenham mais benefícios que os netos. Mas, em nenhum momento
os avós pensam em bonança, já que isso deve ser sempre uma função dos pais. Mas
os devaneios estão carregados de bem-estar.
Entretanto,
infelizmente, os filhos, as filhas, as noras e os genros pensam diferente da
gente e as coisas não acontecem da maneira como sonhamos. É lógico que eles têm
as razões e os motivos deles. Mas isso não tira o nosso direito de espernear.
Além de
espernear existem coisas que podemos fazer. Por exemplo: se nossos sonhos são
no sentido de proporcionar um bem-estar para nós e nossos netos, então devemos
aproveitar o escasso tempo que ficamos juntos deles para fazer esses momentos
inesquecíveis para ambos. Nem sempre é fácil, nem sempre os pais deles entendem
o que você pretende fazer, mas vale a pena tentar e é muito bom quando você
percebe que pelo menos está no caminho certo.
A única coisa
que não nos cabe fazer é agir de forma diferente daquela permitida pelos pais
do seu neto. Isso, com certeza, só traria prejuízos aos netos e não garante que
torne os avós felizes. Então, como último conselho de um avô que delira de vez
em quando, é: apesar de, boa parte das vezes, você não concordar com o tipo de
relação que seus filhos (filhos, filhas, noras e genros) querem impor a você e
seus netos, nunca faça com seus netos alguma coisa que seus filhos não
concordam. O resultado disso é uma relação harmônica entre você e seus filhos,
que, em última análise se transforma em benefício aos netos que, afinal de
contas, é o que todos queremos.
Esse foi o pior
momento no relacionamento com a minha nora. Quando escrevi aquela carta, que
não foi entregue, fiquei mesmo um pouco afastado do meu neto mais velho. Foi
uma fase tensa que passou e só teve algumas intercorrências no nascimento do
segundo neto. Mas hoje tudo está muito bem resolvido e nossa convivência é a
mais cordial possível, não tenho nenhuma restrição de acesso aos meus netos.
Aliás, um dos programas favoritos meu e dos netos é quando eles vêm dormir aqui
em casa às sextas-feiras à noite e só vão embora no sábado depois do almoço,
quando todos se reúnem e é uma efusão de felicidade, depois irei explorar um
pouco mais esse convívio nos finais de semana.
Esse fato
narrado me parece que não deixou marcas em mim, só narrei aqui para que, quem
ler esse livro não pensar que ser avô é só alegria. Às vezes tem algum dissabor
e é preciso ter paciência e não desistir dos netos, pois vale a pena lutar para
manter a relação com esses seres maravilhosos. E é bom ficar claro também que
este foi o último perrengue que tive com qualquer uma das noras. Acho que esses
episódios serviram para eu amadurecer como sogro e, de certa forma, me refinou
como avô. Hoje me considero um sogro mais seguro e um avô bem mais fácil de
conviver do que era antes de tudo isso acontecer.
A conclusão que
tiro disso tudo, então, é que quando chegou a vez de deixar os treinos e entrar
no jogo pra valer, não fui muito bem-sucedido. Pisei na bola feio. Não soube
lidar com a minha nora mais velha, mesmo que, teoricamente tivesse experiência
em lidar com ela, pelo fato de já ter sido o líder de uma equipe na qual ela
participava profissionalmente. Mas isso não adiantou nada. Quando coloco as
coisas em perspectiva e acompanho o presente, fica nítido pra mim que as
intransigências dela tinham apenas um motivo: o bem de seus filhos que, em
última análise significava que tudo o que eu passei é porque meu filho mais
velho arrumou uma mãe maravilhosa para meus dois primeiros netos homens.
Mas tudo isso
ficou lá no passado e espero que fique assim. Bem guardadinho lá e, se algum
dia, a gente revisitar aqueles acontecimentos seja apenas para tomar como
parâmetro para que não se cometa os mesmos erros.
Quando tive que
exercer essa mesma função com a nora mais nova, a mais velha já havia feito o
trabalho mais pesado e, parece que a mais nova não enfrentou graves problemas
comigo. Ou seja, eu já estava bem adiantado no aprendizado para ser sogro e
isso facilitou muito as coisas. Junte-se a isso o fato de a nora mais nova ter
um temperamento diferente e formou a química perfeita para que não houvesse
sobressaltos nesta segunda experiência de ser sogro. Para se ter uma ideia de
como as coisas vão evoluindo, minha primeira neta foi dormir em casa a primeira
vez quando tinha mais de três anos, o neto mais velho dormiu com mais de dois
anos e a neta mais nova dormiu a primeira vez em casa com menos de um ano.
Lógico que isso tem a ver com o que pensa cada uma das mães sobre as crianças
dormirem fora de casa, mas também dá uma ideia de como a gente vai evoluindo
como avô e como sogro. Pois, se como sogro não conseguíssemos algum progresso,
essas primeiras dormidas iriam aumentando a idade mínima, ou nem acontecendo.
Por isso, afirmo que as experiências todas que vivi foram me fazendo crescer
mais nas relações familiares.
Apesar disso, a
gente nunca está maduro o suficiente para agir sempre da forma necessária.
Aconteceu um fato bem recentemente que serviu para me provar o quanto ainda
tenho que caminhar nesse aprendizado de ser avô.
Todos meus
netos são muito ligados em tecnologias e é muito raro vê-los sem um tablet ou um smartphone nas mãos, jogando em rede ou sozinhos ou assistindo
algum vídeo. Ou seja, acesso à internet para eles é tão essencial quanto o
sangue que corre em suas veias. Para se ter ideia do quanto isso significa para
eles, não muito raro, tenho que colocar, enquanto dirijo, meu celular roteando
os equipamentos deles, para eles continuarem jogando em seus tablets. Quando eles não estão com seus
aparelhos, deixo meu smartphone
mostrando clips de músicas que eles vão
escolhendo, um de cada vez. Como o carro é grande e todos querem ouvir, tenho
que conectar o celular ao som do carro. Assim, o percurso passa a ser uma
viagem musical com os mais variados tipos de músicas, já que cada um gosta de
um tipo diferente.
Essa fixação em
tecnologias é um grande problema e uma grande solução. Problema, no sentido de
que deve fazer mal para as crianças ficarem tanto tempo assim conectadas
jogando alguma coisa ou vendo vídeos que, na maioria das vezes, são alienantes.
Solução, a partir do momento em que a gente tem uma opção pronta para distrair
todo mundo sem que necessite de qualquer investimento, a não ser uma
infraestrutura de rede razoável, que consiga dar vazão às necessidades de um
exército de netos.
Dentre as
audiências dadas pelos netos, os canais ganham de lavada. Eles consomem muitos
canais. Dois deles curtem esta modalidade intensamente e, é claro, sonham em
ter seus próprios canais. Certo dia, sem ter muito o que fazer numa noite
chuvosa em casa, aceitei o desafio desses dois netos para criar um canal para
eles e dei todo o suporte até o canal ficar pronto e hospedado no youtube. Depois disso fui o cameraman para eles gravarem o vídeo de
estreia e gravamos mais um. Subi esses vídeos para o canal deles e eles se
colocaram na expectativa da audiência. Nunca tinha visto aqueles dois tão
excitados como estavam naquela noite. Era interessante vê-los conversando sobre
quais os próximos vídeos que seriam produzidos, quais os assuntos que iriam
tratar. Como um deles gosta muito de futebol e o outro nem tanto, o que gosta
de futebol fez a proposta para o outro de publicar um vídeo de futebol e depois
nunca mais teria outro desse assunto. Só sei que aquele entusiasmo contagiava
todo mundo. Mas a noite se findou e não se produziu mais nenhum vídeo. Na manhã
seguinte, como estava programado que iríamos fazer um bingo, os dois
concordaram que iriam gravar um vídeo jogando bingo para postar no canal. O
vídeo foi gravado, mas acabou também não sendo publicado.
Quando seus
pais chegaram para o almoço de sábado, pois é nesse dia que fazemos o encontro
familiar, cada um deles falou todo empolgado para seus pais sobre a novidade.
Por parte de um dos casais de pais houve uma reação normal. Ou seja, nem
ficaram muito empolgados, tampouco incentivaram em demasiado a iniciativa. Já
outro casal de pais teve uma reação que mais parecia uma ducha de água fria na
grande realização daqueles meninos. Quando percebi aquela reação, descobri que
o canal dos meninos havia subido no telhado. À noite, pela conversa havida
entre mim e meu filho, vi que o sonho desses dois netos meus havia feito água.
As alegações
foram as mais diversas, mas, enfim, eles são os pais e devem saber bem o que
escolheram para seus filhos. Os argumentos giravam em torno da exposição
excessiva nas redes sociais, desaconselhada por especialistas. Não concordo com
isso, mas critérios são critérios. O pior seria não ter critério nenhum. A
minha opinião é um pouco diferente da dos especialistas, pois hoje em dia o
mundo está dividido em dois grupos: os influenciadores digitais e os
influenciados digitais. Proibir o filho de possuir um canal é deixá-lo
confortavelmente instalados na condição passiva de influenciado. Ao passo que
ao deixá-lo possuir um canal você está colocando-o na posição ativa de
influenciador. Ser influenciador ou influenciado não faz a mínima diferença,
mas ser ativo ou passivo com relação ao mundo digital, faz toda a diferença. É
a passividade que leva a pessoa a ser sedentária, submissa e resignada. Nada
quero, nada posso e nada muda.
Mas, enfim, não
tinha muito o que fazer além de ajudar meus netos abortarem aquele sonho de ser
um youtuber. Acho que foi a atitude
mais correta que tomei, depois de analisar melhor a questão descobri que estava
cometendo um desatino para o padrão de conduta que sempre procurei preservar. E
isso levou a me penitenciar diante do ocorrido.
Sempre que
tenho a oportunidade de falar para pais sobre a educação dos filhos, lembro a
questão do exemplo. Vocês já viram a discussão sobre isso aí pra cima. E, nesta
questão da montagem do canal, movido pelo anseio de realizar o desejo dos
netos, desobedeci a uma norma imposta pelo provedor de conteúdo que só permite
que pessoas com mais de treze anos defina um canal em seus domínios. Para
conseguir isso tive que falsear a idade deles e, inocentemente, coloquei o dia
do meu nascimento como data de nascimento deles. Embora eles nem faziam noção
de que isso fora feito, ainda assim me corrompi para conseguir montar o canal
deles. Péssimo exemplo que só fui tomar consciência da gravidade quando me pus
a refletir depois que os pais de um dos netos decidiram por não o permitir
fazer parte de um canal.
Esse acho que é
um caso daqueles que ilustra bem o quanto a gente erra tentando acertar. Parece
que na hora de fazer as coisas não se mede as consequências dos nossos atos. Colocando
em outra perspectiva: como poderia desobedecer a uma norma, num ato de
corrupção explícito, apenas para atingir um objetivo? Com que moral um dia,
poderia chegar para meus netos e pedir a eles obediência das leis se eu não as
obedeço. Será que esta regra vale apenas para eles?
Então, como
disse por aí, ainda estou num processo de aprendizagem em todas as áreas da minha
vida. Enquanto o palco de atuação, nos vários perfis que tenho, estiver
montado, estarei aprendendo alguma coisa. Sei, portanto, que ainda não sou o
sogro que deveria ser, mas vou tentando aprender a sê-lo e, mais ainda,
torcendo para atingir esse estado da arte. Oxalá alcance tão grande façanha.
APRENDENDO A ...
... SER AVÔ
Apesar de não
atualizá-lo com a frequência que eu gostaria, mantenho um blog, iniciado em
2010, chamado Netos e Netas, hospedado com o endereço http://essesnetosqueridos.blogspot.com/. Na mensagem de abertura eu coloquei
o seguinte texto:
Como tive dois
filhos homens, sempre sonhei que teria uma neta. Isso aconteceu em 2005, quando
nasceu a minha neta mais velha. Essa menina chegou e deu um sentido diferente
para minha vida. Era essa pessoinha que me fazia condicionar minha agenda
diária para conseguir um tempinho para passar na loja de sua mãe uma vez por
dia para vê-la. Assim fomos levando a coisa. Em 2009 nasceu o meu neto mais
velho, que, de novo, causou uma revolução na minha vida. Mais uma vez apareceu
uma pessoinha capaz de definir meus compromissos diários de forma que pudesse
vê-lo.
Neste blog
costumo publicar apenas textos meus, incluindo poesias que fiz para meus netos.
Mas num determinado dia recebi uma definição de avô que não resisti e colei,
pois achei de uma perfeição incrível como uma criança de oito anos consegue enxergar
com tanta sutileza esse estágio das nossas vidas. Vou reproduzir aqui, sem
citar o nome do autor, porque não o tenho, para todos verem que tenho razão.
Redação
de uma menina de 8 anos (adaptada), publicada no Jornal do Cartaxo,
em Florianópolis. “Um avô é um homem que não tem filhos, por
isso gosta dos filhos dos outros. Os avôs não têm nada para fazer, a
não ser estarem ali. Quando nos levam a passear, andam devagar e não pisam
nas flores bonitas e nem nas lagartas. Nunca dizem: some daqui!, vai
dormir!, agora não!, vai pro quarto pensar! Normalmente são gordos,
mas mesmo assim conseguem abotoar os nossos sapatos. Sabem sempre o que a
gente quer. Só eles sabem como ninguém, a comida que a gente quer comer.
Os avôs usam óculos e, às vezes, até conseguem tirar os dentes. Os avôs não
precisam ir ao cabeleireiro, pois são carecas ou estão sempre com os cabelos
arrumadinhos. Quando nos contam histórias nunca pulam partes e não se importam
de contar a mesma história várias vezes. Os avôs são as únicas
pessoas grandes que sempre têm tempo para nós. Não são tão fracos como
dizem, apesar de morrerem mais vezes do que nós. Todas as pessoas devem
fazer o possível para ter um avô, ainda mais se não tiverem televisão”.
Parece-me uma
definição precisa, com uma percepção ímpar do que é ser avô. Olhando meus netos
tenho a impressão que é exatamente desta forma que eles pensam sobre nós.
Quantas vezes em nossas brincadeiras um neto vai para o chão brincar e pede para
que a gente faça a mesma coisa. Quando conseguimos nos agachar e chegar ao
nível deles, eles se levantam abruptamente e já exige a presença nossa em outra
posição, de pé ou mesmo sentado no chão, mas em outro lugar, que envolve uma
manobra de nos levantarmos de um lugar, agacharmos em outro, ou ir se
arrastando até chegar no novo local. Ou seja, uma aventura que o avô leva
séculos para executar, ao neto não significa nada, pois o avô está ali só para
ele, só para brincar com ele, seja lá do que for.
Mas a
experiência de aprender a ser avô não tem igual no mundo. Tudo o que a gente
passa até chegar nesta fase da vida, fica no chinelo diante da imensidão dessa
missão. Não conheço nada no mundo que nos cause mais a sensação de conforto do
que a de estar junto dos netos, dormindo com os netos, viajando com os netos,
olhando para os netos, convivendo com os netos. Acho que Deus foi generoso com
o ser humano quando deixou esta possibilidade para nós.
Não se pode ter
a ilusão de que cumprir esta missão é coisa fácil. Mil vezes não. Requer muito
mais que uma habilidade. Requer uma constelação delas que se a gente for
relacioná-las é necessário escrever uma enciclopédia contendo todas as especialidades
ou as áreas do conhecimento humano que os avós precisam saber para conseguir levar
adiante o aprendizado de ser um avô minimamente antenado com os netos.
As situações do
dia a dia te colocam diante de fatos tão inusitado que muitas são as ocasiões
em que, depois da ocorrência, você se pergunta, como foi possível sair daquilo.
Tente imaginar você no meio do nada, ou no meio de todos e um neto seu pede
para fazer uma das necessidades fisiológicas, o que fazer? Vocês verão mais
adiante as saias justas em que já fui colocado e, para deleite dos meus netos,
tive que me virar para dar a solução que mais os agradava.
Nas próximas
páginas tentarei narrar algumas das muitas habilidades que um ser humano
precisa ter para alcançar o privilégio de ser chamado de avô. Lógico que o
espaço seria pouco para descrever todas as experiências vividas, mas selecionei
algumas habilidades e dentro dessas, selecionei alguns eventos para ilustrar a
narrativa.
APRENDENDO A...
... SER MÉDICO-AVÔ
Embora uma das
muitas profissões que tive, tenha sido “prático de farmácia”, medicina
definitivamente não é a minha praia. Desde quando deixei de ser prático, o meu
contato com os assuntos correlatos era apenas para aplicar injeção nos meus
filhos, fazer um ou outro curativo neles e nada mais que isso. Depois que os
filhos cresceram, nem isso eu fazia mais.
Mas aí vem os
netos e tudo toma dimensões inimagináveis. Aliás, a própria medicina toma
outras dimensões. São muito frequentes as ocasiões em que o problema maior é um
ralado no joelho, um espinho no pé, uma picada de abelha ou uma canela na borda
da piscina. O problema ganha dimensões estratosféricas e ultrapassa a
possibilidade de um adulto entender o que se passa com esses seres que Deus nos
presenteou na velhice.
Uma picada de
abelha toma as proporções de uma guerra com armas atômicas. Aquela abelha tem a
capacidade de provocar nos netos uma sensação de que o mundo está acabando numa
hecatombe tão completa que jamais o universo será o mesmo depois daquilo. O
mundo desmorona quando um neto seu sofre uma picada de abelha. Se existir um
ferrão, então, aí a hecatombe é para as próximas gerações até o fim dos tempos.
Diante da
possibilidade de nossos netos passarem por essa tragédia toda, o bom seria que
ela nunca acontecesse. Entretanto, para desespero dos avôs, elas acontecem e é
preciso estar preparado para isso. Sobretudo para a primeira vez que a tragédia
acontecer, pois muitas irão ocorrer durante sua convivência com os netos.
Mas, como se
preparar para tanto? Existe uma fórmula para isso? Primeiro, não é possível a
preparação, segundo, é claro que não existe uma fórmula pronta. Aqui entra a
porção saia-justa que falava antes. Cada uma dessas situações nos coloca problemas
muitas vezes sem solução lógica. Vejam bem, não é que não se deve agir com
lógica e racionalidade para cuidar dos netos. Mas isso não resolve, os
problemas ocorrem numa camada supranatural. Aquele ser que está ali na sua
frente sofrendo os males do mundo porque levou uma picada de abelha, está
sofrendo é com a alma e não com o corpo. Senão, como explicar a intensidade
daquele choro? Isso só pode ser sofrimento transcendental. Logo, a cura só irá
acontecer se existir um tratamento dado coração a coração. A sintonia, então,
que deve existir entre você e seu neto tem que ser aquela em que somente será
perceptível quando você a enxergar naquele nível que está um pouco acima da
razão.
Numa das minhas
saídas com meus netos, minha neta mais nova estava feliz da vida, correndo pra
cá e pra lá de tal forma, que observar aquilo era a comprovação de que o
nirvana existe. De repente ela cai e rala o joelho. Aquilo foi uma ducha de
água fria sobre toda aquela alegria saltitante. Ela saiu do melhor dos mundos e
foi direto para o centro de uma guerra. Chorava tanto que só de ver aquela cena
doía muito e, com certeza, doía muito mais na gente do que nela. Ela se
levantou, se aproximou de mim, sofrendo aquele desabar do mundo sobre sua
cabeça, eu a coloquei no colo, encostei seu coração no meu e a apertei junto ao
peito. Nesse momento entrei nos escombros da explosão que ela acabara de
sofrer. Ali, assim, agarradinhos, eu sentindo o pulsar do seu coração,
percebendo as lágrimas escorrerem de seus lindos olhinhos, mas eu não tinha a
menor ideia do que fazer. Aliás, sem poder fazer nada. Naquele momento, mesmo
que tivesse à minha disposição uma ambulância com todos os recursos para tratar
de qualquer ferimento físico, ainda assim não seria suficiente para resolver o
problema. O ferimento não era físico. Era de outra ordem.
Uma canção
muito bonita que minha neta vive cantarolando, diz em um de seus versos que “um
joelho ralado dói bem menos que um coração partido”. Quando a minha neta estava
ali no aconchego do meu colo, que a gente sentia um o pulsar do coração do
outro, me lembrei dessa canção e comecei bem baixinho cantarolar apenas esse
verso da letra. Devagarinho seu choro foi se transformando em soluço, seu
soluço foi se transformando em silêncio e de repente ela estava repetindo
comigo essa parte da música. Com certeza uma criança de três anos não consegue
entender qual o sentido que foi dado a “coração partido” na canção, mas, era
nítido que no momento anterior àquele sorriso penetrante que minha neta me deu,
ela estava com o coração partido por estar transitando por escombros de uma
batalha que ela travava consigo mesma. Muitos são os fatores que levam a isso.
Tente imaginar o quanto as pessoas ficam de mau humor quando estão com sono.
Imagine você com sono. Normalmente a gente se transforma em outra pessoa. Os
adultos normalmente têm consciência disso e não deixam esse estado influenciar
no relacionamento, mas uma criança não tem esse filtro. Agora associe um joelho
ralado a tudo isso e estão criadas as condições para que seja declarada a maior
de todas as guerras mundiais.
Terminada esta
intervenção médica ela se recompôs e foi ao encontro dos demais combatentes,
que naquela manhã eram dois primos e seu irmão. O joelho ralado não doeu mais,
o coração partido agora estava refeito e tudo foi recolocado em seus devidos
lugares. É provável que ela nem se lembre mais daquele episódio, mas em suas
sinapses sentimentais, com certeza aquele momento tem posição de destaque.
Concluindo, é
esse tipo de medicina que os avôs devem praticar, onde a parte física é o que
menos conta. O que importa mesmo é a disponibilidade, a atenção e dar toda
importância possível a qualquer reclamação mesmo que seja a coisa mais sem
sentido que você já ouviu na vida.
APRENDENDO A...
... SER JUIZ-AVÔ
Se tem uma
função que o avô é chamado a exercer a todo instante, essa função é a de ser
juiz. Não passa um minuto sequer sem que você seja demandado a tomar uma
decisão a favor desse ou daquele neto. Claro que, como todas as decisões
judiciais, ao dar uma sentença você agrada apenas à metade dos demandantes.
Quem não teve suas pretensões atendidas, jamais achará que foi feito justiça. Se
nos tribunais é assim, por que seria diferente nas relações entre avôs e netos?
Quem tem a
experiência de conviver com crianças deve saber que elas são dadas a reclamar
umas das outras de forma veemente. Quem prestou atenção aí pra cima, percebeu
que tenho um neto que, neste quesito, é mestre. Ele não reclama contra os
outros apenas quando os outros lhe perturbam. Ele reclama contra os outros
sempre que vê algum deles fazendo alguma coisa que ele acha reprovável. Um
verdadeiro “x-9”, como eu e o pai dele o chamamos.
Então, um neto
chega para você e delata o outro, conta todos os detalhes do delito que o outro
está cometendo. Você sabe que aquilo pode estar errado, mas que, se ninguém
fica sabendo, não vai alterar nada. Que diferença faz se o neto jogou uma
almofada em cima de um armário? Nenhuma. Apenas poderia acontecer de a almofada
atingir uma lâmpada, caso o jogador errasse a pontaria. Entretanto, quando o
delator vem nos contar isso. Você vai até a cena do crime e percebe que a
almofada já foi jogada. Já está sobre o armário. Não machucou ninguém. O
jogador não errou a pontaria. Ou seja, aquele ato, que é próprio de uma
criança, praticado daquele jeito não fez e não fará mal a ninguém. No entanto,
veio um delator e nos relata aquele episódio nefasto, que poderia ter causado
um grande estrago na humanidade e que, na visão dele, precisa ser evitado a
todo custo para que não coloque mais a humanidade em risco. O que fazer diante
disso, então?
Prestem bem
atenção no que está acontecendo por aqui. Uma pessoinha praticou um ato que,
potencialmente poderia ter causado algum estrago, mas, na prática não causou
nenhum dano à toda a humanidade dos netos reunidos na casa do avô. Entretanto,
veio um delator e narrou o acontecido para você e, a partir desse momento, você
é sabedor de que alguém cometeu um delito em potencial. Se você não der o
devido valor à narrativa do “x-9”, você estará, de certa forma, fornecendo ao
delator a autorização para praticar aquele ato. Se você der atenção ao ato
delitivo, você incentivará os outros a praticar o dedurismo, macartismo,
xixnovismo e outros ismos que pode receber o ato de delatar as pessoas. E mais
ainda. Se você der ouvidos ao delator, é necessário montar um tribunal de júri
para julgar a pendenga.
Eu sempre opto
por montar um tribunal para atender esta demanda. Nessas horas entra em ação o
avô-juiz. É preciso de plano ver um advogado para o faltoso que precisa ser
alguém que presenciou o delito, ouvir as testemunhas, que não pode ser o
advogado. Depois de ouvir as testemunhas, deve-se ouvir as partes e prolatar a
sentença. Se estiver difícil um advogado para o faltoso, entra em ação a figura
do avô-juiz-advogado.
Neste ponto
entra a corda bamba. Qualquer escorregão você cai feio e não consegue mais se
levantar. Ali, diante de vários olhares sedentos por justiça, como você vai
fazer para praticá-la? Se você decidir a favor de um, pode estar passando uma
mensagem errada para ele e para os outros. Se você decide a favor de outro, não
muda nada, o corolário é o mesmo.
Nesse momento,
seria melhor um buraco. Daí a gente entrava nele e só sairia dali quando os
ânimos se acalmassem. Mas, não adianta, eles estão ali esperando que você dê
uma decisão e não tem como escapar deste cadafalso. Você pronuncia a sentença
esperando que aqueles serezinhos tenham compaixão de um avô-babão-juiz, que não
sabe o que fazer para agradar a todos. Felizmente os netos são muito mais
piedosos que as demais pessoas do mundo. Quem teve a sentença desfavorável, te
olha com a cara de quem sabe que você só tomou aquela decisão porque foi
pressionado pelas forças ocultas da associação dos outros netos, aqueles que
não cometeram o delito que está sendo julgado naquele momento.
O bom de tudo é
que isso não dura mais que dez minutos. Aliás, não pode durar mais do que isso,
senão não dará tempo de eles cometerem outros delitos, oferecendo a chance de
alguém delatar e começar tudo de novo. Quando acontece de novo, a sentença sai contra
outro, e outro, e outro, assim numa série de julgamentos, que, ao fim e ao cabo,
fazem esses netos sentirem-se importantes por estar recebendo a atenção
integral de um avô que adora fazer parte das aventuras desses pequeninos seres
que iluminam nossas vidas, mesmo tendo que julgá-los de vez em quando.
APRENDENDO A...
... SER FONOAUDIÓLOGO-AVÔ
Sempre tive
muita curiosidade para entender como as crianças ouvem certas palavras que são
pronunciadas pelos adultos. Pelo que elas devolvem para nós de vez em quando, é
muito difícil decifrar como a mensagem chega até eles.
Um sobrinho da
minha esposa quando pequeno sempre que ia falar cavalo, trocava por uma palavra
que não existe no português e que a partir de seu lançamento passou a ser
utilizada por todas as pessoas que convivia com ele. A palavra era “palau”.
Sempre, então, que a gente via um cavalo, chamávamos de palau e assim ficou.
Até hoje ainda nos lembramos dessa palavra.
Da mesma forma,
este mesmo sobrinho deu o nome de “cabeço” para travesseiro. Sempre que ele ia
dormir pedia o cabeço para encostar a cabeça. Essa palavra, com esse
significado, acabou por fazer parte do nosso vocabulário.
Depois vieram
os filhos e nenhuma palavra nova lembro de ter sido inventada nesta fase,
embora tivemos problemas fonoaudiológicos com eles, sobretudo na escrita,
trocando “d” por “t”, “p” por “b” e outras coisinhas que algum tempo de
tratamento profissional resolveu e, parece, não ficou sequelas.
Quando os netos
começaram a nascer o neologismo voltou a atacar e me deparei com algumas
palavras novas inventadas pelos netos. A que mais chamou a atenção foi uma
palavra tirada não sei de onde, que representava tartaruga. Meu neto mais
velho, sempre que via uma tartaruga pela frente, ao vivo ou em algum filme ou
desenho, falava que ali estava uma “catatai”. Isso mesmo, catatai. O que isso
tem a ver com tartaruga, não faço a menor ideia, mas era assim que ele chamava os
coitados dos quelônios.
Entretanto, às
vezes a gente é colocado de frente com algumas expressões que saem da cabecinha
desses seres iluminados, que a mente criativa deles nos mostra o quanto eles
são inatingíveis em seus pensamentos e elucubrações. Noutro dia, estávamos
todos, eu e os netos, num passeio de um sábado qualquer, e, nestas ocasiões, as
conversas, como sempre, giram em torno de qualquer assunto. Nesse dia, a pauta
era um assunto escatológico, pois girava em torno das necessidades
fisiológicas, sobretudo a necessidade do número dois mesmo que, trocando em
miúdo, girava em torno de cocô. A certa altura o neto número três fala a
palavra concordar sem que ninguém estivesse discutindo sobre concordância ou
não a cerca de determinado tema. Ninguém entendeu a palavra “concordar” ali,
totalmente fora de contexto e, todos queriam saber a explicação. Sem se fazer
de rogado o neto deu a resposta esperada por todos. “Concordar de cocô”. Pronto
estava tudo explicado. Que bom!
Noutra ocasião,
enquanto passeávamos de carro, estávamos discutindo alguma coisa sobre música,
pois eles vivem querendo ouvi-las no bluetooth do veículo. O meio para eles
ouvirem é o youtube, busca-se alguma música no aplicativo posiciona-se o
celular no suporte e assim todos podem assistir. A certa altura, o neto número
três, sempre ele, lascou a palavra “repertório”. Aos demais netos aquela
palavra passou despercebida. Quem não estivesse ligado, também não iria notar,
já que estávamos discutindo sobre música e repertório tem tudo a ver com o
assunto. Mas achei estranha a palavra, pois não se encaixava no que se falava
na ocasião. Quis saber, então, o que ele queria dizer com repertório. A
resposta foi singelamente “vô é que eu quero repetir a música, então é
repertório de repetir”. Mais uma vez, tudo explicado e segue o barco.
Com essas e
outras a gente tem que exercer a função de fonoaudiólogo, misturado com intérprete
de linguagem exóticas e tradutor de palavras inventadas ao sabor do vento.
Quando o tempo vai passando e aquelas situações ficam esmaecidas na memória,
sobram as lembranças de que um dia tivemos com nossos netos um relacionamento
simbiótico capaz de misturar tudo a ponto de ser impossível saber onde termina
eu e começa os netos ou onde termina os netos e começa eu. Isso é muito
gratificante.
APRENDENDO A...
... SER GUIA TURÍSTICO-AVÔ
Quando se mora
em uma grande cidade são muitas as opções para levar crianças a passear. Mas se
a cidade que você mora é a capital de um Estado periférico do país, é muito
difícil encontrar locais para levar os netos para passear e, nessas condições,
é necessário ter muita imaginação para inventar lugares interessantes para as
crianças passearem.
Todas as
sextas-feiras nossos netos, todos, vêm dormir em casa. É nesse dia que a gente
dá um vale night aos filhos, noras e
genro. A programação começa já na sexta-feira, mas neste dia já se estabeleceu
uma programação padrão. Existe uma sorveteria por aqui que oferece um ambiente
com uma quantidade boa de aparelhos e brinquedos que os atrai sobremaneira. É
neste local que a gente vai todas as sextas-feiras. Colocamos seis netos no
carro e ficamos por lá durante uma hora em que eles se esbanjam e, ao final
deste tempo todos vamos tomar um sorvete e depois voltamos pra casa.
Não é nem
preciso narrar a logística que é para sair de casa, colocá-los no carro,
tirá-los do carro, fazê-los ingressar no espaço onde estão os brinquedos, já
que cada um tem que estar portando uma pulseira e, ao final, servir sorvete
para todos. Cada um quer um tipo de sorvete diferente, servido de forma
diferente com uma embalagem diferente e, pior ainda, é um buffet de sorvete self-service
e um avô só, para servir todos. Quando a avó vai junto, já é um alívio. Mas é
uma logística complicada para cada um desses momentos.
Sempre tínhamos
problema já para levá-los todos para os lugares. Para resolver isso, decidimos
que deveríamos comprar um carro maior. Na primeira oportunidade de fazer um upgrade nos carros, optamos por um que
tinha sete lugares. Cabe o motorista e mais seis netos. Quando a avó está junto,
ela fica com a menor no colo, no banco do meio e assim colocamos oito pessoas no
carro. Nunca mais tivemos problema de transporte de netos.
Coloquei como
regra levar os netos no sábado de manhã para algum lugar. Isso, porque depois
do programa da sexta-feira, a casa fica de pernas pro ar. Quando a gente vai
dormir, por volta da meia-noite, parece que passou um furacão na casa. Não
existe cômodo que não esteja revirado. Apenas as camas ficam livres para a
gente encostar os corpos.
Aliás, na hora
de dormir a gente divide a turma por gênero. Eu fico com os quatro meninos no
“quarto amarelo” e a avó fica com as meninas no nosso quarto. Quarto amarelo
foi o apelido que um dos netos deu para um dos quartos que tinha uma cama e
quase sempre protegida por uma colcha meio amarela, meio laranja, meio bege e
acabou ficando “quarto amarelo”. Depois tiramos a cama e preparamos o ambiente
com tapete de EVA e três colchões que ficam empilhados durante a semana e na
sexta-feira são usados para brincar até a hora de dormir, depois o quarto vira
uma grande cama para cinco pessoas. É neste quarto que ficam todos os
brinquedos dos netos, videogame, gibis e demais coisas necessárias para
distrair uma turma do barulho.
Então, quando
chega o sábado de manhã a casa está quase inabitável. Coitada da pessoa que nos
ajuda na limpeza. Quando eles acordam é outra loucura para servir o café da
manhã pra turminha. O cardápio é razoavelmente sossegado: bisnaguinha para
comer e achocolatado para beber. Ocorre que, na hora de servir cada um desses
dois itens do cardápio é que a coisa pega. Um gosta do achocolatado frio, outro
morno, outro quente. A bisnaguinha, um a come pura, outro com doce de leite,
outro com requeijão, uns comem duas, outras comem quatro. Ou seja, apenas dois
itens no cardápio se transformam em muitas variações.
Depois do café
da manhã, faço questão de sair com todos, para que a pessoa que nos ajuda tenha
pelo menos umas duas horas para dar uma geral na casa, enquanto a avó prepara o
almoço que será servido por volta da uma da tarde para todos, incluindo os
netos e os pais. São quatorze pessoas, seis crianças e oito adultos, que se juntam
em casa para almoçar no sábado. Logo, é necessário um mínimo de organização da
casa para quando os pais dos netos chegarem, ter pelo menos um lugar para pisar. Para
que esta organização aconteça é preciso liberar a casa.
Mas, o grande
desafio é montar um roteiro para cada sábado de manhã, de forma que seja
atraente, pois é importante dar esse tempo para a nossa ajudante limpar a casa.
Aqui, tive que colocar toda a minha habilidade de agente de viagem e guia
turístico pra fora. Comecei por mapear todas as opções que tinha, e não eram
muitas. Aliás, eram pouquíssimas. Imagine onde eu poderia levar um grupo de
seis crianças para passear, num sábado de manhã. Haja criatividade!
Dentre as
poucas opções, a do kartódromo foi bastante utilizada. Eles gostam muito do local.
Quando eu narro isso para as pessoas, a reação normal é pensarem que meus netos
gostam muito de corridas. Mas não é bem assim. O kartódromo sempre está em
reforma e atrás do paddock sempre tem
um morro de areia para construção. Essa é a atração. Isso mesmo, a gente sai do
prédio, anda mais ou menos uns cinco quilômetros para chegar no kartódromo,
tudo isso para meus netos brincarem num monte de areia. Eles levam tão a sério
isso que, com certa frequência, são levados de casa algumas vasilhas para que
eles possam brincar melhor com a areia. Quando não levam vasilhas de casa,
aproveitam alguma embalagem pet que encontram, para suas brincadeiras. Cansei de
trazer para casa garrafas pet cheias de areia, que eles dão algum destino.
Depois que eles
brincam até cansar naquelas areias, se sujam muito, vamos para o paddock, que tem uma cantina, cada um
compra um salgadinho ou um doce, ou os dois, um suco e vamos embora. Às vezes
forço um pouco a barra, e levo eles até o local onde os karts de aluguel ficam
estacionados, ali tiro alguma foto deles em posição de pilotar. Esse é o máximo
de contato que eles têm com os karts. Ou seja, o negócio deles não é automobilismo
e sim construção.
Outro passeio
que eles curtem bastante são as visitas que fazemos pela barranca do Rio
Madeira. Existe um lugar aqui onde, no início do século vinte, funcionava o
complexo de estação e oficinas da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Esse lugar,
apesar de meio abandonado, sempre esteve aberto à visitação. Existe uma espécie
de porto onde embarcam turistas nos “gaiolas” que fazem um passeio pelo rio. Um
passeio que dura em torno de trinta minutos, custa em torno de quinze reais e
crianças não pagam. De vez em quando a gente sobe num desses passeios e as
crianças se divertem bastante. Entretanto, um passeio que qualquer turista
aproveitaria para apreciar aquele mundão de rio, as crianças o utilizam para
brincar durante todo o percurso e, lógico, comer alguma coisa que é vendida no
bar do “gaiola”.
Neste mesmo
ambiente, existe um restaurante flutuante. Na verdade, um barco adaptado que
foi colocado perto da barranca do rio que serve refeições e à noite funciona
uma espécie boate. Para atingir esse barco/restaurante/boate é necessário
atravessar um negócio que eles chamam de ponte, que não passa de umas tábuas
jogadas sobre outras tábuas com uns pregos aqui, outros ali. Lá no interior do
Paraná a gente chamava isso de pinguela, mas aqui recebeu o nome de ponte e é
por esse meio que se tem acesso àquela embarcação. As crianças gostam muito
desse barco e sempre que vamos lá eles preferem isso ao passeio de “gaiola”. E
o que eles fazem neste barco/restaurante?
O lado de fora
do barco, na parte que dá para o Rio Madeira tem uma plataforma pequena onde
foram colocadas umas cadeiras e depois de colocadas as cadeiras, sobra em torno
de meio metro para as pessoas transitarem. Quando a gente chega no barco, a
primeira coisa que eles pedem é para comprar salgadinho, que eles estão com
fome. Nunca vi criança ter tanta fome. Sentamo-nos naquela plataforma para que
eles comam os seus salgadinhos e descansem um pouco. Isso é só desculpa para
eles jogarem comida para os peixes do Rio Madeira. Aquela imensidão de rio, com
tantas opções para os peixes se alimentarem e eles pensando que um salgadinho
vai chamar a atenção de algum peixe. Um dia, tive e impressão que um dos netos
conversando com o outro num desses momentos, disse que gostaria que um boto
viesse comer o salgadinho que ele estava jogando na água. Não é nenhum absurdo,
já que botos existem aos montes neste rio. Quando a gente faz o passeio nos “gaiolas”
é possível ver alguns brincando pelas águas.
Faz parte desse
complexo também um porto flutuante onde são embarcadas as pessoas e as
mercadorias com destino a várias localidades da Amazônia e mesmo para Manaus.
Funciona mais ou menos assim, os barcos, também gaiolas, um pouco maiores que
aqueles usados para passeio, estacionam no porto e começam a ser carregados,
tanto de pessoas, quanto de mercadorias. Ao redor do porto existem várias agências
que vendem passagens para Manaus, Parintins, Humaitá e tantas outras
localidades amazônicas. As pessoas compram as passagens e já vão se acomodando
nos barcos. Tem vantagem quem chega primeiro, porque pode instalar sua rede em
lugar mais bem localizado, já que, como a viagem chega a levar quatro dias, a
opção para dormir é apenas a rede. Então, chegar mais cedo pode significar montar
a rede em um lugar privilegiado. Nisso, os barcos vão recebendo as pessoas que
irão seguir viagem, ao mesmo tempo que as empresas de transportes, que
aproveitam esse modal, vão trazendo suas encomendas e os barcos se enchem de
tudo que deve ser levado pelo rio afora.
Durante esse
período em que as embarcações são carregadas, de pessoas e mercadorias, é uma
confusão só. Ao mesmo tempo em que as pessoas estão armando suas redes,
mercadorias são colocadas dentro do barco. Às vezes os compartimentos de carga
se esgotam e mercadorias são colocadas no mesmo ambiente onde as redes estão
sendo instaladas. Quem olha aquilo de fora pensa que não vai dar certo, mas no
final tudo se ajeita e, muito tempo depois, a embarcação sai e segue seu
destino rio abaixo.
Pois bem, uma
das opções de passeio que temos, e que os netos gostam muito, é visitar esse
porto flutuante e ajudar a estabelecer o caos no ambiente, pois, além de tudo o
que está acontecendo por ali, ainda chega um avô com uma penca de netos para
passear. A gente entra nos barcos que estão esperando para zarpar, alguns já
com passageiros, outros apenas com mercadorias e transitamos por aquela
balburdia toda para o deleite dos netos. Alguns barcos chegam a possuir até
três andares, além do porão. Tirando o porão, que nunca ousei deixá-los entrar,
vamos em todos os andares e, sempre a transição dos netos de um andar para
outro da embarcação é uma função, pois a ligação entre os andares, normalmente
é uma escada muito estreita. Quando acho que está na hora de sair, sugiro a
eles que a gente compre um din-din, um tipo de picolé em saquinho, para cada um,
que sempre é possível comprar de um ambulante que está ali para atender aos
passageiros que estão embarcando ou embarcados. Como eles sempre estão com
vontade de comer alguma coisa, a ideia de chupar um din-din é aceita por todos,
faz-se uma pausa para isso e vamos embora todos exaustos, eu por ter que
redobrar a atenção, em função do ambiente inóspito e eles por ter aproveitado
até a última gota do passeio.
Entretanto,
nenhum outro passeio atrai tanto os netos quanto passear de ônibus. Para se ter
ideia de como essa atividade atrai a moçada, tenho um neto que troca qualquer
programa por um tablet. Sempre que
vamos fazer um passeio, gastamos um bom tempo para convencê-lo a nos
acompanhar. Porém, quando se trata de andar de ônibus, é o primeiro que fica
pronto para sair. A atividade é relativamente simples: você entra em um
determinado ônibus, vai até o ponto final e volta. O problema é operacionalizar
essa atividade.
Quando me
ocorreu esta ideia, imaginei que deveria primeiro testar com poucos netos. Numa
manhã de sábado, estava com dois deles e decidi fazer a experiência. Acho que
nenhum dos dois havia andado de ônibus urbano, por isso a missão de convencê-los
não foi tão difícil, eles ficaram excitados com a ideia.
Saímos de casa
e ficamos em torno de trinta minutos na parada esperando um ônibus passar.
Qualquer um servia, já que não tínhamos destino certo e a ideia era ir até o
ponto final e voltar. Quando chegou o “busão” entramos e eu não sabia como
proceder para pagar, quanto custava, se os meninos tinham que pagar etc.
Resolvidas essas questões burocráticas, os meninos passaram por baixo da
catraca, paguei apenas a minha passagem, nos instalamos nos bancos, àquela
altura de uma manhã de sábado, vazios, e iniciamos nossa aventura.
A minha ideia
inicial era dar um “balão”, como se diz, quando o ônibus dá uma volta completa
em seu itinerário, e depois descer no mesmo ponto em que havíamos iniciado a
viagem. Entretanto, a certa altura, um dos netos me falou que estava com
vontade de fazer xixi. O que fazer? Todos sabem que nos ônibus urbanos não há
banheiro. Tinha que resolver o problema e propus descermos do ônibus para
procurar um lugar apropriado. Assim que terminamos de descer, avistei um poste
de eletricidade, há uns dois passos, sugeri a eles que fizessem xixi no pé
daquele poste. Claro que eles aceitaram de pronto e acharam aquilo o “maior
legal” como diriam os paulistanos.
Assim foi a
nossa estreia num dos passeios que acabou sendo eleito por todos o melhor.
Sempre que tenho alguma dúvida para preencher a manhã de sábado de meus netos,
sugiro o passeio de ônibus e eles curtem bastante. Com o tempo a gente vai
adquirindo experiência e já leva coisas para comer dentro do ônibus e isso, na
maioria das vezes, envolve uma passada no supermercado para cada um comprar o
que vai levar para o “picnic” itinerante. A bagunça já começa no supermercado,
pois é um bando de netos fazendo compra de salgado, doces e sucos para viajar
de ônibus.
Outro episódio
envolvendo vontade de fazer xixi, aconteceu dentro de casa mesmo. Estávamos
reformando um dos banheiros do nosso apartamento e só estava disponível o
banheiro da suíte. Nesta noite estavam os dois netos mais novos. Ocorre que a
neta menor já estava dormindo com a avó e deu vontade de fazer xixi no neto.
Para resolver o problema, peguei uma garrafa pet de água mineral que estava
vazia e ofereci ao meu neto para que fizesse xixi nela. Ele fez, achou aquilo o
“top das galáxias”, segundo o dialeto deles, e ficou comentando aquilo durante
muitos dias.
Aquilo foi a
sensação do neto número cinco por muito tempo. Seu pai narrou que ele lembrava
do fato várias vezes ao dia. Ou seja, um ato quase banal, torna-se um
acontecimento para esses seres que temos o prazer de conviver e que ficarão
marcado indelevelmente em suas mentes e corações para toda a vida.
Minha experiência
como guia turístico tem sido uma das mais agradáveis. Ninguém sabe o que é, por
exemplo, você sair de ônibus urbano com uma galera e interagir com eles durante
uma viagem cheia de novidades. No dia a dia eles sempre andam pela cidade, para
ir à escola, à natação, à aula de inglês ou outras atividades. Entretanto, eles
sempre andam de carro, praticamente ao nível do chão. De ônibus eles têm uma
outra perspectiva de visão. Enxergam as coisas de cima e isso faz toda a
diferença. Sob este ponto de vista, lembra muito “Sociedade de poetas mortos”,
com Robin Williams, na cena clássica em que os alunos sobem nas carteiras e
passam a enxergar o ambiente diário deles sob outra perspectiva. Acho que isso
que as viagens de ônibus causam nesses queridos seres.
Eu, como
testemunha ocular desta experiência vivida por eles, não poderia sentir mais
recompensado do que sou e agradeço muito a Deus de me permitir chegar nesta
idade, tendo forças e meios de poder curtir isso.
APRENDENDO A...
... SER ADVOGADO-AVÔ
Hoje, como
aposentado, decidi por abraçar a profissão de advogado. Sonho antigo esse, mas,
como na cidade onde tive a chance de fazer a primeira faculdade não tinha o
curso de direito, decidi por fazer ciências econômicas. Como economista,
consegui entrar numa carreira de estado, numa função que exerci até a
aposentadoria. Enquanto estive nesta carreira foi-me possível fazer o curso de
direito e me tornei bacharel, aprovado no exame da ordem, congelei a aprovação,
pois minha função pública não permitia que exercesse a advocacia.
Aposentado,
então, não existia mais impedimento para eu exercer esta profissão que sempre
sonhei em seguir. Assim, me lancei em mais um desafio da minha vida. Trocar de
profissão, é a quarta vez que ocorre em minha vida. Na minha tenra infância eu
trabalhei na casa de uma família como pajem de criança. Foi o meu primeiro
emprego formal que tive fora de casa. Depois vieram: balconista de farmácia e
técnico em informática, onde exerci várias funções, de operador de computador a
gerente de CPD. Essas duas foram narradas com mais detalhes aí pra cima. Depois
disso, entrei numa carreira de funcionário e agora advogado.
Nos dias que
precederam a minha entrada definitivamente nessa nova profissão, tive uma
demonstração de como a atividade de operador de direito é importante. Um dos
meus netos me fez ver que sempre tem alguém precisando de um advogado.
Em um
determinado dia da semana, o meu filho mais velho costuma almoçar comigo e
minha esposa, já que é um dia que a diarista está em casa e é uma chance de ele
e seus filhos não comerem comidas compradas em restaurantes.
Embora, muito
antes que eu dedicasse oficialmente à carreira de advogado, tive que exercer
essa profissão como meio de sobrevivência no emaranhado de situações que meus
netos me colocam sempre que tem mais de um envolvido em alguma atividade.
Sempre tive que respeitar o sacrossanto direito que todas as pessoas têm a uma
defesa justa e eficaz. Embora isso, entretanto, foi num desses almoços de meio
de semana que um dos meus netos me acendeu a luz de que eu não fugiria de
exercer oficialmente a profissão.
Estávamos todos
almoçando quando meu neto me lançou a pergunta: - vô, você está precisando de “criente”?
Assim mesmo, nem falar cliente direito o gaiato sabia, mas já estava interessado
em saber se eu estava precisando de alguns. Quando entendi a pergunta,
seguiu-se o seguinte diálogo. – Sim, estou precisando muito de cliente, pois
estou começando a carreira agora. – É que eu tenho um amigo que o pai dele está
precisando de um advogado. – Tá certo, vou te dar um cartão meu e você entrega
pra ele. Tá bom? – Aí eu levo pra ele. Detalhe importante, esse meu neto tinha
seis anos quando esse diálogo foi travado. Ainda tinha o agravante de que o pai
dele também é advogado e ele queria indicar a mim, como advogado do pai do amigo
dele. Fiquei muito lisonjeado, mas aquilo me levou a algumas questões
interessantes: como serão as conversas entre duas crianças de seis anos, para
que uma delas fale para o amiguinho que o pai dele está precisando de um
advogado? Por que será que meu neto ignorou seu pai e veio oferecer para
apresentar ao seu amiguinho, que tinha um pai que estava precisando de
advogado, justamente a mim?
Fiquei sem
resposta a essas questões, mas tive a certeza que estava sendo avalizado pelo
meu neto para o exercício da profissão. Ter a aprovação de um neto em qualquer
atividade é tudo que qualquer avô quer. Aliás, não existe honra maior que essa.
Mas, não abri
esse capítulo para falar do exercício de uma profissão formal, que escolhi para
exercer depois de me aposentar. Abri esse capítulo para falar sobre o exercício
da advocacia no convívio diário com os netos. Não é possível exercer a função
de avô se não conseguir ser um bom advogado, pois tem horas que se é demandado
para defender os casos mais esdrúxulos trazidos pelos netos e nessas horas você
tem que ter em mente que até os mais gaiatos dos seres merecem uma boa defesa.
Sempre existe um neto mais gaiato que o outro, sobretudo quando se tem tantos.
Aliás, em qualquer grupo de pessoas essa verdade vale.
Noutro dia, um
dos meus netos entrou em meu escritório correndo e minha neta menor vinha atrás
dele. Ao fechar a porta machucou a mão da minha neta. O irmão da minha neta,
viu a irmã dele chorando, avançou sobre aquele que tinha fechado a porta e
deu-lhe alguns tapas. De repente estava na minha frente uma neta chorando
porque tinha machucado os dedos e outro neto chorando porque tinha levado uns
tabefes. Nessas horas a boa psicologia de avô manda que se dê uma bronca
genérica em todos, já que não se sabe quem é que tem razão. Os motivos da
bronca, com certeza devem ser diferentes, mas, todos devem se sentir
repreendidos. Depois de passado o efeito da mordida, deve-se conversar
separadamente com cada um, para assoprar mordendo.
Quando entrei
na segunda fase da repreensão, aquela em que tinha que assoprar mordendo, o
carinha que tinha machucado a mão da minha netinha me veio com um argumento
quase irresistível do ponto de vista do direito. Disse ele: - Vô, sei que
machuquei minha prima, mas foi sem querer, mas o irmão dela me bateu por
querer. Como ir contra um argumento desse. Do ponto de vista do bom direito penal,
na ação de um, não havia o dolo, apenas a culpa. Ou seja, não era intenção de
machucar a prima, portanto, pode ter havido culpa, já que o machucado se deu
por uma ação dele. Mas, por outro lado, não houve dolo, pois a intenção dele
não era machucar. Já o outro, que deu uns tabefes no primo, agiu com dolo, pois
quis aquele resultado.
Só esclarecendo
um pouco aos não iniciados em direito. Quando a legislação fala em culpa, está
dizendo que o dano, provocado pela pessoa, não foi de propósito. Então, diz-se
que houve a culpa, pois o dano foi causado sem que o praticante do ato tenha a
intenção de atingir aquele resultado. Diferentemente do dolo. O ato doloso é
aquele que a pessoa assume o risco do dano, que se chama, neste caso, dolo eventual. Por
exemplo, quando alguém dirige a duzentos por hora numa rua está assumindo o risco
de causar um acidente. Ou quando a pessoa quer o resultado. Neste caso diz-se
dolo direto. Por exemplo, quando um condutor vê uma pessoa na calçada e joga o
veículo sobre esta pessoa.
Diante disso, o
que fazer? Como um pretenso advogado que quero ser, tenho que passar a defender
o argumento da culpa e não do dolo, para um, e defender o dolo para outro.
Lógico que é preciso defender os dois, pois a ninguém pode ser negada uma
defesa competente. Mas, é pisar em ovos. Sobretudo porque o advogado é um avô
babão que ama demais as vítimas e os culpados, se é que existem vítimas e
culpados nesses imbróglios.
O SÉTIMO ELEMENTO
Iniciei esses
escritos, falando sobre o sétimo neto que havia acabado de ouvir sua pulsação
através de um áudio enviado para minha esposa, numa noite qualquer de dezembro
de dois mil e dezessete. Na ocasião foi uma sensação realmente indescritível
que senti e, acho, que foi o empurrão que faltava para eu tirar do papel o
desejo de escrever alguma coisa sobre a grande experiência de ser avô.
Entretanto, num
dos parágrafos da introdução fiz o seguinte comentário “... essa nova filha nos
presenteou com a sua gravidez de mais uma criança que seria incluída na nossa
galeria de netos e, dali a alguns meses, se tudo acontecesse do jeito que pensávamos,
estaria por aí correndo na frente e a gente correndo atrás, como faz com todos
eles que ‘poluem’ a nossa casa e nossa vida...”. Fiz uma ressalva importante
nesse trecho do livro, de que seria daquela forma se acontecesse do jeito que
pensamos.
Pois é. Não
saiu do jeito que pensávamos. Durante o período, entre começar a escrever e
terminar a missão, percebemos que a gravidez dessa menina, ao invés de nos
aproximar, nos distanciou mais. Não conseguimos detectar quem teve mais culpa
neste distanciamento, mas sem dúvidas temos nossa dívida por ter contribuído
para isso acontecer.
Na nossa
cabeça, ou pelo menos na minha, durante a gravidez a gente ia passar por um
processo de aproximação natural, quando pais e filhos começam a curtir juntos a
espera de um neto, filho. Isso implicaria que aquela menina e seu marido
começassem a frequentar mais amiúde nossa casa, se integrando mais com os
outros filhos e, assim, quando o novo neto nascesse, todos estivessem
convivendo como uma grande família.
Para isso, o
casal de novos filhos deveria frequentar os almoços semanais que aconteciam aos
sábados. Assim, seriam convidados para frequentar as casas dos outros filhos,
as fotografias seriam normalmente inseridas nos porta-retratos da família, até
que terminasse numa simbiose familiar como acontece com milhares de famílias
que povoam esse mundo.
Desafortunadamente
não foi assim que aconteceu. Esse querido casal de “filhos adotivos” preferiu
não seguir o roteiro que havíamos escrito e, por mais que tentássemos, decidiu
por não participar das celebrações familiares que propusemos a eles.
Foram, então,
várias oportunidades perdidas por nós e por eles durante esse período todo. Festividades
como dia dos pais, dia das mães, carnavais, natal, ano novo, aniversários
diversos, todas aconteceram sem a presença daquele casal e do neto que
esperávamos ver integrado ao nosso meio-ambiente familiar.
Hoje a gente
tem um relacionamento com este casal, da mesma forma que tínhamos antes da
gravidez. Com o filho deles, até arremedamos um tratamento de avós e neto, mas
aquele vínculo forte, que conseguimos criar com os outros seis netos, se perdeu
no meio de um caminho percorrido por adultos que, com certeza, poderiam
proceder de forma diferente e não procederam.
Por isso chego
a afirmar que não é possível determinar de quem é a culpa desta ruptura, embora
não seja impossível desenvolver inúmeras teorias sobre o fato.
A maior de
todas as teorias que desenvolvi e nem sei se a minha esposa, a avó, concorda, é
que houve um processo de introspecção, um voltar para dentro do casal para sorver
e absorver cada gota desse processo que estava acontecendo com eles. Esse filho
deles foi muito aguardado, desejado, esperado e sonhado pelo casal. Quando o
sonho estava prestes a ser realizado, eles decidiram que iriam se fechar em
copas e curtir esse momento exclusivo deles, como se fosse uma conquista única
deles, proporcionada por Deus e, como acontece com muitos casais nessas
condições, eles se acharam bastantes.
É uma teoria.
Mas pode explicar muito bem o fato de ter acontecido de perdermos um neto de
verdade que quase o conquistamos e, a partir de agora, temos que nos
contentarmos de sermos perifericamente lembrados de que podemos ser avós desse
menino.
Foi difícil
aceitar esta situação, mas tive que me acostumar com ela, pois essas coisas não
dependem muito, ou quase nada, da gente. Nós nos colocamos à disposição das
situações, esperando que elas aconteçam, mas são as forças do universo que
podem ser conjugadas para elas acontecerem. No nosso caso, as forças agiram de
forma a não entrelaçarem os elos corretos para a concretização de uma ideia
muito linda que tivemos.
Assim foi que,
ao longo do livro, deixei de mencionar o sétimo neto. Pensei em reescrever o
início, mas decidi por deixar daquela forma, pois naquele momento era
exatamente aquilo que estava sentindo. Até porque, se, de repente, as coisas
mudarem e esse menino decidir me adotar como avô materno dele, saberá que um
dia eu já desejei muito isso.
EPÍLOGO
Seria
necessária uma vida toda para narrar a grande experiência de ser avô, ou
melhor, narrar toda a experiência da caminhada no aprendizado de ser avô, pois
a caminhada é longa, maravilhosa e difícil. Mas cada centímetro do caminho é uma
descoberta de coisas que encantam a alma de qualquer pessoa normal, pois os
anormais não saberão o tamanho desta felicidade. Aqueles que acham a
experiência de ser avô um porre, com certeza irão prestar contas em algum lugar
no futuro, sentirá um vazio na alma que jamais será preenchido.
Cada gesto
nesta caminhada tem um significado diferente e mais, ou menos, importante,
dependendo do meio-ambiente em que o gesto acontece. Quantas vezes me vi diante
de situações em que era necessário que eu me fizesse forte, embora me borrando
todo de medo. Noutras era necessário que eu me fizesse fraco, embora com a
certeza concreta das pedras. Entretanto, em nenhuma das situações, sejam de
fraqueza ou de fortaleza, me deixei levar pelo cenário presente. Sempre tentava
enxergar aquilo em perspectiva, pois o que interessava era a obra completa.
Certa feita,
fiz alguma coisa para meu neto número cinco que o deixou muito chateado. Uma
daquelas atitudes que imediatamente depois que você faz, se arrepende, mas não
tem como voltar atrás. Mais um daqueles momentos em que seria muito útil um
buraco para você entrar e só sair quando a poeira abaixasse. Mas não tinha o
buraco e foi necessário enfrentar a situação. Pedir desculpa simplesmente, não
iria adiantar. Esses seres iluminados vivem pedindo desculpas por uma série de
coisas que eles fazem e o sentido que o pedido de desculpa tem para eles é um
sentido já gasto. Para eles é como pedir licença. Você a pede, a pessoa dá,
você passa, segue o caminho, quem deu licença fica lá e a vida segue. Naquele
momento era necessário inventar um pedido de desculpa para aquele neto que
realmente indicasse a ele que eu estava arrependido do que havia feito.
Chamei-o ao meu
colo, abracei-o com a maior ternura que eu poderia demonstrar, apertei-o no meu
peito e disse baixinho no seu ouvido: “perdoe o vovô que é um burro”. Naquele
momento estava me despindo de todas as possibilidades que me pudessem levar a
ser um herói de alguém, como os avôs sempre tentam fazer, para me fazer fraco
diante daquele neto magoado e desta fraqueza fazer brotar um sentimento da
parte dele de que estava verdadeiramente recebendo um pedido de desculpas
legítimo e sem subterfúgio. Aos poucos sua revolta foi passando e as coisas
entraram nos eixos.
Certa noite, prestes
a sair para um dos passeios que fazemos, eu e os seis netos, pelas
sextas-feiras da vida, percebi a roupa que estava vestido e decidi que iria “causar”
antes da saída e parti para a execução do plano.
Meu gosto por
roupa é bastante simples e sempre que posso, e na maioria das vezes posso,
coloco uma camiseta básica, branca ou preta, um calção de academia e assim
passo o dia. Quando os netos estão em casa uso esse traje também para dormir e,
no dia seguinte, já acordo pronto para sair para onde for necessário.
Acontece que as
camisetas vão se acabando e apresentando algumas deformações ou apresentam
algum rasgo ou buracos. Não sei por que cargas d’águas, essas camisetas
desgastadas com o tempo voltam para a gaveta de camisetas. Lógico que escolho a
cor, branca ou preta, e pego a primeira que aparece pela frente. Caso seja uma
daquelas que estão avariadas, coloco-a no corpo e não tiro, mesmo que perceba o
defeito.
Naquela
sexta-feira, vesti uma dessas camisetas e passei a tarde toda com ela,
inclusive atendi algumas pessoas no prédio onde moro, na função de síndico. De
repente olhei o buraco na camiseta, um pouco acima do umbigo e decidi aplicar o
golpe. Chamei minha neta mais nova, mostrei aquele buraco na camiseta e sugeri
que ela rasgasse a partir dali. Ela ficou um pouco apreensiva, mas cedeu.
Enfiou dois dedinhos lindos, um em cada lado do buraco e iniciou a destruição
da camiseta. Quando o buraco estava em mais ou menos uns dez centímetros, ela
decidiu que não iria participar daquela aventura sozinha e foi no meu
escritório, onde os meninos fazem seu QG e chamou os quatro meninos para
participar da destruição da camiseta.
Daquele momento
em diante o que se passou foi surpreendentemente impressionante. Os cinco netos,
a mais velha preferiu ficar em seu canto, se juntaram em torno de mim e
iniciaram a destruição total da camiseta e faziam aquilo com uma satisfação tão
grande que parecia que estavam fazendo a maior traquinagem que se tem notícia. De
repente estava eu de pé na frente deles imitando o Hulk, quando ele passava
pela transformação e suas roupas iam se rasgando.
Mas, nenhum dos
netos ficou tão satisfeito com aquilo, como o neto número três. A certa altura
ele pegou uma parte da camiseta com as duas mangas e um pedaço de tecido das
costas, vestiu aquele trapo e não teve quem conseguisse tirar dele aquele
pedaço de malha que vestia. Fomos para nosso passeio, o mesmo que fazemos todas
às sextas, uma sorveteria que tem um parquinho com muitos brinquedos. Na volta
para casa, acho que por ele ter cutucado muito o nariz, começou a sangrar pelas
narinas, ele usou o pedaço de camiseta para estancar o sangue. O sangramento
parou e chegamos em casa. A primeira coisa que o neto três fez, foi ir para o
tanque a fim de lavar aquele trapo que estava cheio de sangue. No dia seguinte,
dia das crianças, ele pegou no varal aquele pedaço de malha, botou no corpo,
por cima da camisa e ficou assim o dia todo.
Ou seja, se
minha intenção era “causar” pra cima de meus netos, acertei em cheio, sobretudo
para minha neta mais nova e para meu neto número três. Uma simples camiseta
rasgada causou essa ebulição toda.
São tantas as
situações onde somos jogados em sensações tão incríveis que sempre me pergunto
se por acaso quando alguém fala que é possível atingir o nirvana, não está
falando desta sensação que sentimos quando se está diante dessas situações.
De vez em
quando sou escalado para pegar os meus netos mais novos na escola, as
atividades da neta mais nova se encerram às 11:45 e as do neto mais novo se
encerram ao meio-dia. Quando eu chego para pegar a neta na sala dela, olho pela
janelinha da porta e, geralmente, ela está brincando com alguma coisa, naquele
momento em que as atividades já se encerraram e eles ficam ali apenas com um
entretenimento suficiente para esperar os pais buscarem. Quando a
professora/tia me vê na porta e avisa pra minha neta que eu estou ali, ela
solta um grito tão esfuziante de “vovô!?!” como se estivéssemos há anos sem nos
encontrar e sai correndo em direção à porta. Enquanto isso, eu me curvo o
suficiente para receber o abraço que mais parece um bálsamo para nossa alma.
Quando nossos corações se encontram, ela me dá um beijo apaixonado e ficamos
alguns segundos ali num abraço inebriante. Depois ela pega sua mochila e sai
pelo corredor do colégio, em direção à sala do seu irmão, correndo e brincando
como se não houvesse amanhã. Todo dia que tenho o privilégio de buscar meus netos
na escola, este ritual é sagrado. Tem coisa melhor que isso?
Se fosse
possível resumir essas loucuras que acontecem quando a gente é avô, talvez seria
necessário compilar um compêndio literário para expressar um pouquinho disso.
Fico imaginando o quanto sofre a pessoa que passa por esta vida sem sentir a grandiosidade
de ter esses pequenos como combustível para tocar a vida em frente.
Para encerrar
esse livro, vou reproduzir o primeiro post que fiz no meu blog, que está no ar
desde 2010, lembrando que nessa ocasião eu tinha apenas os dois primeiros netos
da série.
Abre aspas. Sempre achei que teria muito
prazer na experiência de ser avô. Mas, em hipótese alguma imaginei que seria do
jeito que está sendo. É indescritível a sensação quando estamos ao lado de um
neto ou neta.
Não consegui,
por vários motivos, ter uma vivência com meus avós. Aliás, só conheci um dos
quatro. Não sei também, se consegui propiciar uma vivência adequada de meus
filhos com seus avós. Acho que não. Apesar disso, sempre pensei em uma relação
diferente com os meus netos. Sempre pensei que iria ser para meus netos muito
mais que um retrato na gaveta ou uma lembrança de infância. Imaginei ter com eles
uma relação onde cada um de nós teria uma importância muito grande na vida do
outro. Mas sem dependência de qualquer tipo. Qualquer relação que cause
dependência, não faz bem para as pessoas.
Até o momento
parece que estou conseguindo levar as coisas da maneira que precisa. Parece que
estou conseguindo sair do lugar comum e ser um avô um pouco diferente para meus
netos. Isso tem me trazido grandes alegrias e uma felicidade enorme nos
momentos em que estou longe deles.
Pode ser
devaneio de avô, mas tenho a impressão que o meu relacionamento com os meus
netos têm me devolvido uma reciprocidade ímpar. Sinto que não sou só eu que me
alegro quando nos encontramos, eles também se apresentam nesses encontros com
um brilho diferente em seus olhinhos. Isso é o máximo que qualquer avô pode
esperar. É impagável, ver a festa que o Vitor faz, quando eu chego à sua casa
para minhas visitas, clandestinas ou não. Também, não menos impagável é, quando
decido pegar a Lara na escola, a reação dela de euforia demonstra que ela achou
muito bom a gente estar lá.
Alguém pode
perguntar como se consegue isso. Na minha opinião, duas maneiras para se chegar
ao mesmo resultado. Uma, a mais fácil, é fazer todas as concessões. Ser um avô
tradicional, daqueles que “os pais educam, os avós deseducam”. Esta
forma, com certeza, encanta qualquer ser humano, imagine uma criança. Quem não
gostaria de ter um avô permissivo, que não está preocupado com os limites? A tentação
para ser assim é grande. É muito mais fácil dizer “sim” que dizer“não”, para
uma criança.
A segunda
maneira de atingir este objetivo é manter com a criança uma relação do mesmo
nível que ela. Não existem previamente coisas proibidas de serem feitas. O que existem
são os limites. Os avôs, e os adultos de um modo geral, deveriam sempre se preocupar
com os limites existentes, já que isso as crianças não têm. Para elas tudo é
permitido. O papel dos adultos deveria ser apenas de orientar essa permissão
que, em última análise, é colocar os limites necessários.
Mas a coisa
pega, exatamente quando é necessário determinar um limite. Jamais alguém
poderia corrigir uma criança por seus medos e suas neuroses. Brigar com uma
criança porque ela está se aproximando da janela do apartamento, simplesmente porque
sou acrofóbico, é prestar um desserviço na formação da criança. Entretanto, é
muito comum pais, avós, tios e adultos de um modo geral, que tenham alguma
ascendência sobre a criança, achar que o limite da criança deve ser os seus
(dos adultos) medos. No caso da janela do apartamento, caso seja uma janela com
grade, que seja impossível da criança cair, por que brigar com a criança para
se afastar? Ao invés de brigar, bastaria conversar. Isso é necessário porque
dentro de sua ignorância, a criança não percebe se existe proteção ou não na
janela. O ideal é fazer a criança evitar os perigos sem adquirir fobias. Às vezes
nós adultos não conseguimos delimitar a fronteira entre impor limites e proibir
a criança de viver.
Na minha
relação com meus netos, procuro sempre buscar a tênue linha que separa os
limites da proibição. Procuro não ultrapassar essa linha. Para ilustrar vou
citar um exemplo.
Minha neta, já
tem cinco anos. Quando ela tinha, mais ou menos quatro anos e meio, numa das
noites que ela dormiu em casa, pediu para fazer algumas experiências no
banheiro. Pegava creme dental, shampoo, sabonete líquido e outras coisas que
deixo sobre a pia, colocava tudo isso dentro de um copo, misturava tudo, fazia
espuma e virava pra lá e pra cá. Via o efeito, deixava sua experiência lá
quietinha, assistia um pouco de TV, enquanto a mistura se assentava e assim passou
mais de duas horas brincando de alquimista. Depois desse dia sempre que vem
aqui, pede para fazer experiência no banheiro.
Na primeira vez
que minha neta me pediu para brincar do jeito que brincou nas experiências
dela, fiquei em dúvida sobre deixar ou não. Nessas horas vem um monte de coisas
na cabeça da gente. Muitas de ordem material. Algumas de ordem psicológicas. Vem
a imagem da bagunça que o banheiro vai ficar, o desperdiço de creme dental,
sabonete, shampoo etc. Mas, algumas coisas nobres também nos vêm ao pensamento,
como o perigo da criança engolir alguma coisa, por exemplo. A bagunça no
banheiro é uma questão de esforço físico. O desperdício tem duas questões envolvidas:
o gasto, que é desprezível, visto que qualquer outra atividade que uma criança
exerce também envolve gasto. Mas tem também a questão de ensinar a criança a
não desperdiçar qualquer coisa. Isso é fundamental para a formação de qualquer
pessoa. Mas, será que sob a ótica da criança aquela experiência será
considerada um desperdício de produtos, ou será considerada um caminhar para a
descoberta de uma série de coisa e os produtos utilizadas foi simplesmente um
meio para se atingir esse objetivo?
Pesa pra cá, pesa
pra lá, minha neta fez a experiência e a repete de vez em quando. Às vezes
quando ela dorme em minha casa se lembra da experiência e pede para repeti-la. Lógico
que deixo. Ela faz, depois de certo tempo, pede para tomar banho. Às vezes pede
para levar a experiência pra terminar durante o banho, o que permitimos também.
Ao final da noite dorme como um anjo feliz da vida, sem correr nenhum risco,
descobrindo coisas maravilhosas em suas experiências e, penso eu, ela vai
vivendo a vida. Sempre que vem à casa do avô, sabe que não existe nada proibido
e sim limites a serem respeitados.
Não sei se
conseguirei, mas tentarei ser um avô com essa visão, para ter com meus netos
uma relação que ficará longe de ser uma lembrança na gaveta ou uma foto impressa
na infância. Fecha aspas.
Com isso,
imagino que estou deixando uma pequena contribuição para as pessoas que estão
verdadeiramente decididos a ser um avô com todas as consequências que isso
implica.
Poderia dizer a
todos feliz reinado como avô, mas vou lançar um neologismo: feliz avônado.