sexta-feira, 18 de outubro de 2019

O LIVRO QUE ESTOU PUBLICANDO - "APRENDENDO A... ...SER AVÔ"









APRENDENDO A... ...SER AVÔ


Estou apresentando a vocês um livro que pretendo publicar em papel um dia, mas decidi primeiro ir lançando aqui no blog, assim que os capítulos fiquem revisados. Por isso será acrescentado um capítulo em cada publicação.

A ideia é, sempre que for lançar um capítulo novo, publicá-lo junto com os anteriores. Assim, ao final, teremos o livro completo na sequência que ele vai ser publicado. 

Convido todos a lerem e postarem suas críticas nos comentários, pois assim vocês irão corrigindo os erros que, com certeza, os cometi aos montes.

O nome do livro é "Aprendendo a...  ...ser avô" e esse aprendizado é um caminho que tem seus primeiros passos quando você é ainda criança. Por isso eu estou narrando todos os aprendizados pelos quais passei até chegar a ser avô.

Vocês terão contato com o "ser avô" mesmo, a partir do capítulo que receber esse título "... ser avô". Só a partir daí que conto as minhas experiências propriamente ditas, com esta função.

O chapéu escolhi como capa do livro porque meus netos tem um encanto muito grande com os chapéus, sobretudo esse da foto. Tenho foto com todos os meus netos, em momentos diferentes, com este chapéu na cabeça. Então, quando eles, os netos, virem a capa do livro, vão sentir que estou falado com eles mesmos.

Aos capítulos, então.


DEDICATÓRIA

Este livro eu dedico às pessoas que me acompanharam nesta caminhada de aprendizado. Especialmente à minha companheira de todas as horas, Cleide, que me proporcionou muitas alegrias e conquistas na vida, sobretudo esses netos lindos e maravilhosos com quem tenho o privilégio de conviver.


AGRADECIMENTO

São seis os personagens centrais deste livro que, ao final das contas, serão aquelas pessoas que levarei para além da vida. Lara, Vítor, Lucas, Davi, Caio e Laís, sem essa turma minha vida seria quase insípida. Teria apenas o sabor deixado pelas pessoas que passaram por ela, mas não teria a doçura que esses seres maravilhosos trouxeram.


SUMÁRIO

Apresentação

Introdução

... ser filho

... ser namorado

... ser noivo

... ser marido

... ser pai

... ser sogro

... ser avô

... ser médico-avô

... ser juiz-avô

... ser fonoaudiólogo-avô

... ser guia de turismo-avô

... ser advogado-avô

O sétimo elemento

Epílogo




APRESENTAÇÃO

Quando decidi que iria escrever um livro contando a experiência que venho tendo como avô, achei bom informar isso aos seres que me possibilitaram viver tudo isso e a receptividade foi das melhores. Um deles me sugeriu que escrevesse um livro para cada neto, pois ele queria um livro exclusivo. Lógico que declinei do convite, pois jamais seria capaz de tamanha tarefa. Cheguei até a considerar a proposta, pois somente assim poderia garantir ocupação para os próximos dez anos da minha vida. Seria uma maneira de viver agradáveis anos, rememorando as experiências que passei com esses seres iluminados que trouxeram mais luz e mais tempero para a minha vida.
Dez anos escrevendo parece muito, mas é um tempo razoável, já que teria de escrever seis ou sete livros simultaneamente. Estranho escrever seis ou sete livros simultâneos, mas não seria possível escolher um dos netos para começar a empreitada. Logo, teria que começar um livro para cada um dos seis ou sete netos e seria uma luta, até conclui-los ao mesmo tempo.
 Essa incapacidade “técnica” me levou a escrever apenas um livro que pudesse refletir toda a minha vivência como avô e tentar passar um pouco da minha experiência nesta área, de forma que todos possam perceber o quanto a gente é capaz de encontrar a felicidade em seres tão maravilhosos.
Decidido, então, como seria o livro, fui buscar um nome que pudesse retratar com fidelidade a experiência pela qual estou passando desde quando nasceu a minha primeira neta, até o nascimento da sexta, passando por quatro netos entre a mais velha e a mais nova, além da expectativa do sétimo neto, que, ao me lançar nesta tarefa de avô-escritor, ainda não sabíamos o sexo, mas já estávamos esperando esse bebê que deve completar uma família recém agregada à minha.
Pensei em alguns títulos para o livro e me prendi mais naqueles que davam a impressão de que eu estava sempre me preparando para alguma coisa. Pensei primeiro em algum título que envolvesse a palavra estagiário, pois, desde que vim para esse mundo eu me sinto um estagiário em alguma coisa, até desembocar no estágio de avô. Abandonei essa ideia porque estagiário dá a impressão que se está começando uma carreira e, se tem uma coisa que ser avô não é, é carreira. Não tem nada de carreira nisso.
Descartado estagiário, decidi, finalmente por aprender. Primeiro pensei em aprendiz, mas isso daria noção também de uma função, o que não é. Fixei então em alguma coisa que indica uma ação contínua, pois entrei nesta vida aprendendo e, com certeza, sairei aprendendo. Então o nome do livro ficou “Aprendendo a...”. Durante o livro vou desfilar todas as fases que passei na vida para conseguir o privilégio e o direito de aprender a ser avô.
Durante a vida temos que atuar em diversos palcos e em cada um deles a gente tem que viver personagens diferentes que, dependendo da pessoa, a essência do personagem não muda, mas o modo de atuar muda, e muito. Em cada um desses palcos o início é puro aprendizado e, quando a gente já está se sentindo confortável no figurino, vem outro palco e a gente tem que aprender tudo de novo. Alguns personagens novos aproveitam as características dos anteriores, outros são totalmente desgarrados do passado e, ao fim e ao cabo, no final da vida, você se torna uma colagem de todos os personagens que você viveu ao longo dos anos. Acredito piamente que o personagem que vivo hoje, de avô, seja o mais longo de todas as interpretações que a vida me exige, por isso talvez mereça um livro.
É sobre isso, então, que estou me propondo a escrever esses rabiscos. Talvez possa ajudar a alguém, que ainda tem dúvida se ser avô é bom, a vencer esta barreira. Mas já vou avisando de antemão que é necessário ter coragem para exercer este papel, pois requer um pouco mais que disponibilidade. Requer uma dose de renúncia bastante acentuada. Esse palco, às vezes, parece um campo minado, que todos irão perceber até o final desses alfarrábios.
Boa leitura a todos e, do fundo do meu coração, espero que todos gostem disso aqui.


INTRODUÇÃO

Numa noite qualquer, eu e minha esposa estávamos já deitados, curtindo coisa como: um ao outro, um programa de televisão ou atualizando as mensagens das redes sociais quando, de repente, surgiu no celular da minha esposa, uma mensagem de áudio que não era ninguém falando, mas sim o pulsar intenso de uma vida. Era a gravação da batida do coração de alguém que já existia, mas ainda não sabíamos. Mais um neto ou neta aparecendo no pedaço, pois naquele momento não sabíamos sequer o sexo da criança.
Das várias sensações que a vida nos permite sentir, aquela de ter a notícia de que teremos mais um membro na família, sempre é a que mais nos causa o sentimento de gratidão a Deus. Foi assim com meus filhos e é assim com cada um dos meus netos e netas. Não foi diferente, então, com a notícia de que o sétimo estava vindo e mais vivo do que nunca, como provavam as batidas fortes naquela mensagem de áudio, que minha esposa recebeu naquela noite de dezembro de dois mil e dezessete.
As pessoas que me conheciam há mais tempo, quando me ouviam falar que tenho seis netos, logo perguntavam se cada filho meu teve três filhos. Depois que começamos a falar que estávamos “grávidos” de outro neto, o espanto era maior ainda. Quem estava gravido? O filho mais velho ou o filho mais novo?
Entretanto, quem é mais chegado a mim e à minha família, sabe que temos mais filhos que aqueles que minha esposa deu à luz. São pessoas que vão sendo acrescentadas no meu coração de pai e que se alojam sem pedir licença e viram filhos      com a mesma intensidade daqueles que veio à luz pela minha esposa. Essa agregação vai acontecendo de forma tão natural e magistral que se torna impossível ficar alheio a ela. Veja essas histórias.
Na mesma época que eu e minha esposa tivemos que mudar de cidade, para uma que ficava a três mil quilômetros ao norte, nosso filho mais velho teve que mudar, por questão de estudos, para uma cidade situada a mil e cem quilômetros ao sul. Somando os dois deslocamentos, tem-se quatro mil e cem quilômetros como a distância que nos separava de nosso filho mais velho. Como o curso era de seis anos, nos conformamos de ficar durante todo esse tempo longe dele, vendo-o apenas em alguns dias do ano, numa visita dele ou numa visita nossa. Não precisa falar que coração de pai e mãe ficaram apertadinhos, sem saber o que o rebento estava passando por lá. Muita oração e fé foram necessárias para esperar que tudo iria dar certo.
De vez em quando íamos lá visitá-lo, minha esposa sozinha ou nós dois. Nessas ocasiões, pouco a gente tinha contato com as pessoas do relacionamento do nosso filho naquela cidade. Tudo o que sabíamos sobre as pessoas com as quais nosso filho se relacionava por lá, era das narrativas que ele fazia. Sempre nos reportando que era bem tratado, mas, sempre entendíamos isso como uma maneira de ele não nos preocupar.
Por ocasião da formatura do nosso filho, ficamos naquela cidade um tempo maior, propiciando a ele a oportunidade de nos apresentar às famílias com as quais ele convivia. Impressionante o que presenciamos nesses encontros. Declarações de profunda consideração pelo nosso filho me fez perceber que durante todos aqueles anos, ele foi acolhido por famílias naquela cidade que o fizeram se sentir em casa, que acabou por fazê-lo sentir pouca falta da casa dos pais. Famílias que adotaram pra valer meu filho, formaram uma rede de proteção tão fantástica, que não é nenhum exagero falar que era o manto de Nossa Senhora que o estava embrulhando naqueles seis longos anos. Junte-se a isso o apoio que um casal de cunhados dispensou durante esse período, e tem-se o ambiente perfeito para que o sofrimento de nosso filho fosse o mínimo possível. Aquele tempo que passamos lá, para comemorar a formatura, foi determinante para eu entender que devia tudo aquilo a alguém e precisaria fazer algo para retribuir tudo o que fizeram para o meu filho mais velho.
Durante as poucas visitas que nosso filho fazia em nossa cidade, foi construindo um rol de amizades que, naquela ocasião, foi de uma importância fundamental e aquela importância perdura até o momento atual, e frutificou. Eram tempos bicudos para mim e não tinha condições de oferecer àquele jovem filho, que passava férias em casa, nada além de atenção e carinho. Nesse contexto, faltava-lhe, por exemplo, meios suficientes para frequentar os ambientes que os jovens frequentavam por aquelas bandas. Os amigos conquistados naquela ocasião, até nesse quesito, decidiram por ajudá-lo. Especialmente um deles.
Um desses amigos, quando ninguém acreditava que ele se submeteria a isso, decidiu namorar e tinha duas garotas que estavam a fim dele. Por questões desconhecidas, uma das garotas conquistou o coração desse amigo do meu filho e eles começaram a namorar. Como esse rapaz frequentava a nossa casa, era natural que sua namorada também se aproximasse de nós. Essa garota vivia na nossa cidade, mas seus pais moravam, e moram até hoje, em um estado do centro-oeste e, com isso, sempre a notávamos triste, especialmente nas datas em que normalmente as famílias se encontravam para celebrar. Era assim no dia das mães, no dia dos pais, natal, ano novo etc. Em algum momento por essa época, atendendo a algum pedido, decidimos que teríamos que adotar aquela garota. Assim conseguiríamos aplacar um pouquinho da falta que ela sentia, de um pai e uma mãe, já que a distância não a permitia tê-los por perto e, de quebra, ganharíamos uma filha, realizando um sonho meu, já que, biologicamente, não havia conseguido isso.
Entendi a chegada dessa menina em nossa família como uma grande oportunidade de retribuir tudo aquilo que muitas famílias haviam feito por meu filho enquanto ele cursava sua graduação. Encarei desta forma e achei que tinha isso como uma missão e me preparei para dedicar a ela a mesma atenção que dedico aos outros filhos. Então, o filho que recebeu um tratamento todo especial por uma gama imensa de famílias em uma cidade distante, foi o mesmo que trouxe para o seio da nossa, uma pessoa que nos proporcionou retribuir aquele tratamento que ele recebeu por lá.
Essa menina que chegou, acabou por ser nossa filha e nossa relação foi cheia de altos e baixos naquele início de relacionamento, assim como é com todos os filhos, mas a gente se curtiu de uma maneira muito especial e fomos aprendendo a gostar um do outro. O nascimento da filha dessa moça foi o teste final desse relacionamento paternal que nasceu no namoro daquele amigo do meu filho. A dúvida que me batia era sobre a maneira como iria tratar a filha dessa moça, que viria a ser a minha primeira neta. Será que a consideraria neta pra valer? Essa dúvida evaporou por completo quando eu vi aquela menininha branquinha que acabara de nascer e, mesmo passando por algum perrengue, por ter atrasado um pouco para vir ao mundo, ainda assim aquele serzinho me conquistou de imediato. Ali completou a adoção daquela menina dengosa que escolhemos como filha e assim estava aumentada a nossa prole, com todas as consequências que isso pode acarretar. Uma experiência das mais agradáveis que senti.
Então ficou configurado assim, a filha teve um casal de filhos, o filho mais velho teve dois filhos e o filho mais novo, outro casal de filhos. Somam, então, seis netos. Mas eu disse anteriormente que ficamos “grávidos” de mais uma criança, que não sabíamos ainda seu sexo, mas ouvimos seu coração pulsar forte.
Minha esposa é Pedagoga, especializada em Orientação Educacional e, nessas condições, trabalhou em uma escola pública de certa tradição e por lá conseguiu construir um grupo de amigos bem interessante. Quando saiu daquela escola manteve os contatos e hoje se tornou um grupo de pessoas que, de vez em quando, se reúnem para se curtirem, jogar conversa fora e botar as fofocas em dia. Com isso, a amizade entre elas foi crescendo e é até gostoso de vê-las assim.
Uma das pessoas que trabalhava naquela escola e continua fazendo parte do grupo “dessas meninas”, se tornou ainda mais especial para minha esposa. Na verdade, essa menina lutou até que conquistou um lugar muito especial no coração da colega de trabalho de outrora que, ao final, tornou-se uma relação de mãe e filha. A necessidade dessa menina de ter uma mãe era premente.
Sua mãe faleceu em consequência de complicações havidas na gravidez e no parto, deixando-a órfã de mãe desde sempre e, com isso, não havia ainda experimentado a sensação que é ter uma pessoa para chamar de mãe. Com a aproximação da minha esposa, essa menina estava preenchendo uma lacuna muito significativa de sua vida. Depois de uma infância, adolescência e juventude bem atribulada e cheia de oportunidades que pudessem levá-la a caminhos não aconselháveis, essa menina, finalmente, se tornou uma mulher cheia de qualidades, virtudes e esperanças, mas sempre com aquele vazio de quem nunca teve o colo de uma mãe.
Nesse contexto, essa menina se aproximou de nós, considerando minha esposa a mãe “escolhida”, como ela mesma escreveu em seu trabalho de conclusão do mestrado. Seu pai, a única pilastra que lhe havia dado sustentação desde quando nascera, ficou por muitos anos sobre uma cama, requerendo cuidados especiais dela. Durante esse tempo todo, apesar de o pai dela não reagir e interagir na medida esperada, ela não descuidou um segundo sequer dele, mostrando sua índole de menina que se fez forte e superou muitos obstáculos que lhe foram impostos ao longo da jornada.
Quando o pai descansou, essa menina se agarrou mais ainda a nós e, depois de algum tempo, passei a ocupar aos poucos um pedacinho daquele lugar de pai que ela sempre trouxe em seu coração. Esse pedacinho, me faz muito orgulhoso e agradecido pela deferência. Vale dizer, ganhei mais uma filha e, nessas ocasiões, não há nada a fazer, senão agradecer a Deus por esse magnifico presente.
Então, essa nova filha nos presenteou com a gravidez de mais uma criança que seria incluída na nossa galeria de netos e, dali a alguns meses, se tudo acontecesse do jeito que pensamos, estaria por aí correndo na frente e a gente correndo atrás, como faz com todos eles que “poluem” a nossa casa e nossa vida, nos deixando cansados e exauridos, mas felizes e agradecidos por descobrir, a cada dia, novos motivos para nos sentirmos vivos. Assim é, que temos sete netos.
Cada um dos netos que vai aparecendo apresenta características diferentes, interagem com a gente de forma diferente, trata a gente de forma diferente e, com isso, força-nos a buscar a todo dia uma nova maneira de viver o momento, pois, jamais se aplica a um momento futuro a mesma coisa que se aplicou no momento passado.
Tenho a felicidade de ter os netos todos morando na mesma cidade. Mais ainda, no mínimo uma vez por semana eles estão todos juntos. Era de se supor que fossem todos mais ou menos parecidos. Entretanto, são tão diferentes um do outro que, às vezes, chego a pensar que eles são de galáxias diferentes.
Para se ter uma ideia de como cada serzinho desses é diferente um do outro, percebam esse detalhe: meus dois filhos casaram-se com duas irmãs. Cada um deles tiveram dois filhos. O mais velho, dois homens e o mais novo, um homem e uma mulher. Então, são quatro netos que são criados por pais que são dois irmãos e por mães que também são duas irmãs. Na teoria, isso faria com que os quatro netos tivessem comportamentos mais homogêneos, já que eles têm até o mesmo DNA. Mas não é assim. Esses quatro netos são muito diferentes entre si. Os outros dois, que completam os que já correm por aí, também tem suas características marcantes e formam uma trupe de crianças que exige uma atenção fora do normal.
Quando a gente é pai, a tendência é tentar pasteurizar a criação e, depois olhando para o resultado se pergunta: criei todos da mesma maneira, como pode ter saído pessoas tão diferentes? Essa pergunta não tem resposta, pois não é possível mudar o resultado. Entretanto, é possível fazer os pequenos sofrerem um pouco menos, entendendo que eles são diferentes e, portanto, precisam ser tratados diferentes, não podem ter um tratamento pasteurizado. Como a gente, quando percebe isso, já tem os filhos criados, só nos resta a oportunidade de usar essa abordagem com os netos. Então, é com os netos que nos desdobramos para tratar de forma individualizada e exclusiva. Por causa desse comportamento, as pessoas têm a impressão que os avós mimam demais os netos.
Uma das atividades que nos dá muito prazer é reunir, em um determinado dia da semana, todos em nossa casa para almoçar. O ambiente que, normalmente é ocupado por mim e minha esposa, fica “poluído” com quatorze pessoas. Quando se está preparando a refeição, a minha esposa já procura fazer tipos diferentes de comida, a fim de agradar a todos os netos. Na hora de preparar o prato para servir as crianças, essa diferença também salta aos olhos. Não bastassem a comida ser diferente, ainda é necessário colocá-las nos pratos de forma diferente. Por exemplo, sempre que se faz um tipo de carne, para agradar aos netos, faz-se também frango, pois alguns deles gostam mais de frango assado, normalmente coxinha da asa. Acontece que dos três que gostam mais de frango, cada um gosta de forma diferente. Um gosta de frango picado e os outros dois gosta da coxinha inteira. Os que gostam da coxinha inteira, um as come com arroz e feijão, o outro come apenas o frango. É claro que os avós procuram atender todos os gostos, pois a maior satisfação que um avô tem, é ver seu neto satisfeito.
Veja, então, como num simples almoço existem tantas variantes que nem sempre é possível para os pais atenderem. Entretanto, os avós atendem. Isso é mimar demais esses pequenos seres? Acho que não. Isso é somente dar o tratamento exigido por cada um desses serezinhos maravilhosos que nos dão razão para a vida. Mas, como já se disse por aí, isso cansa. Chega no fim do final da semana, os avós estão exaustos. Mais que isso, os avós estão exauridos. Mas, se fosse possível conseguir fotografar a alma dos avós nesse momento, seria a fotografia de um sorriso.


PERSONAGENS


Antes de começar, acho que é necessário descrever as pessoas que me levaram a considerar a hipótese de escrever este livro. Vou tentar contextualizar aqui cada uma dessas pessoas tão importantes na minha vida que, depois de suas existências não consegui mais deixar de ter motivos para estar vivo para sempre. Sei que a imortalidade é impossível, mas, escolhi viver de modo que possa estar para sempre na memória dessas pessoas. Um dia, quando não estiver mais por aqui, acho que eles terão muitas histórias para contar a seus filhos, netos e bisnetos sobre como seu avô era. Se eu conseguir isso já terá valido a pena viver.

A neta mais velha – a desbravadora

Essa menina nasceu numa fase da minha vida que estava passando por uma repaginação total. Em dois mil e dois fui acometido de um infarto no miocárdio que será narrado por aí ao longo deste livro, que me levou a repensar uma série de coisas da, e na, minha vida. Muitos valores foram reinventados e as pessoas passaram a ter mais importância na minha vida do que as coisas. Passado o perigo, algum tempo depois, nasceu a minha primeira neta. Aquela menina branquicela veio para, definitivamente, me mostrar o que realmente tinha importância na vida.
Foi questionado pela minha esposa na época sobre a confusão que ela poderia fazer em sua cabeça pelo fato de ter três avôs, ou três casais de avós. Eu dizia na época que, ao contrário, ela não iria questionar isso e, mais ainda, quando tomasse consciência da situação teria a sensação de ter sido muito mais amada do que as pessoas que têm apenas dois casais de avós.
Não deu outra. Certa feita, quando minha neta mais velha começava a ter noção de que tinha mais avós que as outras crianças, ela deu uma demonstração explícita do quanto eu era importante em sua vida. No meio de uma crise de ciúmes com relação a um outro neto, ela me tasca a seguinte frase: - “deixa, você não é mesmo meu avô”. O contexto em que esta frase foi dita, me mostrou aquela menina declarando amor eterno a mim que sou seu avô postiço. Foi a prova definitiva que eu fazia parte da sua vida. Hoje, não consigo imaginar minha vida sem ela e, pelo que percebo, também ela não consegue imaginar sua vida sem mim.

Segundo da fila, meu neto mais velho – o suíço

Depois que a minha neta mais velha reinou por quase cinco anos, sendo única em três famílias diferentes, na do seu pai, da sua mãe e minha, eis que nasceu o meu neto mais velho. Esse chegou e completou a bagunça que tinha no meu coração. Quando imaginei que já tinha esgotado toda a cota de felicidade que pudesse sentir na vida, eis que surge essa pessoinha que muda este conceito. Quando esse menino nasceu tive a sensação que o mundo se completava aí. Tinha tanta certeza disso que escrevi o poema mais lindo dentre todos os que fiz até hoje, com o título de “Ainda faltava ele”, cuja segunda estrofe era a seguinte:
Desde sempre sonhei muito com uma descendência feminina
O universo conjugando inexplicáveis loucuras a me deu
Numa explosão inenarrável onde a razão não predomina
Na repentina freada, encontro no meu íntimo que...
ainda faltava ele

Nesse trecho do poema exalto a felicidade de ter tido uma descendência feminina, através da minha neta, mas destaco que ainda faltava esse neto que acabara de nascer. Logo, quem lê este poema com atenção vai entender que para mim bastava. Meu mundo estava completo. Esse piá veio mansinho e de repente se alojou de tal maneira em meu coração que hoje, me questiono, como pude viver tanto tempo sem ele. É puro êxtase quando estou ao seu lado. Quando estou longe dele a saudade é imensa.

Terceiro da fila – o impetuoso

Claro que quebrei a cara quando ousei tentar pensar que meu mundo estava completo com o nascimento do segundo da fila. O terceiro da fila chegou para provar que estava retumbantemente enganado.
Uma das atividades minha e da minha esposa é apresentar palestras para pais nos cursos de preparação para o casamento ou em congressos em que é necessário falar sobre criação de filhos. Gosto de falar que às vezes os pais criam o primeiro filho e, a certa altura, batem no peito e dizem: “vejam como somos bons pais, observem o comportamento do meu filho”. Daí vem o segundo filho e aquela teoria de bons pais precisa ser revista, pois o comportamento do segundo filho é diametralmente oposto ao do primeiro filho. Agora já não dá mais para bater no peito e se gabar disso.
Com o nascimento desse rapazinho tive a comprovação cabal da teoria de que não é o pai que faz o filho e sim o filho que faz o pai ou, adaptando ao caso, não é o avô que faz o neto e sim o neto que faz o avô. Ele me provou que qualquer regra escrita em qualquer manual não é genérica. Você precisa fazer adaptações senão não consegue levar as coisas adiante. É a história de trocar o pneu com o carro andando, pois os netos anteriores tinham um comportamento tão dentro do esperado que tornava muito fácil a missão de ser avô. Mas com o terceiro da fila, foi preciso reinventar uma maneira de ser avô num nível mais hard.
Para se ter uma ideia, ganhar um “eu te amo” desse camaradinha é muito gratificante porque, ao contrário dos outros, ele não é dado a essas demonstrações.

O quarto da fila – o arguto

O ano de dois mil e doze foi profícuo em netos na minha vida. nasceram logo dois. Com a diferença de pouco menos de três meses os dois chegaram para melhorar ainda mais aquilo que já era o máximo.
Sua capacidade de perceber as coisas que o cercam é impressionante. Isso traz alguns inconvenientes. Como por exemplo, é o carinha que mais delata os primos. Eu e o pai dele o chamamos, de vez em quando, de “x-9”. Entretanto é uma criança meiga, doce e muito fácil de conviver. Gosta de cantar, de preferência letras em inglês, já que, como a neta mais velha, ele estuda em uma escola bilíngue e essa língua pra ele é moleza.
Apesar da sua doçura, é uma criança difícil de lidar, pois ele não aceita as coisas assim de qualquer jeito. Fica contrariado muito facilmente e, quando isso acontece, é difícil convencê-lo de ficar na casa do vô. Muitas vezes tivemos que persistir muito para não pedir a seus pais para virem buscá-lo no meio da noite.
Apesar da sua característica de “x-9”, é aquele que mais busca a harmonia entre todos. Sempre está colocando panos quentes em qualquer conflito que possa existir. Sempre tem uma solução para propor e busca isso de forma muito determinada. Quando percebe alguma encrenca entre os primos, enquanto não consegue ver todos bem, não sossega.

O quinto da fila – o ansioso

Quando setembro chegou nasceu esse neto que foi o primeiro do filho mais novo. A expectativa do seu nascimento para mim foi mais instigante do que qualquer um dos outros netos, pois tinha uma curiosidade bastante grande sobre como o meu filho mais novo iria encarar a paternidade e fiquei apreensivo com isso.
Quando ele nasceu esta preocupação foi esmaecida, tornando-se quase imperceptível. Aliás, ainda nos últimos meses de gravidez já havia dissipado boa parte da apreensão que tinha. Meu filho mais novo estava se mostrando uma surpresa interessante e isso gerava uma expectativa bastante positiva com relação ao futuro dos meus netos. Lógico que nisso tem uma mãozona da minha nora mais nova.
Mas esse neto cresce e se mostra uma criança muito interessada em esportes, sobretudo futebol. Alia a isso uma ânsia que só vi mesmo na infância de seu pai. É impressionante como esse meu neto processa as informações que lhe são passadas, o que o faz estar sempre matutando alguma coisa e ansioso para que as coisas que ele pensa possam acontecer. Isso faz suas unhas acabarem com muita facilidade. Não consegue processar muito bem a escuridão, pois é muito difícil vê-lo sair sozinho do quarto e ir até a cozinha, por exemplo. Sempre que aparece uma necessidade dessas ele chama algum primo para ir junto com ele, ou o avô. O interessante é que quando a gente fala que ele tem medo do escuro, ele retruca dizendo que não é verdade e argumenta que dorme no escuro, o que é verdade.

A sexta da fila – a intrépida

Essa nasceu para pôr abaixo qualquer teoria sobre educação de criança que possa ser possível contemplar como sendo razoavelmente lógica. Não existe um padrão que possa ser aplicado a ela. Junto com seus primos ela se torna um moleque com todas as conotações que esta palavra quer expressar.
Entretanto, não conheço nenhuma menina nesta idade capaz de expressar tão bem o instinto maternal igual a essa minha neta. É incrível como essa menina é dedicada ao cuidado de suas “filhas”. Ela é capaz de ir a um parque de diversões e levar uma boneca que a acompanha em todos os brinquedos, em todos os momentos, de todas as maneiras. Não abandona sua “filha” em hipótese nenhuma. Também é incapaz de sair de casa e deixar um primo ou irmão pra trás. Se na saída, algum dos meninos está descalço, ela é capaz de ajudá-lo a procurar o chinelo, ajudá-lo a colocar no pé, mas não sai enquanto todos não estiverem prontos. Às vezes, por brincadeira, eu saio, indo em direção ao elevador e digo, “quem me ama me segue”. Nessa hora, na maioria das vezes ela grita “meninos, vamos!”.

Observando o comportamento dessa menina é impossível não traçar um paralelo com uma tal teoria de que a criança nasce sem gênero e durante a sua formação ela adquire essa identidade. Minha neta desmonta essa teoria em meia hora. Não é possível ficar do lado dela por meia hora sem descobrir que a criança nasce com o gênero bem definido. É impossível observá-la e não perceber que ali está alguém do gênero feminino.



APRENDENDO A ...


... SER FILHO

Tai uma coisa que tem me desafiado a vida toda e, no fim, o palco onde foi montado o campo desta batalha já está para ser desmontado e não consegui sequer sair das primeiras páginas do livro indicado para se aprender a ser filho. Algumas vezes imaginei que estava bastante adiantado na matéria, como, quando nasceram meus filhos, mas logo o tempo me ajudou a entender que estava tateando ainda nesta empreitada.
Quando nasceu o meu primeiro filho supus que, finalmente, tinha entendido como deveria ser para me tornar um filho. Ledo engano. Na primeira oportunidade que tive de provar que havia aprendido a ser filho, os vícios anteriores prevaleceram e eu continuei a tratar meus pais com o mesmo desdém de sempre. É certo, contudo, que esse fracasso não pode ser creditado somente a mim. Outras pessoas e fatores contribuíram para que isso ocorresse.
Sou de uma família que o número de filhos nunca foi problema. Aliás, o número de filhos é a solução. Sou o segundo filho de uma série, quase infindável, de sete. Não tenho a menor ideia se meus pais imaginavam ter menos filhos do que tiveram, tampouco qual o motivo que os levaram a tê-los à profusão.  A única coisa que sei é que é impossível alguém dar atenção para tantos filhos assim. Resultado: os filhos, se, e quando, se criam, vão furando tetos até chegarem à idade adulta.
Meus pais, até nascer o quarto filho sempre trabalharam na roça, e minha mãe, até onde me lembro, era a que mais produzia nos afazeres nas lavouras. Lógico que ainda tinha sobre seus ombros todas as rotinas que diziam respeito à cuidar da família. Assim ela ia se equilibrando entre cuidar da casa, cuidar dos filhos e trabalhar nas lavouras que tinham que tocar. Essas funções, minha mãe sempre tinha que executá-las em dupla. Quando estava na roça, lá estávamos seus filhos para ela dar conta, quando estava nas tarefas domésticas lá estávamos nós, inclusive nosso pai, para ela dar assistência.
Ficou famoso um caso contado pela minha mãe que, quando eu era pequeno, nem andava ainda, e já tinha que ser levado pra lavoura e era colocado dentro de uma bacia de alumínio, enquanto eles faziam o que tinha que ser feito com as plantações. Num desses dias em que eu estava embaixo de um pé de café, ela viu uma cobra perto da bacia em que eu estava e bateu desespero nela. Claro que conseguiu me salvar da cobra e tudo se resolveu. Mas, por pouco que eu não teria sido picado por aquela cobra que, nem sei se era, ou não, venenosa. Acho que nem ela sabia, ou sabe, disso. Na narrativa não aparece a figura do meu pai e, na verdade, não tenho narrativa nenhuma em que eu possa identificar uma ação do meu pai em nossa direção. Ao mesmo tempo em que meu pai é famoso na nossa família por nunca ter nos encostado a mão, ou nos dado um castigo, também não consigo me lembrar dele fazendo alguma coisa por nós, que pudesse ser entendido como preocupação com a nossa formação.
Antes que alguém pense que tenho alguma mágoa pelo meu pai, quero esclarecer que até hoje o considero a pessoa que foi fundamental para a minha formação, o exemplo de vida que ele viveu, ainda hoje, é um referencial para várias atitudes minhas. Sempre que me encontro em alguma encruzilhada, tento imaginar como é que meu pai agiria naquela situação e, quase sempre consigo me desvencilhar bem dos enroscos. Ou seja, a formação que meu pai nos deu foi muito por ele “ser” e muito pouco por “fazer” e nada por “ter”. Enquanto minha mãe, além de ter sido fundamental o “ser”, assim como meu pai, uma porção mais acentuada do “fazer” integrou o ingrediente que ela nos deu e, também, o nada de “ter”.
Então, nesse cenário, é pouco provável que alguma mãe pudesse sair da superfície e mergulhar um pouco mais fundo na formação de seus filhos. Com isso o aprendizado para que a criança possa vir a ser um bom filho fica prejudicado. Logo, a culpa por eu não ter aprendido a ser um filho não pode recair totalmente sobre as minhas costas. Sei que tenho culpa sim, numa proporção até boa, mas não somente eu.
Quando tomei consciência disso poderia ter virado esse jogo, mas não virei e segui por esse mundo sem aprender a ser filho. Algumas atitudes minhas me envergonham ainda hoje, só de pensar. Coisas que, se pudesse voltar o tempo, com certeza corrigiria, mas não dá mais tempo.
Por volta dos meus onze, doze anos, trabalhava eu na primeira das muitas farmácias que trabalhei e ganhava lá um salário que nem me lembro quanto era, mas me lembro bem que não ficava com muito para mim, pois a maior parte do que ganhava, contribuía com a minha família. Isso era imperativo porque todos os membros da família que ganhassem alguma coisa deveriam contribuir para que pudéssemos ter o que comer e o que vestir. Para incrementar um pouco a renda, neste período aproveitava os finais de semana e exercia outras atividades. Era comum aproveitar os domingos à tarde para vender picolé na praça ou engraxar sapatos. Desta forma conseguia contribuir um pouco mais com minha família e até sobrava algum para comprar alguma coisa pra mim, como material escolar, por exemplo.
Nesta mesma época, fiz amizade com um menino, filho de uma família de origem alemã, que morava na cidade e que a minha mãe e a mãe dele ataram um relacionamento e nós dois ficamos amigos meio que por osmose. Eu e esse amigo tínhamos muita vontade de acompanhar tudo o que estava acontecendo pela cidade, mas não tínhamos dinheiro para isso. A minha família vivia economizando o almoço para comer a janta, a família dele, um pouco mais abastada que a minha, mas sua mãe, viúva de origem alemã, era bem controlada. Mas isso não nos impedia de acompanhar as coisas que queríamos. Desenvolvemos, eu e meu amigo, uma técnica de conseguir assistir a tudo que queríamos, sem precisar desembolsar nada, já que não tínhamos. Essa técnica consistia em “varar” tudo que fosse necessário para atingir o objetivo. “Varar”, no caso, significava arrumar uma maneira de entrar sem pagar nas atrações. O nosso desafio maior era “varar” o cinema para assistir aos filmes. Então, eu e meu amigo esperávamos começar a projeção, quando era projetado o Canal 100, os trailers dos próximos filmes, e neste momento, nós entrávamos por trás do cinema, através dos vitrôs do banheiro, que eram basculantes e sem vidros. Entrávamos, ficávamos por ali um pouco e depois saíamos como se tivéssemos ido ao banheiro.
Fazíamos isso sempre nos finais de semana, especialmente aos sábados, que podíamos chegar um pouco mais tarde em casa, porém fazíamos isso também durante a semana, sempre que uma atração nos interessava. Então, a gente “varava” o cinema sempre que decidíamos. Claro que o gerente do cinema sabia disso. Aliás, até as poltronas do cinema sabia que nós assistíamos aos filmes sem pagar um tostão. Entretanto, não tinha como eles nos pegarem, pois fazíamos a coisa direitinho e ludibriávamos a todos. Um belo dia, chegamos para “varar” da mesma forma que fazíamos sempre e encontramos vidros nos vitrôs do banheiro. Havia sido colocado naquele dia. Como o gesso, que segurava os vidros na estrutura de ferro, estava ainda mole, retiramos e com isso foi possível remover um dos vidros e conseguimos nosso intento.
No dia seguinte, parou um jipe da polícia em frente à farmácia, procurando por mim. Eu ali, com pouco mais que onze anos à frente de dois policiais, me informando que eu estava sendo levado para a delegacia e explicando o motivo, para surpresa do meu patrão, o dono da farmácia onde eu trabalhava, que me lançou um olhar tão penetrante que até hoje não consigo esquecer. Ou seja, fui preso, hoje se diz apreendido, com menos de doze anos. O fato de ser preso não me causava nenhum desconforto, mas, me causava um remorso muito grande, pensar na vergonha que meus pais, sobretudo o meu pai, iriam passar em saber que um filho seus estava preso. Quando meu pai teve que ir me buscar na delegacia, foi como se me tivessem lançando um punhal nas minhas costas. Naquela hora minha vontade era me enfiar num buraco. Acho que nunca dei um desgosto tão grande para meus pais como aquele. Mas, em especial para o meu pai, pois minha mãe me acompanhava no dia a dia e parece que ela sabia em seu íntimo que eu era capaz de proezas iguais ou piores que essa. Entretanto, meu pai era mais ingênuo que minha mãe e em seu coração, acho que não cabia o pensamento de que qualquer de seus filhos pudesse um dia necessitar ser resgatado de uma delegacia porque fizera alguma estripulia mais pesada.
Depois desse episódio dei uma maneirada nas coisas. Mas, continuava sendo um adolescente rebelde e, nessas condições, apesar de sempre contribuir financeiramente com minha família, nunca deixei de causar problemas sérios aos dois. Talvez me achasse no direito de ser um filho rebelde, pelo fato de sempre ajudá-los materialmente. Na vida adulta também não faltaram situações em que o filho aprontou muito.
Meu pai faleceu em mil novecentos e oitenta e sete, aos sessenta e dois anos. Um dos meus filhos estava com nove para dez anos e o outro estava perto de completar sete anos. Hoje sei o quanto meu pai sofreu durante o período transcorrido entre adoecer e falecer. Sua morte se deu em função de uma septicemia, provocada por um câncer na próstata. Na ocasião não tinha noção que era esse o quadro do meu pai. Da última vez que ele foi internado, de onde saiu só depois de falecer, fui informado que ele estava hospitalizado. Entretanto, por questão profissional, programei para encontrar com ele dali a, mais ou menos, dez dias, pois isso ia coincidir com outra viagem programada e aí racionalizaria meu tempo. Meu pai lá moribundo numa cama de hospital, quase morrendo, e eu tentando racionalizar meu tempo. Mas tomei essa decisão que, à época achei a mais certa. Quatro dias depois, já noite avançada recebo uma ligação da cidade onde meu pai morava, dando a notícia de que ele havia falecido. Ou seja, quando eu tive a grande chance de mostrar ao mundo que havia aprendido, preferi tomar atitudes que nem de longe parece caber a um filho. Meu pai faleceu sem que eu tivesse uma última conversa com ele, ou como me disse alguém um dia: estava escrevendo um rascunho da minha vida e não deu tempo de passar a limpo. Não tivemos aquela última conversa, quando às pessoas é oferecida a oportunidade de se entenderem, se perdoarem ou, simplesmente olhar um para o outro e expressar num gesto qualquer o quanto aquela convivência foi importante.
Esse acontecimento me consumiu por um grande período da minha vida. Não conseguia me perdoar por ter negligenciado num momento tão importante da vida do meu pai. Somente muito tempo depois dois fatores me fizeram entender que eu devia aceitar aquilo. O primeiro foi um pensamento que sempre me ocorre desde então: meu pai teria aceitado a minha decisão? O que ele teria feito no meu lugar? É provável que ele não teria agido da forma que agi, mas, com certeza, ele aceitaria a minha decisão. Entretanto, outro fator importante foi um evento ocorrido comigo.
Era o ano de dois mil e dois, noite da véspera do dia que faria quarenta e oito anos, meu filho mais velho ainda estudava fora e meu filho mais novo vivia conosco. Nesta noite fui acometido de um infarto e levado às pressas para o hospital. Enfrentei alguns dias de UTI e ao final desse processo resultou na instalação de três stents na artéria direita do meu coração que apresentava até noventa por cento de obstrução em determinado ponto. Enquanto estava internado na UTI, ficava imaginando a situação do meu filho mais velho. Se acontecesse alguma coisa pior comigo, como é que ele se sentiria, sendo que já fazia mais de quatro meses que a gente não se via? Isso me fez reviver um pouco aquela situação que vivi com o meu pai. Personagens diferentes, motivos diferentes, mas, no fundo, a mesma situação, poderia morrer sem que meu filho pudesse ter uma conversa final comigo. Assim consegui enterrar definitivamente aquela inquietação pela qual passava, já que todos estamos suscetíveis a esses tipos de acontecimentos. Foi só depois que enterrei definitivamente essa inquietude que parei de ter sonhos recorrentes com a presença viva do meu pai. Hoje, sempre que rezo, peço ao santo do meu pai para me proteger das agruras da vida.
Disse antes que o palco está quase sendo desmontado e o personagem de filho está por se encerrar sua participação na minha vida e ainda não aprendi a ser o filho que talvez todos os pais desejem. Meu pai faleceu, mas minha mãe continua viva e muitas vezes, quase sempre, me pego falhando nesse papel. Muitas coisas me fazem desviar a atenção que deveria ter com ela. Assim, afirmo de novo: acho que é um aprendizado que não evoluiu muito.




APRENDENDO A ...

... SER NAMORADO

Todo homem nasce, cresce, fica bobo e casa. Assim dizia uma brincadeira que fazíamos quando novos. Quem inventou isso se esqueceu de dizer que antes de casar o homem namora, ou talvez quisesse mesmo dizer que a fase de ficar bobo é o namoro. É isso mesmo, pois não tem período em que ficamos mais embobado do que aquele em que conhecemos alguém, nos enamoramos, vamos afinando nossa convivência, até sentir aquela vontade intensa de casar-se.
Tinha eu dezessete anos quando conheci minha única namorada. Até então, levava uma vida normal, não tinha nenhuma amarra, nenhuma coisa que me impedia de sair para onde quisesse, de pescar com os amigos, de jogar bola a qualquer tempo, bastando que estivesse de folga. Ao conhecer a minha namorada tudo isso mudou. Já era impossível marcar compromisso com os amigos, jogar futebol, sair por aí andando de bicicleta, ir roubar fruta em algum pomar desavisado. Tudo passou a ser “controlado” pela pessoa com quem namorava e, o mais estranho, é que a namorada jamais me proibiu de fazer qualquer coisa dessas. Mas o meu tempo passou a ser outro, a minha preocupação passou a ser outra. Agora eu tinha que aprender a ser namorado.
Hoje, até tem vários meios que, se o adolescente quiser, poderá lançar mão e aprender a ser namorado, mas, há cinquenta anos não existia isso e a gente tinha que aprender a ser namorado na prática, namorando. Tinha que construir o aprendizado tateando aqui e ali até chegar a algum lugar. Foi assim que tive que aprender a ser namorado.
Residíamos em uma cidadezinha do interior do Paraná, levando uma vidinha bem pacata. Olhando assim, ninguém sairia dali, já que tudo o que precisávamos para viver, ali era encontrado. Mas a mão invisível, de alguém, comanda as coisas de maneira que a gente ignora, e determina como as coisas irão acontecer.
A diversão principal do jovem casal de namorados que a esta altura tinham dezessete e quatorze anos, era ir ao cinema da cidade, lugar onde eles podiam namorar à vontade, sem se preocuparem com os olhares. Nesse período acho que assistimos a todos os filmes que passou por aquele local. Assistir é jeito de falar, pois não estávamos muito preocupados com o que acontecia na telona, nosso negócio ali era outro. Além do cinema, íamos também muito ao clube da cidade, onde aconteciam bailinhos, bailes e bailões. Nossos preferidos eram os bailinhos, pois, nesses não corríamos o risco de encontrar o pai da minha namorada, já que ele, de vez enquanto também frequentava os bailes e bailões, especialmente nos carnavais, pois, o meu sogro, normalmente, fazia parte da banda que animava as folias.
Na inocência possível de um casal de namorados, virgens e recatados, a gente seguia aquele ritual de ousadias supremas para a ocasião. O primeiro beijo de boca que dei em uma mulher aconteceu quatro meses e quinze dias depois que comecei aquele namoro. Até então, apesar de “tanto tempo” namorando, ainda era, como se diz hoje, “boca virgem”. Depois que perdemos a virgindade da boca, avançamos um pouco mais, mas, nossa índole, nossa intenção e a vigilância constante dos familiares, não nos deixaram ultrapassar alguns limites e conseguimos chegar até o casamento sem ter praticado uma relação sexual, seja de que modo fosse. Trocando em miúdos, casamos virgens, os dois.
Por questões profissionais, a família da minha namorada mudou-se para outra cidadezinha do mesmo estado e eu fiquei pra trás por algum tempo, até que decidi acompanhar a minha namorada, me mudando também para aquela outra cidade. Foi uma passagem efêmera por lá, que serviu apenas como ponto de partida para tomar uma decisão mais ousada na vida. Quando fui para essa nova cidadezinha, me empreguei numa farmácia, que era a profissão que exercia na ocasião. Até então, tinha exercido apenas três atividades: quando eu ainda era criança, aos oito anos de idade, trabalhei como pajem de outras duas crianças. Depois, aos onze anos, comecei a trabalhar em farmácia, como faxineiro e serviços gerais que, numa progressão normal, virei balconista, aplicador de injeção, fazedor de curativo e tudo o mais que um funcionário de uma farmácia fazia à época.
A certa altura da minha adolescência, aproveitando uma oportunidade, decidi por aprender uma profissão que pudesse me garantir um futuro melhor. Foi quando frequentei uma escola e aprendi a ser torneiro mecânico. A escola era um convênio entre o SENAI e uma usina de açúcar que existia na minha cidade, na qual meu pai trabalhava. Estava acertado que os três primeiros alunos da turma seriam contratados como ajudante de torneiro, na oficina da usina. Como fiquei entre os três primeiros, acabei ocupando uma das vagas oferecidas e consegui aprender a profissão de torneiro mecânico, com teoria e prática.
Mas, me desencantei com a nova função, abandonando-a e retornando às farmácias. Depois disso comecei a namorar e me mudei para a cidade para onde tinha ido minha namorada, trabalhando em farmácia. Ocorre que, quatro meses depois que estava naquela cidade, perdi aquele emprego e não consegui colocação em outra farmácia. Se eu quisesse continuar a morar perto da namorada teria que arrumar outro jeito. Foi aí que decidi retomar a minha carreira de torneiro mecânico, conseguindo me empregar numa oficina que havia na cidade. Ganhando menos, tendo que me sustentar, não houve jeito de continuar trabalhando naquela oficina. Decidi, então, por sair de lá e buscar outra solução. Depois de tentar algumas coisas, não sobrou alternativa, senão a de tentar a vida numa grande cidade do Brasil.
Na época, acho que até hoje, o grande fetiche de todo mundo era ir para São Paulo e fazer a vida nessa megalópole. Para mim não foi diferente. Como eu morava no Paraná, seria de se esperar que ao pensar em mudar para uma grande cidade, eu optasse por Curitiba. Mas o fetiche falou mais fundo e decidi por ir para São Paulo.
A questão do aprendizado para ser namorado acontecia desta forma. Tudo o que eu fiz até então, parecia que era porque eu estava sendo um bom namorado e queria estar sempre por perto da minha namorada e, agora que tinha que me distanciar dela, seria, pensava eu, para conseguir uma maneira de a gente continuar a namorar e, em última análise, conseguir meios para nos casarmos.
Na véspera do dia em que completaria dezenove anos, parti para São Paulo, ou seja, passei meu aniversário daquele ano em uma cidade que nunca havia pisado. A única referência que havia levado para tentar começar minha vida lá era o endereço de um amigo que, assim como eu, tinha se tornado torneiro mecânico depois daquele curso. Esse meu amigo trabalhava como torneiro em uma oficina mecânica de São Paulo que ficava na Rua Afonso Sardinha, na Lapa. O endereço, então, que havia levado era o desse amigo. Entretanto, o endereço que possuía, só descobri lá, era o da oficina.
Não me recordo bem o porquê, no dia que cheguei a São Paulo, não havia expediente, ou, pelo menos, a oficina, que o meu amigo trabalhava, estava fechada. Complicou tudo, pois o único endereço que eu tinha era aquele, que ninguém estava lá. Faltou o chão, pois não tinha condições de ir para um hotel, nem conhecia a opção de pensões. O dinheiro que possuía não chegava a cem cruzeiros, moeda da época. Sem saber o que fazer, entrei em um bar que havia na esquina e tentei alguma informação sobre a oficina. Alguém no bar me informou que havia uma chance, pois o pessoal da oficina, naquele dia, havia saído para uma “pelada” por perto e, normalmente, depois dos jogos eles apareciam no bar para comemorar alguma coisa, ou mesmo para simplesmente beber um pouco. Agarrei-me nesta chance e fiquei por ali até que alguém chegasse. Quando chegou uma turma que parecia ter chegado de um jogo, a pessoa do bar me avisou que essa turma era a que eu esperava. Fiquei feliz e decepcionado ao mesmo tempo, pois o meu amigo não estava no meio daquelas pessoas.
A minha esperança, lógico, era encontrar meu amigo e ter algum lugar para ficar até as coisas se ajeitarem. Mas, ao não o perceber no meio da turma, temi pelo que poderia me acontecer. Um fio de esperança se acendeu quando alguém daquela turma, entendendo meu drama, disse que iria entrar na oficina e mexer no armário do meu amigo e ver se encontrava alguma coisa que indicasse o endereço onde ele morava. Bingo! Ao revirar os pertences do meu amigo, o rapaz encontrou uma carta recebida da família, onde indicava o endereço que eu tanto ansiava naquele momento.
O endereço que, finalmente, apareceu na minha mão, era de uma rua chamada Horácio Romeu, mas não informava bairro, vila ou qualquer outra coisa. Na minha pouca experiência, imaginei que aquela rua fosse na Lapa mesmo, já que na minha cabeça interiorana, ninguém moraria longe do trabalho. Sai pela redondeza desesperado com aquele endereço na mão, perguntando a todos se sabiam onde ficava aquela rua. Que falta fazia o google maps! Em vão foi a minha busca. Ninguém fazia a mínima ideia onde ficava aquele endereço, até que alguém me sugeriu que eu voltasse à Estação Rodoviária, que na época São Paulo só possuía esta e oficialmente chamava-se Terminal Rodoviário da Luz, e lá tinha um posto policial que poderia me informar corretamente onde encontrar aquele endereço.
Peguei um ônibus de volta para a rodoviária, gastando um pouco mais do pouco dinheiro que me restava. Chegando lá, me dirigi a um posto policial, mostrei o nome da rua e o atendente não encontrou aquele logradouro em nenhum registro. Bateu o desespero. Aquela cidade me assustava muito. Talvez, percebendo o meu desespero, o policial que me atendeu, se dirigiu a outro posto que havia ao lado, para tentar descobrir algo sobre o nome da rua que possuía. A sorte bateu à minha porta. O policial do outro posto alcançou alguns papeis que, imagino, era algum comunicado da prefeitura e percebeu que ali indicava onde ficava aquela rua. Fez qualquer comentário sobre o fato de ser uma rua nova, e me passou as coordenadas de onde ela ficava. Pirituba, Jardim Mutinga. Como poderia chegar lá?
Quando o policial me informou que deveria pegar um trem para chegar àquele endereço, tremi na base. Na minha expertise interiorana, trem era transporte caro demais. Primeiro, só se pega trem para longos percursos, depois, viagem de trem, normalmente, custaria mais do que aquilo que poderia pagar. Todo caso, deveria ir até a Estação da Luz, pegar um trem que fosse até a estação Pirituba, descer do trem e pegar um ônibus que me levaria até o endereço onde pretendia chegar. Lá se iam mais alguns cruzeiros, eliminando qualquer possibilidade que não fosse a de encontrar o meu amigo. Por isso, fiz aquilo que o policial me indicou e, encurtando a história, cheguei à casa do meu amigo, encontrei-o lá e me sobravam apenas vinte cruzeiros no bolso.
Esse amigo foi um daqueles anjos que sempre tive a sorte de encontrar pela vida afora. Ele morava numa casa que era uma espécie de república, vivendo com mais três pessoas. Imediatamente ele conversou com dois dos outros três, que estavam presentes, e concordaram que eu iria ficar ali por algum tempo, até as coisas se ajeitarem. O quarto morador, por certo, pensei eu, não teria nada contra, como, realmente, não teve. Senti-me confortável, depois de passar um perrengue doido. Como era um final de semana, meu amigo, além de me acolher, me colocou cem cruzeiros nas mãos e disse que na segunda-feira iria procurar um emprego pra mim.
Na esquina das ruas Afonso Sardinha com Domingos Rodrigues, na Lapa, havia uma farmácia, que existe até hoje, embora com outro nome. A farmácia chamava-se Jaborandi e seu proprietário era o presidente do CRF-8. Como a oficina que o meu amigo trabalhava era nas imediações, ele conhecia o pessoal de lá. Meu colega conversou com o gerente desta farmácia e no dia seguinte eu estava empregado. Assim iniciava minha vida profissional em São Paulo. Depois do primeiro mês, aluguei uma vaga em uma pensão bem próxima, na própria Afonso Sardinha, e me mudei para lá. Dois meses depois de me instalar na pensão, o dono da farmácia compra outra pelos lados de Pirituba, nas imediações da Vila Barreto e me mandou pra lá, com a missão de gerenciar aquela nova aquisição. No primeiro mês, morava em Pirituba e trabalhava na Lapa, a partir do terceiro mês, morava na Lapa e trabalhava em Pirituba. A nova farmácia se mostrou inviável e o dono decidiu por fechá-la três meses depois. Nesse ínterim deixei aquela pensão da Afonso Sardinha e passei para uma na Nossa Senhora da Lapa.
Com a farmácia fechada, fiquei desempregado, já que o meu lugar na anterior havia sido ocupado por outra pessoa. Desempregado, decidi dar um tempo no Paraná, para namorar um pouco, já que não via minha namorada desde quando rumei para São Paulo. Fui de mala e cuia para o Estado onde estava minha namorada, sem dinheiro, pois o que ganhei naqueles seis meses, enviei um pouco para minha mãe e o resto usei para viver naquela cidade maluca.
Nessa época, minha mãe continuava a morar no município que eu começara a namorar e minha namorada morava na cidade para onde havia mudado, que eu fora atrás. Decidi, nesta minha volta temporária para o Paraná, estacionar na cidade de minha mãe e ir apenas nos finais de semana na cidade que minha namorada morava. Mas para isso era necessário de algum recurso para sobreviver esse período. Conversei com o dono de uma das farmácias que havia trabalhado e trabalhei ali durante esse tempo.
Quem me via naquele período imaginava que o sonho de “fazer” São Paulo havia sido desfeito. Entretanto, estava apenas tomando um fôlego para enfrentar o segundo round da luta. Passei o fim de ano com os familiares e vendo a namorada mais amiúde, e por volta da metade de janeiro decidi voltar ao ringue. Preparei minha mochila e, com dinheiro no bolso suficiente apenas para chegar a São Paulo, parti rumo àquela máquina de fazer louco.
Cheguei a São Paulo sem nenhum dinheiro. Aqui, não é sentido figurado. Cheguei sem nenhum tostão no bolso, suprema loucura, mas foi assim. Cheguei à cidade numa sexta-feira à tarde. Era mestre em chegar nas datas impróprias. Então, cheguei naquela selva numa sexta-feira, sem emprego, sem dinheiro, sem lugar para ficar ou, pelo menos, dormir. Não tinha como procurar emprego, por consequência, não tinha como procurar um lugar para dormir, tampouco conseguir um lugar para comer alguma coisa. Nessas condições me preparei para passar duas noites, pelo menos, dormindo na própria rodoviária.
Os bancos da rodoviária, embora desconfortáveis, eram disputados por muita gente que não tinha para onde ir. Entretanto, não era permitido dormir ali. A partir de uma certa hora da noite os vigias passavam pelos bancos acordando as pessoas e pedindo para elas saírem. Assim foi que passei as primeiras duas noites dessa minha segunda incursão pela cidade. Em todas as farmácias no entorno da rodoviária que estavam de plantão, me oferecia para trabalhar e ninguém me dava trabalho. A alimentação nesses três dias foi dramática. Não conseguia pedir. Hoje, pediria, mas à época até ensaiava pedir, mas me faltava coragem. Na segunda noite, de domingo para segunda-feira, me encostei em um balcão, num dos botecos existentes na rodoviária, pedi uma sopa, saboreei aquele manjar e, quando ninguém observava, saí sorrateiramente do boteco, sem pagar a conta. Ou seja, coragem para pedir, não tive, mas tive coragem de roubar um prato de comida, talvez nesta situação limite, conseguiria pedir aquele prato de comida. Mas, se eu pedisse e a pessoa não me desse, não restaria outra opção a não ser continuar com fome, que temia não aguentar. Já, se eu aplicasse aquele golpe, era garantia, mesmo cometendo um delito, de matar minha fome, que naquele momento, estava insuportável. Deplorável atitude, mas aquela sopa foi suficiente para me fazer vencer aquela noite.
Na manhã seguinte, segunda-feira, com todas as farmácias funcionando, expandi meu campo de pesquisa para conseguir um trabalho. Saí da rodoviária, desci a Duque de Caxias, em direção à São João, pesquisando em todas as farmácias existentes, se tinha a necessidade de algum balconista. Entrei na São João, em direção à Barra Funda. Ao chegar na Marechal Deodoro, a esperança voltou. Era uma praça que ficara muito feia depois que foi cortada pelo Elevado Costa e Silva, o Minhocão, que hoje, depois que assumiu a prefeitura pessoas que gostavam de revisar a história, trocaram o nome para Elevado João Goulart. Ali havia uma farmácia que parece não existir mais, que, para minha sorte, estava precisando de um balconista. Esta farmácia, chamava-se Morimed e era de propriedade do mesmo dono do laboratório que à época fabricava um multivitamínico chamado Vitasay.
As farmácias em São Paulo, não sei se ainda é assim, funcionavam em regime de plantão, sendo liberado à todas que não estavam de plantão, para abrirem no sábado até as treze horas e, no domingo depois das vinte e uma. Esta, onde estava precisando de um balconista, abria todos os dias as sete da manhã e fechava à uma da madrugada. Um grupo de balconistas trabalha das sete da manhã às sete da noite e outro grupo trabalhava da uma da tarde até a uma da madrugada. E foi nesse grupo, que varava tarde e noite, que havia a vaga onde eu seria encaixado. Quando estava de plantão, continuava no mesmo horário e quando não estava de plantão, funcionava das sete da manhã à uma da tarde no sábado, reabrindo no domingo às vinte e uma horas e fechando à uma da madrugada, já de segunda-feira.
Mas, felicidade suprema, a farmácia me deu o emprego que eu precisava para iniciar meu segundo round na megalópole. Emprego garantido, deveria iniciar meu turno às treze horas daquela segunda-feira. Era necessário, então, buscar alguma maneira de tomar um banho. Lembrando que estava sem nenhum dinheiro no bolso, literalmente. A única opção que possuía para tentar isso, seria tentar me instalar naquela última pensão que havia ficado no final do primeiro round. Entretanto, aquela pensão ficava na Avenida Nossa Senhora da Lapa, uma distância de aproximadamente dez quilômetros e eu tinha apenas algumas horas para tentar esta solução. Logo, precisaria sair da Praça Marechal Deodoro, na Santa Cecília, e ir até a Avenida Nossa Senhora da Lapa, na Lapa, a pé, e voltar. Decidi arriscar e parti em disparada até aquela pensão, conversei com a pessoa responsável que entendeu minha situação, arrumou uma vaga para mim, tomei um banho o mais rápido possível e me pus a andar de volta, lembrando que tudo isso, com uma fome que não aguentava mais, pois dinheiro não tinha e as pensões, via de regra, não forneciam refeições. Mas, o bom foi que consegui estar na hora marcada para iniciar o turno das treze horas.
A salvação da lavoura, foi que o ganho dos balconistas era composto de duas partes: uma fixa, que era o salário mínimo, que cada um recebia no final do mês e uma parte variável, representada pela comissão sobre os produtos que cada um vendia, sobretudo dos produtos considerados de empurroterapia. Essa parte variável era paga diariamente. Meia hora antes de encerrar o expediente, o gerente da farmácia recolhia todos os talões de nota e fazia o cálculo do quanto cada um teria direito de receber naquele dia. Quando recebi aquele valor, referente às comissões do dia, me senti aliviado. Foi o primeiro dinheiro que colocava a mão nos últimos quatro dias. Com esse dinheiro foi possível, então, primeiro comer alguma coisa, lembrando que nos últimos três dias, a única refeição que conheci foi aquela que roubei naquele boteco da rodoviária. Por fim, era possível pegar um ônibus para chegar até a pensão na Lapa. Lembro-me até hoje da refeição que tomei naquela noite/madrugada. O local onde tomei aquela refeição, que ficava próximo ao Theatro São Pedro, servia uma sopa bem suculenta, com macarrão padre nosso, contendo batata inglesa, carne moída e, o mais importante, acompanhada por uma porção generosa de pão. Matei, faustamente, minha fome e parti para a minha primeira noite de sono sobre uma cama, depois de uma eternidade tentando dormir em um banco de rodoviária.
Assim foi o início do segundo round naquela aventura que era conseguir meios suficientes para continuar namorando, noivar e conseguir casar-me com a minha namorada que havia ficado lá no Paraná me esperando.




APRENDENDO A ...


... SER NOIVO



Oficialmente fiquei noivo a apenas alguns meses antes do casamento. Entretanto, considero que a partir do momento que eu e minha namorada decidimos que queríamos casar um com o outro, estava ali selado o nosso noivado e isso aconteceu pelos idos de setenta e quatro do século passado, o mesmo ano que voltei para São Paulo a fim de enfrentar o segundo e definitivo round da minha luta para dominar aquela cidade.
Sempre achei que não conseguiria dar um suporte material adequado à minha esposa e filhos, caso continuasse a trabalhar como balconista de farmácia. Entretanto, era nisso que eu trabalhava e ao ir para São Paulo, tinha que começar com alguma coisa. Mas, desde sempre, estava decidido a mudar de profissão e, durante o período entre o primeiro e o segundo round, decidi que iria trabalhar com computador. Não fazia a menor ideia do que isso significava, mas decidi que era com isso que iria trabalhar. Dizia isso para minha namorada e ela aceitava, meio cética, pois, se eu não sabia do que se tratava, imagine ela.
Então, na segunda ida minha para enfrentar aquela máquina de fazer louco, firmei o propósito de, em qualquer circunstância, nunca mais retornar para o Paraná, a não ser para visitar os parentes, a namorada e os amigos. Com isso na cabeça, enquanto trabalhava naquela farmácia da Praça Marechal Deodoro, iniciei minha saga por encontrar uma maneira de realizar minha determinação de trabalhar com computador. Uma das providências, depois que me estabilizei um pouco, foi mudar para uma pensão que existia na Rua São Vicente de Paulo, a uns cento e cinquenta metros da farmácia. Desta pensão eu só saí quando me casei.
Minha meta, lembrem-se, era trabalhar com computador, por pior que isso pudesse significar. Com isso em mente, sempre estava atrás de qualquer coisa que pudesse me levar a esse mundo. Um belo dia descobri que uma empresa que existia na Alameda Barros, a uns trezentos e cinquenta metros da farmácia, estava oferecendo um curso de Cobol. A empresa atuava como um birô, como eram conhecidas as empresas que prestavam serviços no ramo de informática. Como o acesso a computadores era muito oneroso, um birô era contratado pelas empresas para processar contabilidade, folha de pagamento etc. Esse birô, que se chamava Schema, decidiu oferecer também cursos de informática e iniciou por oferecer um curso de linguagem de programação que à época era aquela mais usada nos computadores de grande porte, os chamados mainframes, já que nem se falava em computadores pessoais, que surgiram somente na década seguinte.
Decidi, então, me matricular nesse curso e, como o curso era ministrado à noite, solicitei na farmácia que trocassem meu turno e passei a trabalhar das sete da manhã até as sete da noite. Iniciei o curso de programação em Cobol, sem ter ideia do que iria encontrar. Imagine a dificuldade que enfrentei, pois, sequer sabia o que era um computador e já estava ali, querendo aprender como programar aquilo. Cobol é uma linguagem de alto nível, orientada ao comércio, considerada de terceira geração, ainda bastante utilizada atualmente, sobretudo nos computadores de grande porte. Depois de mais de trinta anos trabalhando com informática me fiz especialista nesta linguagem e transitava muito bem por ela. Mas, quando me matriculei naquele curso não tinha a mais tênue noção do que era aquilo e o que aquilo significava. Entretanto, enfrentei o desafio, pois minha meta era trabalhar com computador.
As aulas aconteciam às segundas, quartas e sextas-feiras, das oito as onze da noite. Nesses dias da semana eu começava a trabalhar na farmácia às sete da manhã, trabalhava até as sete da noite, saía, mastigava alguma coisa e as oito horas estava lá para enfrentar aquele curso sobre coisas muito estranhas pra mim. O curso completo era de quatro meses, mas eu não concluí, pois tive que abandoná-lo no meio.
Fazia um mês e meio que eu estava naquele curso, a empresa que o ministrava fez um processo seletivo para contratar dois estagiários em operação de computador. Quem passasse no processo seletivo seria admitido como estagiário, para trabalhar na operação da meia-noite às seis da manhã. Da seleção podiam participar tanto as pessoas que frequentavam o curso quando pessoas de fora. Cinco pessoas do curso e mais umas dez de fora participaram do processo. Acabei por ficar com uma das duas vagas. A contratação foi imediata. Quem não conhece os computadores de grande porte não consegue divisar as funções de operador, programador, analista de sistemas etc. Mas essas funções podem não ter nada a ver uma com as outras. Por isso, o operador não precisa saber programar, o programador não precisa saber operar ou analisar sistemas, o analista de sistema não precisa saber programar ou operar computador e assim por diante. Lógico que se um analista soubesse programar, era possível fazer o projeto de um sistema que atendesse não só o negócio da empresa, como também aproximá-lo das necessidades do pessoal da informática, mas isso, com certeza, não era imprescindível.
Na semana seguinte ao processo seletivo, tinha que iniciar meu estágio em operação, já na segunda-feira. Mas tinha um detalhe, como estagiário eu não iria ganhar o suficiente para me manter. Na farmácia, como disse, meus rendimentos eram um salário mínimo e mais uma parte variável, referente às comissões sobre as vendas realizadas por mim. O salário mínimo na época girava em torno de trezentos e oitenta cruzeiros e o grosso mesmo do rendimento estava fincado nas comissões. Como estagiário de operação de computador, receberia um valor próximo ao salário mínimo e, mesmo que me sujeitasse a fazer horas-extras, não receberia por elas. Era interessante fazê-las, pela questão da aprendizagem, mas não para incrementar os rendimentos. Se eu deixasse a farmácia seria impossível sobreviver, pois o salário mínimo era consumido apenas com o pagamento da vaga na pensão. Logo, foi necessário que eu enfrentasse, por um período, os dois empregos. Então, minha jornada de trabalho ficou assim configurada: de segunda a sexta eu entrava as sete da manhã na farmácia, saía às sete da noite. A meia-noite iniciava o estágio até as seis da manhã, com intervalo de apenas uma hora para começar de novo na farmácia. Resumo da ópera: me sobrava das sete da noite até a meia-noite para eu jantar, dormir, lavar roupa, tomar banho e me dirigir para a empresa onde estagiava, não obrigatoriamente nesta ordem, mas tinha que fazer tudo isso. Nos finais de semana, quando a farmácia estava de plantão, a rotina não mudava, quando não tinha plantão, sobrava um pouco mais de tempo, ocasiões em que aproveitava ou para fazer horas-extras, sem ganhar, ou colocar o sono em dia.
A primeira semana desse período me mostrou uma situação quase insuportável. Como a pessoa que conduziu o processo seletivo era a mesma que ministrava o curso de programação que eu fazia, fiquei receoso de abandonar o curso e não poder aproveitar aquela chance de começar a trabalhar com computador, conforme vinha perseguindo. Então decidi, naquela primeira semana encarar as três atividades: o trabalho na farmácia, o curso de programação e o estágio. O curso às segundas, quartas e sextas-feiras, a farmácia e o estágio todos os dias. Em três dias da semana, então, aquele intervalo entre sair da farmácia e entrar no estágio tinha que ser utilizado com o curso. Não sei como aguentei essa semana. Aliás, sei sim, não vou narrar aqui, mas sei. Apenas uma dica: trabalhava em farmácia. Na segunda-feira seguinte, conversei com o professor e expliquei a ele a situação e ele entendeu a minha desistência do curso e assim o fiz.
Nesse período desenvolvi algumas técnicas de sobrevivência que levo para o resto da vida. Roupas, quando tinha que comprar, apenas aquelas que não precisavam de passar, inclusive o jaleco usado na farmácia. Assim, não ficavam muito feias as roupas no corpo, já que passá-las não iria mesmo. Alimentação, desenvolvi um gosto de comer pão com banana. Desta forma tinha no meu armário na pensão a minha janta diária, que era pão de forma e banana. Bastava, então, passar de vez em quando numa quitanda e comprar banana, pois o pão durava mais.
Foram quatro meses que não desejo a ninguém, mas passou. Nesse período, parece que fui ver a namorada apenas uma vez. Tudo isso me rendeu um apelido que, segundo meus amigos, representava bem a minha vida naquele período. Eu era chamado de “hiena” que, segundo consta, e era nisso que meus amigos se baseavam, esse animal come cocô, transam uma vez por ano e vive rindo. Era assim que meus amigos me enxergavam: uma alimentação sofrível, encontrava a minha namorada muito esporadicamente e vivia de bom humor.
Terminado o estágio, em primeiro de agosto de setenta e quatro fui efetivado como operador de computador. Meu salário passou para oitocentos e doze cruzeiros e com a grande vantagem de, agora ser remunerado pelas horas extras que fizesse. Como o turno era de seis horas, caso eu ficasse apenas com a operação e abandonasse a farmácia, teria mais dezoito horas por dia para me dedicar aos serviços extraordinários. Optei por sair da farmácia e ficar somente trabalhando com computadores. Com dezoito horas por dia disponíveis, sem ter a namorada por perto, sem ter amigos e familiares para conviver, me sobrou tempo para ganhar um pouco de dinheiro fazendo aquilo que tinha como meta: trabalhar com computador. Como o birô funcionava as vinte e quatro horas do dia, todos os dias da semana, era normal que nos finais de semana e nos feriados, a empresa escalasse todos os operadores do time, já que o turno era de seis horas. Como eu era o único que não tinha compromisso algum, nessas ocasiões eu era um dos que mais trabalhava. Lembro-me de passar algumas datas importantes, como carnaval, natal e ano novo “rodando” direto, pois os outros preferiam aproveitar essas datas para descansar ou conviver com suas famílias.
A certa altura desse período a empresa que eu trabalhava fez uma negociação com um birô que a Honeywell Bull tinha na Rua General Jardim, Vila Buarque e acabamos mudando pra lá, onde a Schema passou a funcionar com toda sua infraestrutura. Como todos foram para o novo endereço, também eu estava agora trabalhando mais no centro da cidade. Na época que mudamos para lá, a região ainda era considerada a boca do luxo, em contraponto à boca do lixo, já que por ali concentrava os melhores inferninhos de São Paulo. As ruas daquela região eram referencias para os notívagos, Major Sertório, Bento Freitas, Rego Freitas, Araújo, General Jardim e Marquês de Itu até hoje deve trazer saudades para as pessoas que aproveitavam a noite de São Paulo. Mas a Vila Buarque era uma região com certa influência cultural. Lembro-me que ao lado da empresa que trabalhava, funcionava o teatro da Aliança Francesa, além de outros locais onde a cultura se expressava aqui e ali. Eu, por compromisso profissional, tinha que viver naquela região. Aliás, a única coisa que fazia por ali era trabalhar mesmo. Só andei frequentando aquela região com objetivo de diversão depois de casado, que mais à frente relatarei as circunstâncias. Lembro-me que num dia trinta e um de dezembro, a corrida de São Silvestre, ainda acontecia na virada do ano, eu estava trabalhando, fechei a empresa, deixei os computadores funcionando e fui ver a passagem dos corredores que subiam a Consolação, de volta à Paulista.
Mas, o pano de fundo de tudo isso era construir as condições para, enfim, me casar com a minha namorada que havia ficado no Paraná. Com esse objetivo em mente, em agosto de setenta e cinco troquei de empresa e passei a trabalhar numa multinacional cuja sede ficava no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. Essa troca de empresa me propulsou a propor para minha namorada que deveríamos nos casar em janeiro de setenta e seis e não em dezembro de setenta e cinco como estávamos prevendo no início do ano. Mas, por outro lado, me proporcionou uma tranquilidade financeira maior, já que o salário que recebia nesta nova empresa, a Union Carbide, era um pouco mais que o dobro do que recebia na empresa anterior, ainda com a possibilidade de incrementar com as horas extras. Assim, foi que, nesse clima de definição da data do casamento para o dia dez de janeiro de setenta e seis, é que ficamos oficialmente noivos. Aliás, foi neste clima que colocamos as alianças no dedo. Lembro que a cerimônia de noivado nossa foi presenciada por uma pessoa que bateu uma fotografia minha e da namorada colocando as alianças um no outro, mas não teve nada mais além disso. Por isso, falo que não houve nada formal que pudesse indicar às pessoas que iríamos ficar noivos. De repente aparecemos com as alianças nos dedos.
Então, só para não nos perdermos, era o ano de mil novecentos e setenta e cinco, depois do mês de agosto, quando decidimos que iríamos nos casar em dez de janeiro de mil novecentos e setenta e seis. Ou seja, faltavam entre quatro e cinco meses para, finalmente, concretizar aquilo que, afinal, foi o motivo que me levou a São Paulo: me casar com minha namorada que havia ficado no Paraná.
Quem casa quer casa, sempre é dito quando alguém está prestes a se casar. Mas decidimos nos casar sem nem ao menos imaginar onde iríamos morar. Quem mora em uma cidade grande como São Paulo sabe o quanto é difícil alugar uma casa, que era a única opção. Alguns locadores de imóveis aceitavam que se fizesse uma caução de pelo menos três meses, mas, a maioria deles só alugavam seus imóveis para quem tivesse um fiador que possuísse alguma propriedade.
Nesta época eu reencontrei um padre que fomos muito amigos no Paraná e que tinha chegado a São Paulo depois de passar um tempo em Brasília. Esse padre, saudoso Maurílio Maritano, era o pároco da Paróquia Santa Rita de Cássia, na Vila Joaniza, região de Interlagos, perto da Estrada dos Zavuvus, que se tornou depois Avenida Yervant Kissajikian. Depois de algum tempo afastado da Igreja, esse encontro me fez voltar a participar das atividades paroquiais e, neste mesmo período, travei contato com um casal de italianos que tinham vindos para o Brasil que, depois de ficar um tempo trabalhando em Fortaleza, se estabeleceu em São Paulo. Como esse casal era de Igreja e a mulher do casal era prima do Padre Maurílio, eles decidiram por participar também na paróquia da Vila Joaniza. No primeiro contato que tive com eles, descobri que morávamos perto. Eu morava numa pensão na Rua São Vicente de Paulo e eles moravam num apartamento na Albuquerque Lins, que era a primeira rua depois da que eu morava, em direção ao Pacaembu. Esse casal era formado por Vivetta e Edoardo e tinham dois filhos: Elena e Riccardo. Claro que ficamos amigos e foi um curso de noivo intensivo durante o tempo que convivi com esse casal. Agradeço a Deus ter encontrado esse casal antes de me casar, pois pude perceber que tipo de marido que eu queria ser.
Participava naquela paróquia com todo o tempo que havia disponível, que era muito, já que não tinha nenhum familiar em São Paulo. Com isso conheci todas as comunidades que faziam parte daquela paróquia. Acompanhava aquele casal e o Padre em vários locais do território paroquial e fiz amizades com vários moradores de várias comunidades.
Quando decidimos nos casar, um morador de uma dessas comunidades me ofereceu, para me alugar, uma casa de três cômodos que ele havia construído nos fundos. Aceitei a proposta, pois o aluguel era muito acessível e, o mais importante, não era necessário depósito ou fiador. Não me lembro bem da localização, mas acredito que seja no Jardim Domitila. Quando mudei de emprego e percebi que meus rendimentos iriam melhorar comecei a pensar seriamente em alugar alguma coisa mais no centro da cidade, já que a minha noiva não conhecia São Paulo e seria temeroso leva-la para morar tão distante de onde eu iria trabalhar e, por isso, deixa-la tanto tempo sozinha. Mas, o que fazer, se não tinha dinheiro para fazer o depósito-caução e não conhecia ninguém que pudesse ser fiador?
Como a probabilidade de conseguir dinheiro para a caução era ínfima, decidi tentar descobrir alguém que pudesse ser meu fiador. Contei essa situação ao meu chefe e ele me garantiu que resolveria meu problema, já que sua esposa era proprietária de um imóvel na Vila Galvão, em Guarulhos e com isso ela teria condições de fiar aquele contrato de aluguel. Fiquei todo esperançoso, mas meu chefe conversou com sua mulher e ela se recusou a ser fiadora de uma pessoa que nunca tinha visto mais gorda. Esse cara ficou tão chateado que decidiu me ajudar na busca de um fiador. Agora eram duas pessoas que buscavam alguém que pudesse fiar meu contrato de aluguel. Meu chefe acabou conseguindo que um colega nosso, analista de sistema, que também tinha uma esposa com propriedade, convencesse-a de ser fiadora minha. O imóvel objeto desse contrato era uma quitinete localizada na Alameda Barros, Santa Cecília.
Meu casamento, já disse, estava marcado para o dia dez de janeiro. Consegui resolver o problema do aluguel já passava de quinze de dezembro, faltando menos de um mês para o casório. Se não tinha a casa, lógico que também não tinha os móveis. Ou seja, ia me casar no dia dez de janeiro e por volta do dia quinze de dezembro ainda não tinha móveis para colocar na quitinete que acabara de alugar.
Em São Paulo tinha uma grande loja chamada Ducal que vendia de tudo, inclusive móveis e eletrodomésticos, aliás, era uma rede de lojas. Não sei qual o critério que usei, mas foi nesta rede que decidi comprar os móveis que iria mobiliar nossa quitinete. Encostei o umbigo no balcão da loja e comprei todos os móveis de uma vez, que não era muito, visto que deveria mobiliar uma quitinete que era uma sala em “L”, um banheiro, uma cozinha e uma área de serviço que mal cabia um tanque de lavar roupas. Comprei na ocasião uma geladeira, um fogão, um armário de aço para a cozinha, um jogo composto por uma mesa dobrável e quatro banquetas, que usávamos para as refeições, um jogo de sofá com duas peças, sendo que a principal formava uma cama de solteiro, quando os braços laterais eram puxados para fora e os encostos eram colocados nas laterais, uma televisão, que só transmitia em preto e branco, de quatorze polegadas, um colchão e um jogo de quarto composto de uma cama, um armário e uma cômoda. A estante para colocar a televisão eu não comprei porque uma das madrinhas do meu casamento prometeu que iria dar. A compra de todos esses móveis e eletrodomésticos aconteceu por volta do dia vinte de dezembro, e tinha que considerar os atrasos normais de entrega nessa época do ano. A loja me prometeu entregar tudo nos primeiros dias de janeiro, quando já estaria viajando para me casar.

Foi uma satisfação muito grande ter resolvido o problema de ter onde morar e os móveis da casa, mesmo que ainda por entregar. Pois, assim, eu poderia viajar para o meu casamento. A minha viagem já estava marcada para o dia trinta e um de dezembro, já que iria passar o ano novo lá e esperar para o casamento. Comprado os móveis, então, viajei sossegado, sabendo que tinha uma grande chance de, quando voltar casado, os móveis já terem sido entregues.


APRENDENDO A ...

... SER MARIDO


Perceberam que minha noiva não participou, em nenhum momento, da definição de onde iríamos morar e quais os móveis iríamos comprar, tudo eu tive que decidir sozinho. Isso, na verdade, não foi por escolha minha. Gostaria que ela tivesse acompanhado toda essa etapa, mas para isso ela precisaria viajar para São Paulo, o que seu pai não admitia. Jamais seu pai admitiu que ela fosse me visitar em São Paulo. Morei lá, enquanto namorava, por dois anos e meio, e nunca recebi a visita da minha namorada ou noiva. Quando conheci aquele casal de italianos, tive uma esperança de que ela fosse me visitar, até para que o casal a conhecesse, mas minha esperança se esvaiu pela negativa do meu sogro.
Mas o casamento aconteceu do jeito que havíamos preparado. Eu me casei sem terno, apenas com uma calça comprada para a ocasião e uma camisa, nova também, mas nada especial, inclusive com a manga arregaçada. Minha noiva, para surpresa minha e de todos, apareceu para casar-se trajando uma calça comprida e uma blusa branca e, ao invés de véu, trazia ornamentando sua cabeça, um lindo turbante branco com um adereço do mesmo tecido que descia de sua cabeça até o meio do abdômen.
Duas crianças, diziam todos, se casavam naquela cerimônia, realizada às onze horas da manhã de um dia chuvoso de janeiro. Eu, vinte e um e ela dezoito anos. Olhando a idade que as pessoas se casam hoje, realmente éramos duas crianças. Mas era tudo o que queríamos naquele momento. Não víamos a hora de isso acontecer. Era para nós como se fosse uma carta de permissão para fazermos tudo o que tínhamos vontade de fazer, inclusive nos relacionarmos sexualmente. O casamento no civil havia acontecido às nove da manhã e por volta da uma da tarde estávamos dentro de um táxi, rumo à lua-de-mel.
Lua-de-mel é maneira de falar. Quem disse que tínhamos condições de sair para viajar. Mas, da maneira como tudo aconteceu, estávamos, realmente, partindo para uma lua-de-mel. Minha, agora, esposa, não conhecia a cidade onde ela iria morar, eu não conhecia direito a casa onde iria residir. Depois de quase três anos longe um do outro, finalmente, agora tínhamos todo o tempo do mundo somente para nós. Então, independente do lugar para onde íamos, poderia ser considerado que estávamos em lua-de-mel. Mas, apesar disso, tínhamos combinado que entre a cidade que nos casamos, Colorado, Paraná e a cidade onde iríamos morar, São Paulo, passaríamos duas noites em Presidente Prudente, interior de São Paulo.
Chegamos na cidade da nossa lua-de-mel por volta das cinco da tarde e escolhemos para ficar num dos melhores hotéis existente à época, Hotel Peretti, com o propósito de ficarmos por lá duas noites e seguir para São Paulo, na segunda-feira, dia doze. O hotel, para nosso padrão da época era um luxo só. Tudo do bom e do melhor, cama boa, roupa de cama boa, travesseiros bons, nada a reclamar. Reparamos tudo isso quando saímos, pois quando entramos no hotel não estávamos interessados em perceber sua qualidade. Queríamos, na verdade, era outra coisa. Estávamos ansiosos para consumar o casamento e, finalmente, perdermos a virgindade.
Fui tomar banho primeiro, depois foi minha esposa e, enquanto isso, sorvia aquele momento com a maior ansiedade. Tentava imaginar o que sairia daquele banheiro. Sairia dali uma mulher nua, uma mulher enrolada numa toalha ou o quê? Para meu desespero saiu daquele banheiro uma mulher linda, tipo mignon, mas coberta por uma camisola, ou um peignoir, como me corrigiu recentemente minha esposa, que tinha mais botão que a batina do Santo Papa. Mas, não foi problema, quando foi necessário, aqueles botões se abriram com muita facilidade. Finalmente iniciamos uma tentativa de ter uma relação sexual do jeito que sempre imaginávamos. Tadinhos de nós! Eu sem saber o que fazer, ela, menos ainda. Ficamos naquela tentativa louca de penetração, sem conseguir e sem saber como. A certa altura, estávamos, eu e minha noiva/esposa, ali, sem conseguir completar o ato, e diante do impasse um olhou para o outro demos uma risada e decidimos que não daria para continuar. Estávamos os dois machucados e não teríamos condições de continuar, ou tentar mais nada até na quinta-feira, lembrando que estávamos no sábado. Resumo da ópera: na nossa primeira noite de núpcias, estávamos, as onze da noite, procurando uma farmácia a fim de comprar remédio para passar em nossos órgãos genitais. Compramos os remédios, jantamos e voltamos para o hotel. Só aí percebemos que no quarto que estávamos tinha apenas duas camas de solteiro. Juntando-as formava uma cama de casal, mas preferimos dormir os dois juntinhos numa das camas de solteiro e assim terminamos nossa primeira noite de casados.
Nosso plano de ficar duas noites naquela cidade meio que ruiu, pois, não tínhamos planejado nada além de ficar no hotel, curtindo um ao outro e isso, estava mais ou menos subentendido, significava fazer muito sexo, para matar nossa sede dele. Como o sexo deixou de ser uma possibilidade, a cidade perdeu o encanto. Por outro lado, algumas pessoas que foram ao nosso casamento, que moravam em São Paulo, estariam voltando no dia seguinte e nós queríamos evitar de viajar junto com eles. Assim, decidimos por antecipar um dia nossa ida para São Paulo e, na hora que venceu a diária no hotel, fomos para a rodoviária a fim de pegar o próximo ônibus. Por volta das duas da tarde já estávamos embarcados rumo à cidade que iríamos viver durante quatorze anos.
Chegamos por volta das vinte horas em nossa quitinete, sem saber o que íamos encontrar. Pois, quando fui viajar, deixei a chave na portaria e pedi que quando os móveis chegassem, o porteiro abrisse a porta e deixasse os entregadores colocar os móveis dentro de casa. Tinha quase certeza que não teria sido entregue nada. Quando subimos, observamos que havia sido entregue pouca coisa, dentre elas o jogo de quarto, desmontado, o colchão, o fogão e a geladeira. A estante de televisão, presente da madrinha, também havia sido entregue.
A única felicidade era que estávamos na “nossa” casa, onde fomos o primeiro morador, pois se tratava de um prédio recém-construído, tudo cheirando a novo, inclusive a gente. Fora isso, não tínhamos uma cama, apenas o colchão. Não tínhamos panela, prato, talheres, mantimentos etc. sequer tínhamos uma cortina na quitinete, para nos proteger dos curiosos. Tivemos que improvisar um lençol que fazia parte da bagagem da minha esposa, em seu enxoval. Naquela noite saímos para comer alguma coisa e fomos dormir como dois irmãos, já que estávamos os dois machucados nas nossas partes baixas.
Com o passar dos dias o restante dos móveis foi sendo entregue, mas o montador do quarto não aparecia. Decidi, então, montar o quarto e todos os móveis que dependiam de montagem. Aos poucos as coisas foram entrando nos eixos, os presentes que ganhamos no casamento foram enviados pelo meu sogro, através de uma empresa que transportava passageiro e atuava no ramo de transportes de cargas. Três dias depois que chegamos, os presentes também chegaram. Lembro-me que ganhamos três panelas de pressão e uma delas foi entregue amassada. Também, dentre os presentes havia quatro faqueiros completos, mas nenhum prato. Tivemos que comprar pratos para a primeira refeição em casa e ficamos muito tempo dando faqueiro de presente para as festas de casamento que éramos convidados. Depois que terminei de montar o quarto, finalmente fomos dormir na cama, na primeira noite de núpcias de verdade. Era quinta-feira e, de tanta atividade, a cama terminou por quebrar uma das travessas do estrado. Para resolver isso, pegamos a panela de pressão que chegou amassada e colocamos de calço sob a cama e dormimos assim, por vários meses.
Com as coisas entrando nos eixos era hora de voltar a trabalhar. Na virada de ano a empresa em que trabalhava mudou a área de processamento de dados para outra unidade e, a minha volta ao trabalho seria já nesta nova instalação. A quitinete que aluguei ficava em Santa Cecília e eu trabalhava na Paulista. A partir de agora, meu local de trabalho seria na Vila Arapuá, divisa com São Caetano do Sul.
A empresa que eu trabalhava, Union Carbide, à época era dona da marca Eveready, cuja fábrica de pilhas e lanternas estava instalada numa unidade que ficava na Rua Epiacaba, Vila Arapuá. Além dessa linha de pilhas e lanternas, a empresa contava com algumas fábricas de produtos químicos pelo Brasil e uma fábrica de polietileno, em Cubatão, que era, pelo menos aqui, seu carro chefe em termos de faturamento. Tudo isso era administrado através de um escritório montado no Conjunto Nacional, na Paulista, onde funcionava também o Centro de Processamento de Dados, no vigésimo terceiro andar daquele prédio. O CPD funcionava ali com toda sua estrutura e todos os seus departamentos. Todos os departamentos poderiam funcionar apenas durante o horário comercial. Entretanto, o setor de produção, que envolvia perfuração/digitação de documentos e operação, tinha dificuldades para funcionar naquele edifício, nos horários que deveriam favorecer a segurança. Isso causava transtornos e a empresa decidiu por mudar o setor de produção do CPD para a unidade da Vila Arapuá, que, por ser localizada às margens da Via Anchieta era chamada internamente de Unidade Via Anchieta.
Como eu era operador de computador, portanto da produção, passei a trabalhar naquela unidade. O turno que passei a fazer era das dezesseis as vinte e quatro horas. Isso trazia alguns transtornos. Primeiro, para chegar naquele endereço era necessário pegar um ônibus na Alameda Barros, onde morava, descer na Praça do Correio, pegar outro ônibus no ponto inicial e descer no ponto final, bem em frente à fábrica da Eveready. Mas o problema principal era a volta. Não sei se é assim ainda, mas naquela época, os ônibus rodavam com certa periodicidade durante o dia e à noite, funcionava o “negreiro”, como era chamado o ônibus que transitava durante a madrugada em intervalos até três vezes maiores do que aqueles praticados durante o dia. Como o último ônibus normal saía à meia-noite e vinte, era um sufoco muito grande encerrar todo o trabalho a tempo de pegar o último horário. Trabalhávamos eu e outra pessoa, encarregada de conferir os documentos que seriam processados, que dávamos o nome de “bater lote”. Quando dava algum problema, tínhamos que nos submeter a esperar o negreiro ou pedir carona na Via Anchieta, para chegar no Ipiranga, pois ali as opções eram maiores. Lembro-me que certa noite pedimos carona para um taxista, que só percebemos isso quando ele parou. Como sempre, não tínhamos dinheiro, o taxista entendeu nosso problema e nos levou até o museu do Ipiranga e de lá seguimos para nossas casas.
Com essa rotina de trabalho, apesar de fazer muitas horas-extras, tinha a manhã toda disponível para ficar com a minha esposa e acompanhá-la no início de sua vida como “dona-de-casa”. No primeiro dia que tive que trabalhar, minha esposa foi preparar nossa refeição. Colocou o feijão no fogo e, já era quase uma da tarde e o almoço não ficava pronto. Quis saber o que estava acontecendo e ela me mostrou o feijão que estava branco ainda e, estava esperando que escurecesse. Pedi para ela me mostrar o pacote de feijão e vi que se tratava de feijão jalo branco. Dei uma trolada básica nela, dizendo que se ela quisesse que aquele feijão ficasse escuro teria que descer no mercado e comprar um vidrinho de corante, pois aquele feijão jamais iria ficar escuro apenas por cozinhar. Acho que ela sempre viu sua mãe cozinhar feijão carioquinha ou outro mais escuro e imaginou que aquele que ela havia comprado também ficaria da mesma cor.
Mas fomos tocando a vida. Financeiramente tínhamos tudo sob controle. As finanças funcionavam assim em casa: ganhava um salário base de Cr$ 3.120,00, que acrescentando as horas-extras e sofrendo os descontos de praxe, dava um líquido mensal em torno de Cr$ 3.300,00. O aluguel que pagava era de Cr$ 800,00 e, como era um prédio de apartamentos, tinha também o condomínio que era pago trimestralmente Cr$ 1.200,00, ou seja, Cr$ 400,00 por mês. A prestação dos móveis, lembro-me como se fosse hoje, era de Cr$ 1.171,00. Então, somando os valores fixos das despesas dava Cr$ 2.371,00, que subtraídos dos rendimentos sobrava algo em torno de Cr$ 930,00. Essa era a disponibilidade de grana que tínhamos para todas as outras coisas, tirávamos daí os gastos com mercado, feira, remédios, manutenção da casa etc. Logo, era necessário controlar tudo o que iria gastar para não passarmos apuros.
Foi nessa ocasião que minha esposa sugeriu uma maneira de utilizar nossos recursos de forma bem racional. Graças a Deus aplicamos a ideia dela. A tecnologia desenvolvida era de simples entendimento e de fácil aplicação, consistia em prever absolutamente tudo o que seria gasto. Começamos por elaborar um cardápio de tudo que iríamos consumir durante a semana seguinte e, com base neste cardápio, fazíamos o mercado para comprar apenas o necessário e tudo o que era possível comprar em feira-livre, também era comprado lá em porções suficientes para não faltar e não sobrar nada. Assim, se, por exemplo, numa determinada semana fôssemos comer frango em três dias, carne bovina em três dias, comprávamos um frango, e um quilo e meio de bife. O frango era picado em três e a carne dividida em três. Assim comíamos proteína todos os dias e chegava no final de semana não tinha sobrado nada, nem faltado. A mesma coisa com as verduras, definíamos que tipo de salada queríamos durante a semana seguinte e comprávamos apenas o necessário. Assim, era comum a gente ir à feira e comprar uma cenoura, uma beterraba, um pé de alface, um maço de almeirão, dois tomates e dessa forma fazíamos salada durante a semana inteira e não desperdiçávamos nada. Com essa “super” tecnologia, conseguimos varar aqueles anos iniciais, vivendo com pouco dinheiro, mas, em momento algum deixamos de ter o necessário para fazer tudo o que era preciso fazer.
Outros aspectos da nossa vida estavam também correndo muito bem. Tomei a decisão, desde cedo de procurar ser um marido o mais perfeito possível e, para isso, era necessária muita vigilância. Na questão sexual, fomos tateando, aprendendo um com o outro e, quem disser que o primeiro ano de casado é a melhor fase em termos sexuais, vai receber uma reprimenda minha. Nos primeiros anos de casamento, especialmente se você se casar virgem, o relacionamento sexual não tem nada de super, como as pessoas dizem. O sexo funciona nesse período, como uma maneira de o casal se tornar mais íntimo, pois, se o casal está mesmo a fim de ser uma unidade, o ato sexual será o ápice de todo o entendimento. Mas, a relação sexual como um ato físico que leva a pessoa ao êxtase, está muito distante durante esses anos iniciais. Entretanto, a relação sexual nesse período funciona como um meio do casal falar a linguagem mais perfeita que existe, pois, somente quando se está perfeitamente integrado, corpo, coração, alma e sentimento é que o casal consegue praticar um ato sexual sem culpa ou sem qualquer outro sentimento que não o de completar um ao outro. Assim, então, o sexo durante esse período é muito, mas muito importante mesmo, para a consolidação do casamento, mesmo que o sexo seja, nesta época, muito abaixo do que aquilo que a maioria das pessoas proclamam. Essa importância se dá porque é nesse momento que o casal se entrega de fato, deixando-se penetrar um no outro, seja física ou metaforicamente, mas o fato é que uma relação sexual assim, funciona como uma maneira de os dois viverem a experiência palpável de se tornar uma só carne.
Ainda em setenta e seis, no segundo semestre, minha esposa começou a trabalhar. Cadastrou-se em uma agência de serviços temporários e, nestas condições, prestou serviços em várias empresas, em vários locais diferentes de São Paulo. Lembro-me que um desses locais que ela trabalhou foi em uma loja de departamentos que estava instalando sua primeira unidade no Brasil, no shopping que era inaugurado naquele ano. O Shopping Ibirapuera seria inaugurado em agosto de setenta e seis, juntamente com a primeira loja brasileira da C&A, que a minha esposa trabalhou desde antes da abertura até algum tempo depois.
Tínhamos consciência de que o trabalho da minha esposa era temporário. Nessas condições não deveríamos e não poderíamos incluir os rendimentos dela no orçamento da família, assim como não contávamos com os meus rendimentos de horas-extras, quando esses fugissem da média mensal. Esses rendimentos extras, seja com excesso de horas-extras, seja com aquilo que minha esposa ganhava, aplicávamos em itens extras também, que, se, de repente, esses extras não mais existissem, não iríamos sofrer. Com esse critério, chegamos a comprar um carro, usado, um Volkswagen ano sessenta e nove, branco. Um carro bem velho que tinha seu preço bem mais baixo que o normal, tanto que conseguimos comprá-lo à vista. Entramos o ano de setenta e sete motorizados.
Motorizados, decidimos partir para aventuras bem interessantes. Durante todo o tempo que vivi sozinho em São Paulo, praticamente não conheci a cidade. Um pouco porque não tinha companhia e muito por não ter dinheiro. Agora, com a situação um pouco mais confortável, e com um fusca na mão, era possível sair pela city e explorá-la. As primeiras incursões eram de exploração mesmo. Pegávamos o carro no sábado à tarde e saíamos pela cidade com o objetivo de nos perdermos por aqueles rincões daquela selva de pedra. Embrenhávamos por bairros, vilas, becos e lugares que jamais havíamos passado e, quando encontrávamos uma rua, avenida ou lugar que tivesse passado de ônibus, ou que fosse conhecida de alguma forma, se ainda fosse cedo, tentávamos nos perder de novo, se já fosse tarde, voltávamos para casa. Tudo isso sem GPS, Google Maps etc.
Nesta época aproveitamos também para conhecer lugares famosos que sempre tivemos vontade de conhecer, mas era de difícil acesso. Também conhecemos lugares inusitados. Me lembro que existia uma avenida na zona leste famosa por ser um ponto onde os travestis se expunham quando os carros passavam. Falei para minha esposa que tinha curiosidade para conhecer esse point e ela também se interessou, ou fez que se interessou, para me agradar. Nos rumamos para lá e realmente pudemos confirmar que era verídica a informação, pois, bastava um veículo se aproximar que os travestis abriam as roupas que cobriam seus corpos para se mostrarem somente em trajes íntimos. Quando o carro parava, eles vinham correndo em direção ao veículo e, no nosso caso, eles ficavam sempre decepcionados por perceber que tinha uma mulher no carro, com isso desistiam da abordagem e nós não deixaríamos mesmo existir a aproximação.
Noutra ocasião, fomos “descobrir” outra curtição que acontecia em outro point bastante estranho da cidade. O Detran, que à época funcionava perto do parque do Ibirapuera, utilizava um espaço existente do outro lado da Avenida Vinte e Três de Maio como pista de prova de direção e estacionamento. À noite, ouvimos falar, então, que esse estacionamento era cheio de carros, mas em cada carro existia um casal dentro fazendo sexo. Segundo as informações, os carros chegavam a balançar pelas atividades dentro deles. Isso nos chamou a atenção e fomos lá conferir. Vimos que tudo que nos informaram era verdade e até namoramos um pouco dentro do carro, mas não passamos disso.
Foi por essa época também que minha esposa, ainda como temporária, começou a trabalhar em uma empresa chamada Home & Family, que vendia produtos de limpeza e utilizava a técnica de marketing de rede, que consiste em conquistar pessoas que vendam seus produtos ou consigam mais vendedores para vender os produtos da empresa. Desta forma, a pessoa que vende os produtos ganha sobre suas vendas e, se conseguir novos vendedores, ganha também sobre as vendas desses vendedores conquistados. Fez muito sucesso no Brasil e, em certa ocasião virou febre. Mas minha esposa foi trabalhar temporariamente nesta empresa, que ficava na Rua Jorge Chammas, Vila Mariana, no setor administrativo. Depois, acabou por ser efetivada na função.
Durante o período em que minha esposa trabalhou nesta empresa, atamos um relacionamento bastante profícuo com um casal de argentinos que se tornaram nossos amigos de fé e para sempre. Hoje eles moram na Espanha, na cidade de Málaga, mas moravam, até há alguns anos na Itália, onde fomos visitá-los em dois mil e onze. Mas naquela fase da nossa vida, foi a amizade mais importante que construímos, e deixou marcas profundas em nós. Formamos um quarteto bem interessante e tocamos o terror naquela cidade maluca.
Carlos e Anamaria, esse era o casal de argentinos que se fizeram nossos irmãos. Ele vivia de fazer frete daqui pra lá e de lá pra cá, cada dia com um veículo diferente. Ela trabalhava na mesma empresa que a minha esposa, ocupando a função de chefe do setor. Eram biologicamente alguns anos mais velhos que nós, mas psicologicamente, até hoje acho que eles tinham a metade da nossa idade, sobretudo o Carlos. Falo isso, porque esse nosso amigo estava sempre propondo e fazendo coisas que uma pessoa da idade dele jamais proporia, ou faria. E a gente, nós três, eu, minha esposa e a esposa dele, embarcávamos nas maluquices desse nosso amigo.
Tenho bem claro em minha memória a seguinte cena: nós, dentro de uma Kombi velha amarela, de propriedade do Carlos e da Ana, percorrendo a Avenida Paulista, por volta das oito horas da noite de uma sexta-feira, um trânsito ainda carregado para o momento. De repente, na espera de um semáforo, o cara desce da Kombi, vai lá atrás, abre a tampa do motor e começa a mexer em alguma coisa. Atrapalha pra valer o trânsito, faz todos os carros desviarem daquela estrovenga parada numa das avenidas mais importantes do país. Lá pela terceira ou quarta vez que o semáforo abriu, nosso amigo, simplesmente, fechou a tampa do motor da Kombi, entrou, deu partida e saiu. Perguntei a ele o que tinha acontecido e ele me respondeu que, não era nada. Apenas queria atrapalhar o trânsito. Veja se a idade psicológica desse grande amigo, não era menor que a nossa.
Mas, foi com esse casal que criamos um laço bem concreto de amizade. Estávamos em situação bastante parecida. Ambos os casais sozinhos naquela cidade, nós com os familiares a, pelo menos, oitocentos quilômetros. Eles com os familiares mais perto, em Buenos Aires. Assim, a química foi perfeita. Foram meses intensos de convivência. Aproveitamos ainda mais essa amizade para conhecer melhor aquela cidade. Foi, com esse casal que eu e minha esposa fomos a primeira vez em um daqueles inferninhos existentes na região onde eu trabalhei quando solteiro. Veja essas histórias.
Certa noite, nós quatro decidimos que queríamos ir assistir a um show adulto. Como eu sabia onde ficava uma boate que tinha esse tipo de show, pois havia trabalhado perto dela, fui o encarregado a indicar aonde iríamos. Primeiro problema: minha esposa foi barrada na porta da boate. Motivo: pouca idade. Aquela criança não podia ter dezoito anos, pensou o leão de chácara dali. Depois que minha esposa mostrou os documentos, conseguimos entrar os quatro e nos sentamos numa mesa, bem em frente ao palco onde iria acontecer a atração principal do show. Ocorre que a atração principal do show, lógico, só acontece no final do espetáculo. Minha esposa, a certa altura, chamou um rapaz que estava servindo as mesas e perguntou: que horas as mulheres iriam entrar para apresentar o quadro principal? Ninguém entendeu nada, nem o garçom, nem nós que estávamos ali naquela mesa. Pelo jeito o rapaz ficou mais perplexo ainda ao ver uma menina novinha, bonitinha, acompanhada de alguém que, no mínimo seria seu namorado, junto com um casal, dando toda a pinta de ser também um casal hétero, desesperada para assistir a um show feminino naquele inferninho. Só ficamos sossegados quando minha esposa nos disse que estava com muita vontade de ir ao banheiro para fazer xixi, mas que não iria, de jeito nenhum, na toalete daquele inferninho. Como ela sabia que os dois homens daquela mesa não iriam embora antes de assistir à atração principal, estava ansiosa para que começasse logo. Uns vinte minutos depois da pergunta a mulher veio fez a parte dela num show grotesco como era de se esperar. Vimos aquilo e fomos embora, nossa casa não era muito longe dali. Minha esposa, então, fez o xixi dela e encerramos a noite em nossa quitinete.
No final do ano de setenta e sete, o Corinthians estava sem ganhar um título paulista desde cinquenta e quatro, ou seja, já há quase vinte e três anos sem título. Finalmente o timão iria disputar uma final de campeonato, contra a Ponte Petra. Os jogos seriam realizados nos dias cinco, nove e treze de outubro daquele ano. No jogo do dia cinco o Corinthians ganhou de um a zero e se ganhasse no domingo, dia nove, se sagraria campeão. Havia meio que uma corrente a favor daquela equipe, e como era um time da capital, contra um time do interior, a torcida ficava um pouco favorável ao time da capital. Nós quatro, eu, minha esposa, Carlos e Ana, por sugestão do Carlos, planejamos ir passar aquele final de semana em São Sebastião, cidade a mais ou menos duzentos quilômetros de São Paulo. Rumamos pra lá naquela Kombi amarela velha, ainda no sábado. Levamos uma televisão branco e preto de quatorze polegadas, para assistir a grande final do campeonato paulista que, pensávamos, seria ganho pelo Corinthians finalmente. Dormimos de sábado para domingo naquela Kombi, em uma cama improvisada e de manhã quando fomos testar a TV para assistir ao jogo mais tarde, não tinha sinal, mesmo com uma carrada de Bombril na antena. Não queríamos perder a partida e, se voltássemos para São Paulo naquele momento, conseguiríamos assistir, pois foi feito um acordo que seria transmitida a partida mesmo para a praça onde o jogo estava sendo realizado. Acontece que estávamos a mais de três horas de casa e tínhamos pouco mais que três horas de tempo e, pior ainda, estávamos com uma Kombi velha, e um motorista que não tinha habilitação brasileira para dirigi-la. Para conseguir fazer aquele percurso, no tempo disponível, seria necessário desenvolver uma velocidade que chamaria a atenção dos policiais na Dutra.  Nessa época não havia radares, pelo menos na quantidade que existe hoje. Quando existia um, em alguma rodovia, virava notícia nacional. Então, nós embarcamos naquela Kombi e saímos em disparada rumo a São Paulo. Nosso objetivo era assistir ao jogo do Corinthians naquela tarde. Nosso amigo pisava fundo no acelerador, mas não podia ser pego, pois, primeiro atrasaríamos para assistir ao jogo, segundo porque ele não tinha habilitação brasileira. Para evitar de ser parado nos postos policiais, ao se aproximar ele esperava um caminhão alcançar a Kombi e seguia o caminhão, no lado contrário à margem onde estava o posto policial. Passado pela polícia, nosso amigo saia em disparada novamente. Como havia dois postos policiais no percurso que fizemos, foi necessária essa manobra em dois locais diferentes da Dutra.
No fim, conseguimos chegar em casa, na nossa quitinete para assistir ao jogo. Quando ligamos a televisão e nos sentamos no sofá, o juiz soou o apito inicial e o jogo começou. Nosso filho mais velho pulava feito um corintiano maluco dentro da barriga da minha esposa. Era o sétimo mês de gravidez dela e fizemos tudo isso sem que ela sentisse qualquer coisa. O Corinthians perdeu por dois a um esse segundo jogo, obrigando a realização de um terceiro jogo, na quinta-feira seguinte, quando o timão se sagrou campeão depois de um gol do Basílio, o grande herói do título, depois do Rui Rei da Ponte Preta, que, dizem as más línguas, foi o décimo segundo jogador do alvinegro paulistano e que acabou sendo contratado pelo Corinthians para a temporada do ano seguinte. Até hoje os corintianos reverenciam o Basílio, mas se esquecem do Rui Rei, que foi fundamental para a vitória do “curingão” naquele último jogo. Isso porque o Rui Rei foi expulso neste jogo e muitos juram de pés juntos que essa expulsão foi cavada pelo próprio jogador, para favorecer o Corinthians.
Nosso filho mais velho nasceu quase três meses depois, em doze de janeiro e o mais novo nasceu em quatorze de novembro de oitenta. Ambos são são-paulinos, não sei se aquele episódio teve alguma influência na opção deles, especialmente do mais velho. Mas, naquele domingo, fizemos aquela loucura, assistimos ao jogo, vimos o Corinthians jogar como nunca e perder como sempre e a vida continuou, inclusive nós quatro nos curtindo muito.
Esse casal foi muito importante, num período sensível para nós, mas, infelizmente o perdemos do radar e, depois de algum tempo conseguimos nos reencontrar através das redes sociais e reatamos os contatos com o mesmo entusiasmo daquele tempo. Em dois mil e onze, fizemos uma viagem relativamente longa pela Itália e, dos dezoito dias que ficamos por lá, quatro deles passamos na casa desse casal, numa cidadezinha chamada Torre de Picenardi, região de Cremona. Esses quatro dias que passamos na casa deles foram muito intensos. Usando como base aquela bucólica cidade, na companhia dos nossos grandes amigos Carlos e Anamaria, visitamos Verona, Mantova, Brescia, Veneza, e Sirmione, onde se localiza o Lago de Gardia, passeios interessantes. Mas nada foi mais interessante que o fato de termos nos encontrado com aquele casal e revivermos aquele período em que nossos filhos ainda nem tinham nascidos ou eram recém-nascidos. Neste encontro, nós quatro, depois que os filhos já estavam todos casados, vivemos intensamente os quatro dias que nos couberam viver. Para não passar em branco, decidimos por fazer uma “faroreira”, na cidade de Verona, que os italianos cultuam como a cidade da Julieta do Romeu. Fizemos um super lanche dentro do carro, para relembrar os idos de mil novecentos e setenta e sete. Refizemos, enfim, aquela sinapse e nos sentimos como se não houvesse descontinuado aquele relacionamento.
Viver um período sem que tivéssemos filhos foi muito importante para que pudéssemos nos conhecer como duas pessoas que vinham de famílias totalmente diferentes, com formação muito diferente e com um universo inteiro para descobrir um no outro.
O casamento é uma coisa estranha, pois duas pessoas que foram criadas por famílias diferentes, de origens diferentes, com valores diferentes, não tendo nada a ver uma com a outra, de repente se juntam e vão viver assim o resto de suas vidas. Por isso esse tempo que eu e minha esposa ficamos juntos “solteiros” foi muito importante para construir a base desse relacionamento. Depois vêm os filhos e, se não houver uma boa base, as coisas podem degringolar.
Embora isso, quando os filhos nasceram não deixamos de nos comportar com a mesma impetuosidade que imprimíamos antes deles nascerem. Jamais a presença de nossos filhos nos proibiu de fazer coisas, muitas coisas, coisas loucas e loucuras que jamais faríamos hoje. Dentre as tantas, a que mais nos causou prazer e nos trouxe dividendos emocionais que ficaram marcados de forma definitiva em nossas vivências, diz respeito a acampar.
Meu filho mais velho nasceu em mil novecentos e setenta e oito e quando ele nasceu nós não tínhamos carro, mas no início de setenta e nove adquirimos mais um fusca. Quem leu aí pra cima, viu que fui proprietário de um fusca sessenta e nove, logo no ano em que nos casamos, setenta e seis. Esse carro foi vendido e torrado inteiro na compra de móveis e enxoval para esperar o primeiro filho. Ficamos em torno de um ano sem carro e, quando foi possível comprar outro, decidimos por comprar também um fusca, com uma diferença apenas: o carro que compramos era dez anos mais velho que o anterior. Isso mesmo, agora éramos proprietários de um Fusca cinquenta e nove.
Cinquenta e nove foi o ano em que a Volks fabricou pela primeira vez o fusca no Brasil. Como não poderia deixar de ser, a tecnologia alemã estava impregnada naquele primeiro modelo, muito mais que nos fabricados nos anos seguintes. Começava pela forma como se dava a partida no veículo. Existia uma chave que deveria ser colocada na ignição e girar, da mesma forma que é feita nos demais fuscas, entretanto, o motor não ligava com o girar da chave, existia um botãozinho que era necessário acioná-lo para que o motor funcionasse. Certa feita fomos a uma churrascaria que havia na Rua Nestor Pestana, deixei aquele fusca no estacionamento, entreguei a chave e saí tranquilamente. Depois do almoço, voltamos e o manobrista me falou que não conseguiu fazer funcionar o carro porque a bateria havia arriado. Para estacionar ele teve que empurrar. Só aí me lembrei que não havia alertado o manobrista sobre o botão que deveria ser acionado para que o motor funcionasse.
Era esse carro que possuía quando o meu segundo filho nasceu. Com este carro fazia tudo, literalmente. Nessa mesma época me associei a um clube de campo que ficava no município de Biritiba-Mirim. De onde morávamos em São Paulo até Biritiba-Mirim a distância era em torno de cento e dez quilômetros e o camping ficava sete quilômetros depois da cidade, ou seja, percorríamos quase cento e vinte quilômetros para acampar.
Todo santo final de semana, a gente saía de casa no início da noite de sexta-feira e nos rumávamos para aquele clube de campo, onde mantínhamos uma barraca armada em um determinado box. Aquele fusca cinquenta e nove era herói, colocamos um bagageiro no bicho e ali colocávamos toda a bagagem que era composta de apetrechos necessários para dois adultos, uma criança de três anos e de uma criança de quarenta dias. Isso mesmo, essa nossa vida de camping iniciou-se quando meu segundo filho tinha apenas quarenta dias. Era berço, carrinho de bebê, fraldas de pano, as descartáveis ainda eram muito caras, mamadeiras, fogareiro, comida etc. Tudo aquilo que era necessário para passar três dias. A única coisa que levávamos a menos era a barraca, já que essa ficava armada por lá e trazíamos apenas os quartos.
Às sextas-feiras chegávamos lá exaustos e mal dava tempo de descarregar a bagagem do carro, armar os quartos, comer alguma coisa, cuidar das crianças e não tínhamos ânimo para mais nada. No sábado de manhã, enquanto minha esposa e as outras mulheres davam um trato em tudo, normalmente os homens jogavam futebol e depois fingíamos que ajudávamos um pouco nossas mulheres, almoçava e pegava uma piscina, que nesse camping tinha até uma de água corrente. Nessa época o filho mais velho já curtia água. Assim passávamos os finais de semana. No sábado à noite, geralmente o pessoal do camping preparava algum evento num espaço social que a gente chamava de Clube, sendo que no final de semana de carnaval esse espaço era utilizado para bailes noturnos e matinés.
Não me lembro quanto tempo levamos essa vida, mas sei que foi uma época interessante em que durante a semana eu praticamente não via meus filhos, pois quando saía de casa eles ainda não tinham acordado e quando chegava eles já estavam dormindo. O final de semana, então, era o momento que a gente se curtia muito.
Essa época foi especialmente marcante em minha vida porque foi quando decidimos que deixaríamos de morar de aluguel em São Paulo e partimos para adquirir nosso próprio apartamento. Hoje, um pouco distante daquilo, não sei se foi muita vantagem. Quando morava de aluguel, sempre estava próximo do serviço, pois não fazia diferença pagar aluguel longe ou perto da empresa em que trabalhava, já que os preços se equivaliam. Então, sempre optamos por morar perto da empresa em que trabalhávamos. Quando minha esposa trabalhava fora, optávamos por morar perto da empresa dela, quando ela não trabalhava fora, optávamos por morar perto da minha empresa.
Mas, nesta época decidimos por adquirir um apartamento e fomos atrás de algum que coubesse em nosso bolso. Isso significava morar longe de tudo.  Para quem conhece um pouco a cidade de São Paulo, vou dar algumas referências para que entendam o drama. O último apartamento alugado que morei naquela cidade era na Rua Doutor Plinio Barreto, que era uma alça da Avenida Nove de Julho, que desviava de um viaduto que passava por sobre a Praça 14 Bis, na Bela Vista, o famoso Bixiga, bem próximo da sede da Escola de Samba Vai-Vai, que nem sei se ainda está por lá. Nessa ocasião eu trabalhava na Rua Sete de Abril, que saia da Praça da República e terminava na Xavier de Toledo, bem no centro de São Paulo. A distância da minha casa até o trabalho não passava de dois quilômetros e era até difícil não ir a pé. Só deixava de caminhar para ir e voltar do trabalho, quando estivesse muito cansado, ou quando era muito tarde da noite. Nessas situações tinha que ir até a Praça das Bandeiras para pegar um ônibus que circulasse pela Nove de Julho.
Quando decidimos por comprar um apartamento próprio, um dos que coube no orçamento e que acabamos adquirindo ficava na Rua Geraldo Beting, Jardim Germânia, Santo Amaro, divisa com Campo Limpo, quase vinte quilômetros do local que eu trabalhava. Compramos na planta, como se dizia, depois de visitar o stand de vendas e um apartamento decorado, onde os incorporadores, descobri isso depois, mandam fazer móveis em tamanho menor para dar a impressão de um ambiente maior do que na realidade é. Durante dois anos, enquanto não ficava pronto o apartamento, fiquei pagando a entrada do imóvel. Finalmente ficou pronto, nos mudamos pra lá e, a partir daí nunca mais podia imaginar sequer, ir trabalhar a pé. Ainda bem que tinha um fusca cinquenta e nove, potente e heroico. De ônibus, o percurso demorava duas horas, de carro, uma hora e vinte minutos. Frequentemente, deixava para sair do serviço depois das oito da noite, pois neste horário a duração desse trajeto era bem reduzido. Deixando o serviço às seis da tarde, chegaria em casa por volta das oito da noite. Se deixasse as oito da noite, chegaria em casa, por volta das oito e quarenta. Então, compensava trabalhar duas horas a mais todos os dias e deixar de me estressar no trânsito. Chegava em casa um pouco mais tarde, mas bem mais tranquilo.
Com isso, o tempo de convívio com meus filhos e minha esposa ficou bem menor do que o necessário. Pouco depois disso, meus filhos começaram a estudar no Colégio Costa Braga, na Granja Julieta. Então, eu levava meus filhos e mais dois amigos deles, para a escola de manhã, quando saía para o trabalho e a mãe dos dois amigos de meus filhos apanhava eles na escola. Voltava as nove da noite e, quase sempre, eles estavam dormindo. Logo, durante a semana eu via meus filhos somente de manhã, praticamente dentro do carro, eles indo para a escola e eu indo para o trabalho. Foi nesse contexto que decidimos por dedicar às atividades de acampamento, o que atenuou um pouco a questão do relacionamento, pois fugíamos um pouco daquela loucura e curtíamos um pouco de ar puro e a gente mesmo.
A empresa que eu trabalhava na Sete de Abril no centro, chamava-se Interpublic e era do mesmo grupo da McCann Erickson que hoje se chama W/McCann. Desse grupo também fazia parte uma empresa de pesquisa de mercado chamada Marplan, que funcionava no mesmo prédio da Interpublic. A McCann, que sempre foi a maior empresa do grupo, funcionava em um prédio do centro também, na confluência da Rua da Consolação com a Avenida São Luiz. Todas essas empresas faziam parte de um grupo de agências internacional que era composto também pela Campbell-Ewald e se associaram nesta época à SSC&B Lintas, que foi uma agência de publicidade que se tornou autônoma, depois de nascer como uma House Agency da Gessy Lever inglesa. Esse grupo decidiu investir em empresa brasileira e decidiu por assumir o controle da Proeme, uma agência que pertencia ao Ênio Mainardi, pai do Diogo Mainardi. Nesta época eles decidiram por construir uma sede própria, na Rua Loefgren, Vila Clementino, margeando a Avenida Rubem Berta. Neste prédio reuniram duas empresas: Interpublic e McCann. A Interpublic, que eu trabalhava, era encarregada de fazer os serviços burocráticos e administrativos da McCann e nestas condições possuía o CPD do grupo, no qual eu tinha lá uma função de destaque. Nem é possível falar qual era minha função por lá, pois eu era formalmente registrado como programador de computador, mas foram me atribuindo funções que, a certa altura eu tinha sobre meus ombros a responsabilidade de tocar o CPD, além, é claro, de ser programador, analista etc. A distância diminuiu um pouco, mas ainda assim trabalhava a dezessete quilômetros de casa.
Cansado de dirigir carro pelas ruas daquela cidade, decidi que iria comprar uma motocicleta para ir e voltar do trabalho. Minha esposa já havia aprendido a dirigir e eu já podia deixar a função de levar ou buscar as crianças na escola com ela e a motocicleta me fez ganhar pelo menos umas duas horas de tempo, já que conseguia fazer o mesmo percurso com a metade do tempo que levaria normalmente de carro.
A motocicleta que adquiri era uma Honda CG 125, tamanho ideal para quem queria muito mais ser um motociclista que um motoqueiro. Embora, nos meus deslocamentos casa/trabalho/casa, não raro, praticava atos de motoqueiro, aproveitando os corredores entre os carros para ganhar tempo, meu comportamento, geralmente, era de respeitador das leis, sem abusar no trânsito, sempre dando preferência à vida. Entretanto, todo esse cuidado com a moto não adiantou muito e sofri um acidente que mudou minha vida, não pelo tamanho do estrago, mas pelas consequências.
Percorria de moto, diariamente, algo em torno de trinta e cinco quilômetros, entre minha casa e o trabalho, indo e voltando. Na ida passava pela ponte João Dias, que na época eram duas, uma embaixo e outra em cima. A de cima era para quem continuasse na Avenida João Dias e a de baixo para quem desejasse pegar a marginal do Rio Pinheiro, em sentido centro ou em sentido Interlagos. Eu sempre pegava a de baixo, pois pegava a marginal Pinheiro e através dela alcançava a Avenida Nações Unidas em direção ao centro. Para atingir esse objetivo, pegava uma alça que desembocava na Avenida Guido Caloi, virava à direita e tinha acesso à parte de baixo da Ponte João Dias.
Eu e minha esposa sempre procuramos aproveitar todas as oportunidades que temos para ficarmos juntos. Isso, desde sempre. Quando decidi por adquirir uma moto para trabalhar, uma amiga nossa, que morava no mesmo condomínio, já levava nossos filhos para a escola, juntos com os filhos dela, e minha esposa, agora já sabendo dirigir, buscava as crianças depois da aula, levando os quatro pra casa. Desta forma, eu podia sair um pouco mais tarde de casa, pois o tempo que eu gastava para chegar ao trabalho ficou menor e não tinha o compromisso de estar com as crianças as sete e meia na escola. Assim, depois que as crianças saiam para a escola eu e minha esposa tínhamos lá quase uma hora para conversarmos sobre alguma coisa ou se curtir mesmo. Depois disso eu saía para o serviço e, não raro, a minha esposa descia o elevador comigo, subia na garupa da moto e saía comigo. Chegando na portaria, uns cento e cinquenta metros depois, ela descia da moto, nos beijávamos, ela voltava para seus afazeres e eu seguia rumo ao trabalho.
Aquele oito de maio foi um desses dias. Minha esposa desceu comigo, subiu na garupa da moto e repetimos aquele ritual. Quando nos despedimos, segui o percurso diário. Ela voltou pra casa e pouco mais de meia hora depois ela recebia uma ligação. Era uma atendente de um ambulatório informando a ela que eu tinha sofrido um acidente de trânsito e estava lá para encaminhar atendimento.
Saindo da Avenida João Dias e pegando a alça que me faria ter acesso à marginal do Rio Pinheiro, no sentido contrário vinha um carro e acabamos por colidir. Bati com o joelho esquerdo no para-lama direito do veículo e, embora a moto e o carro não estivessem em alta velocidade, a colisão foi suficiente para quebrar meu fêmur e dois lugares. A mais ou menos dez centímetros do joelho, a fratura foi mais severa, pois houve ali uma espécie de esfarelamento do osso. A outra fratura localizou-se perto da cabeça do fêmur no encontro com a bacia. Até hoje não consegui uma explicação lógica para aquele acidente, pois foi um esbarrão como tantos outros que a gente leva de moto quando está no trânsito e a velocidade de ambos os veículos era tão baixa que a colisão me levou ao chão sem, contudo, me fazer afastar do carro, assim como a moto. Ou seja, ao parar, a disposição minha e dos dois veículos, carro e moto, era um ao lado do outro: o carro de um lado, eu no meio e a moto do outro lado, perfeitamente pareados. Caso alguém não estivesse em velocidade baixa, com certeza eu ou a moto, ou ambos, seria jogado longe, não fazendo uma linha reta pareada entre os três elementos.
Mas, aconteceu o acidente e eu estava ali estendido no chão com o fêmur quebrado em dois lugares. Vale dizer, tinha um pedaço de osso solto no meio da coxa que deveria ter mais ou menos uns trinta centímetros. Estávamos no ano de mil novecentos e oitenta e cinco e nessa época ainda não havia SAMU e, melhor ainda, as pessoas eram mais corteses umas com as outras. O motorista do carro me perguntou se eu tinha algum hospital de preferência para ser levado e eu lhe informei que tinha um plano de saúde e gostaria de ser levado pra lá. O carro com o qual houve a colisão era um Gol de duas portas e eu não estava em condições de ficar sentado e tinha que ser transportado deitado. Portanto, deveria ser colocado no banco de trás do carro. Imagine, eu com o fêmur quebrado em dois lugares tendo que ser levantado por uma única pessoa, o motorista, e, pior ainda, ter que ser colocado no banco de trás de um veículo que só tinha as portas da frente.
Fui colocado no banco de trás daquele veículo e rumamos para o ambulatório do plano de saúde, deixando a moto abandonada no lugar do acidente. O local para onde eu deveria ser levado ficava em Santo Amaro, em algum lugar entre a Adolfo Pinheiro e o Cemitério do bairro. Não sei se ainda é assim, mas à época existiam ruas nesta região que era de paralelepípedo, o que fazia o carro tremer feito um liquidificador. Quando fui colocado dentro do carro não senti muitas dores, pois estava ainda quente. Mas ao nos aproximarmos do ambulatório, naquelas ruas sem asfalto, já esfriando o sangue, aí sim as coisas começaram a apertar. Percebendo minha situação, o motorista, ao invés de tentar me tirar do carro, desceu e foi à recepção para narrar o que aconteceu e pedir orientações. Decisão acertada, pois pelo quadro, eu teria que ser encaminhado para um hospital. Alguém veio até o carro, entreguei a carteirinha do plano, fizeram a ficha de encaminhamento e, no próprio carro fui conduzido para o Hospital Zona Sul, que não deve existir mais, situado na Rua Iguatinga. Todo o percurso entre o ambulatório e o hospital era de ruas com paralelepípedo. E a dor começou a ficar insuportável. Nesse momento comecei a torcer para desmaiar.
Antes de sair do ambulatório em direção ao hospital, passei o número do telefone de casa à recepcionista e pedi a ela para ligar para minha esposa e explicar o que tinha acontecido para que ela tomasse as providências necessárias. Minha esposa fora avisada e se dirigiu para o ambulatório do meu plano de saúde. Chegando lá informaram a ela que eu havia sido encaminhado para o hospital e indicaram a ela o endereço.
Não consigo imaginar o que se passou na cabeça da minha esposa durante o percurso até chegar ao hospital. Embora tenha sido avisada de que não se tratava de nada grave, ainda assim, se não fosse grave, não seria necessário ir para o hospital. Nessas horas é impossível pensar em coisas boas, só pensamos em coisas ruins, as piores possíveis. Isso explica o alívio que minha esposa sentiu ao chegar ao hospital e ser informada que eu havia dado entrada ali gritando. Não porque ela estivesse feliz por eu estar gritando, mas, feliz por eu estar vivo, já que morto não grita.
O estado em que eu estava não me permite lembrar de muitos detalhes dessa minha entrada no hospital e início dos procedimentos. Entretanto, dois fatos ocorridos nesse momento estão marcados bem fortes na minha lembrança. Eu cheguei ao hospital vestindo uma calça jeans e a moça que iria me preparar para o procedimento queria levantar minha perna para poder tirar a minha calça. Neste momento disse para meter o bisturi na calça e rasgá-la. Estava com o fêmur quebrado em dois lugares, um pedaço dele solto no meio da coxa e a moça querendo levantar minha perna para não estragar a calça. Outra lembrança é que, eles decidiram por não fazer a cirurgia de imediato. Isso porque, embora os ossos não estivessem à mostra, ficou caracterizado como fratura exposta, visto que houve ferimento por fora e por dentro. Decidido, então, não fazer a cirurgia ortopédica naquele momento, seria necessário fazer uma tração para que os músculos e nervos não encurtassem, o que dificultaria a cirurgia que seria feita quando as feridas cicatrizassem. Para fazer essa tração, era necessário fazer um furo na tíbia, atravessar um pino de um lado ao outro da canela. Os instrumentos utilizados para isso é uma furadeira e uma broca. Quando começaram a furar eu senti a broca tentando furar a minha pele, neste momento a assistente se lembrou que não havia aplicado anestesia naquele local.
Foram meses sofríveis, mais precisamente, foram dezoito meses para recuperação desse acidente. Em função da localização da fratura, era impossível engessar. Se fosse imobilizar, teria que ser feita praticamente uma armadura de gesso, que pegaria o tronco, a partir do peito, passaria pelo quadril, atingindo toda a perna esquerda e, na perna direita precisaria ter gesso até o joelho. Pela descrição é possível ver a impossibilidade. O médico informou, então, que não iria colocar gesso, mas eu deveria ficar de repouso absoluto até que as fraturas se consolidassem. Concordamos com a exigência e o médico fez o procedimento cirúrgico que consistiu em colocar várias peças de platina no fêmur. Foram colocadas ao todo, entre parafusos, placas e pinos, quinze peças. Na fratura perto do joelho foi colocada uma placa, de mais ou menos vinte centímetros, afixada com nove parafusos. Na fratura perto da bacia foi colocada uma placa, afixada com três parafusos e um pino-prego que fixava a cabeça do fêmur na bacia. Essa cirurgia aconteceu no dia seis de junho. Como o acidente ocorreu no dia oito de maio, foram quase trinta dias que eu fiquei no hospital com aquela tração, até que os ferimentos cicatrizassem.
Alguns dias depois da cirurgia fui liberado para ir embora e fomos pra casa todos felizes. Deveria voltar uma vez por mês ao hospital para os exames de praxe. Nessas ocasiões, o hospital mandava uma ambulância me pegar em casa. Morava no décimo segundo andar de um prédio. Os homens subiam com uma maca, me amarravam nela e ao chegar no elevador colocavam a maca de pé. Para sair do elevador e me levar até a ambulância deitavam a maca novamente. Nos primeiros seis meses, a minha visão diferente da janela do meu apartamento era essa viagem de ambulância e o ambiente do hospital, sempre deitado.
Num desses passeios médicos que fazia, o médico decidiu que seria necessário fazer outra cirurgia porque a fratura perto do joelho não dava sinais de consolidação. Era novembro, seis meses depois da primeira cirurgia. Nesta nova intervenção foram retiradas todas as peças que estavam cravadas no meu fêmur. Entretanto, seria necessário colocar outras com as mesmas características na fratura perto do joelho. A fratura perto da bacia estava perfeitamente consolidada e não requereu maiores cuidados, apenas se tirou as peças ali colocadas. Mas para a fratura perto do joelho teria que fazer um procedimento diferente. Era necessário fazer um enxerto de ossos naquele local e, para tal, seria preciso tirar osso de algum lugar do corpo. Optou-se por retirar o enxerto da bacia e fez-se mais um corte no pé da barriga para acessar o melhor local para se retirar o material necessário. O enxerto foi colocado no local da fratura, as peças foram afixadas de novo, uma placa e nove parafusos, e esse conjunto de metal eu carrego comigo até hoje.
Foram ao todo, dezoito meses de molho, afastado do serviço. Os primeiros dez meses não saía da cama nem para o banho. Minha esposa me ajudava para eu fazer tudo, desde minhas necessidade fisiológicas até os banhos que ela me dava passando toalha molhada em meu corpo e, quando não dava para  aguentar mais, colocava a cabeça pra fora da cama e ela jogava uma água, um shampoo e assim minha cabeça era lavada. Passados esses dez meses, fui liberado para andar de cadeira de rodas. Daí destruímos o box do banheiro para que eu pudesse tomar alguma coisa que parecesse mais com um banho, mesmo que fosse sobre uma cadeira de rodas. Mas essa cadeira já me deu uma mobilidade maior e mais opções. Foram três meses que curti a vida adoidado sobre uma cadeira de rodas. Coitada da minha esposa. Passava apurada com as minhas vontades de passear, mesmo que fosse sobre as duas rodas de uma cadeira. Mas a guerreira aguentou firme.
Passado o período da cadeira de rodas veio a liberação para andar com muletas, duas, depois uma e, no final, apenas uma bengala, ainda de bengala, recebi alta para voltar a trabalhar. A alta foi dada quando os médicos perceberam que os defeitos que ficaram na minha perna eram permanentes e me diagnosticaram com uma invalidez parcial permanente e, nestas condições passei a receber um auxílio da seguridade social. Quando foi concedido, o auxílio equivalia a um virgula noventa e oito salários mínimos, ou seja, quase dois salários mínimos e hoje corresponde a zero virgula setenta e cinco salários mínimos e, a cada ano que passa vai diminuindo. Se eu viver bastante, deve chegar uma época que terei que devolver dinheiro mensalmente à previdência, por conta desse auxílio que me fora concedido por uma invalidez.
Sem dúvidas foi o período em que mais sofri fisicamente e, com certeza também, minha esposa experimentou muito sofrimento nessa época. Entretanto, hoje, olhando em perspectiva, é possível notar que esse período foi fundamental na consolidação da minha família. Lógico que entramos nesse período com uma base relativamente forte referente às relações familiares. Entretanto, esse período foi determinante em alguns aspectos que talvez seria muito mais traumático tê-los alcançados de outra maneira.
De repente estávamos ali, nós quatro sem nenhum parente para nos ajudar naquele momento tão difícil das nossas vidas e eis que começamos a colher um pouco daquilo que havíamos plantado durante os primeiros anos de nossa família. Os amigos foram despontando assim como num passe de mágica, não imaginávamos que éramos tão queridos como as pessoas nos demonstraram naqueles tempos bicudos.
Uma demonstração nos chamou muito mais atenção que as outras. Um amigo meu de trabalho, creio que uns seis anos mais novo que eu, tinha uma família daquelas de fazer inveja a qualquer um. Quando aconteceu o acidente a família desse amigo meu nos deu um suporte que até hoje é difícil de lembrar sem embargar a vós de emoção. Gostaria de publicar aqui um e-mail que mandei para esse meu amigo em dois mil e oito, vinte e três anos depois daquele acidente.
“Gostaria muito de saber sobre sua família. Quando tivemos relações com tua família, através de você, foi uma época muito forte para mim, a Cleide e os meninos. Foi uma época em que vivemos uma experiência que mudou nossas vidas para sempre. Primeiro, aquele acidente de moto que me jogou na cama por mais de um ano, com todas as consequências familiares que se pode imaginar quando alguém fica naquelas condições. Mexe com todos os membros da família. Com a nossa não foi diferente. Mas naquele episódio também passamos por experiências definitivas na nossa maneira de encarar o ser humano. Não sei se você se lembra de como sua família, especialmente dona Léa, nos tratou naquele tempo. Como vocês cuidaram de nossos filhos, fazendo com que eles se sentissem protegidos, mesmo sabendo que o pai estava no hospital, que, pela idade deles, eles não tinham noção da gravidade. O que contava para eles é que o pai estava num leito de hospital, com a um parafuso na perna, onde tinha amarrado uma corda e no final da corda, um peso puxando a perna. Naquele momento a proteção da sua família foi decisiva para nós. Naquele momento, percebemos o quanto uma família pode ser importante para outras famílias. E, de certa forma, aquela atitude da sua família, com relação à nossa, tem norteado as atitudes da nossa família. Hoje, olhando o passado, me fica a impressão de que aquele acidente foi colocado na minha vida para que eu pudesse ter vivido esta experiência, cujos frutos colhemos até hoje. Graças a experiências como estas, hoje eu e a Cleide, sentimo-nos recompensados pela formação, sobretudo moral, que demos aos nossos meninos. Aliás meninos que já se fizeram homens...”
Passados os problemas todos que vivenciamos o saldo foi muito positivo. Foi uma época que tivemos a oportunidade de uma convivência profícua entre nós quatro, com a ajuda ímpar de pessoas brilhantes. Nunca fomos de ter vida social intensa, por isso, nas cidades em que a gente morou nunca fomos de formar grandes círculos de relacionamentos. Entretanto, os que fizemos, até hoje os consideramos como membros de nossa família. Se se contasse a quantidade de amigos que fizemos em São Paulo, acho que não chega a uma dúzia. Aliás, considerando somente famílias, cabe nos dedos de uma mão. Mas, são pessoas que marcaram de tal maneira a gente, que seria impossível imaginar qual o caminho teríamos tomado se não tivéssemos encontrado essas pessoas.
Uma das famílias já tive a oportunidade de contar o nosso relacionamento. Trata-se do casal Anamaria e Carlos, os argentinos. Outro casal, “seo” Mário e “dona” Lea, mãe do grande amigo Ruy, esse do e-mail acima. É dessa época também o casal Shirley e Pita. Esses a gente conheceu em circunstância profissionais, pois eu era o chefe do Pita em uma das empresas que trabalhei em São Paulo, daí ele começou a namorar a Shirley e fortuitamente nos encontramos fora do trabalho e nascia ali uma das amizades mais marcantes em nossas vidas. Embora tanto eu como minha esposa pensássemos tão diferente daquele casal, foi uma química tão perfeita que meus filhos têm uma boa dose de influência desse casal. Desde o nascimento do filho mais velho que eles estavam sempre presentes. As poucas vezes que conseguíamos uma brecha, financeira ou física, para curtir um pouco a noite de São Paulo, depois que os filhos nasceram, era esse casal que nos substituía na função de cuidar de nossos filhos. Acabamos por comprar apartamento no mesmo prédio e, na ocasião do acidente, foi uma das famílias que nos deram suporte. A amizade continua até hoje, embora apenas com a Shirley, pois nosso amigo Pita fez o favor de nos deixar antes do combinado e foi para o andar de cima mais cedo. Sempre que a gente passa por São Paulo, damos um jeito de encontrar nossa amiga Shirley, ou quando ela descobre que a gente está na cidade, acha um jeito de nos encontrar e assim essa sinapse continua ligada em nossos corações e mentes. Como é uma amizade que vence tudo, inclusive o tempo, nos tempos atuais essa grande amiga Shirley continua dando provas da importância dela em nossas vidas. Meu filho mais velho, o mesmo que a Shirley chamava de Tilim, quando era pequeno, acho que por causa de um seriado da TV Cultura de São Paulo, decidiu fazer mestrado e apareceu esta oportunidade em uma escola de São Paulo. Morando numa capital de um estado do Norte do país, lógico que a logística para estar lá a fim de cumprir os créditos das matérias seria bem complicado. Além das passagens aéreas para ir e voltar nos períodos de estudos, ainda teria o dispêndio com a hospedagem, para, de quando em quando, passar alguns dias em São Paulo, longe da família, estudando e vivendo. Nesse contexto é que surge, de novo, a grande amiga Shirley e praticamente montou uma família alternativa para nosso filho mais velho em São Paulo, de forma que ele pudesse passar esses períodos por lá sentindo o carinho de um lar. Falo que ela montou uma família alternativa porque, além da própria Shirley, sua filha Deborah, com a mesma dedicação, encanto e bondade da mãe, também faz de tudo para nosso filho mais velho e trata-o como se fosse seu irmão mais velho. Isso tudo para um coração de pai, vocês devem fazer uma ideia do que representa.
Entretanto, das poucas pessoas ou famílias que mantivemos relacionamento em São Paulo, uma, em especial, guarda uma importância que transcende a imaginação que se possa ter de amizade.
Quando adquirimos o apartamento próprio em São Paulo, o fizemos em um conjunto residencial composto de sete prédios, cada prédio com doze andares, cada andar com quatro apartamentos, ou seja, um conjunto residencial com trezentos e trinta e seis unidades habitacionais. Apartamentos pequenos, com dois quartos, sala, cozinha, área de serviço e um banheiro. De área útil eram apenas cinquenta e um metros quadrados. Embora não fosse a maioria, uma parte considerável de famílias que adquiriram esses imóveis, era de casais lutando para formar um patrimônio que pudesse dar um norte para suas famílias recém-formadas. Em outras palavras, pessoas mais ou menos na mesma “vibe”, como diz hoje os adolescentes, todos com objetivos relativamente comuns e focando as mesmas coisas.
Neste cenário apareceu um casal formado por uma pernambucana porreta e por um descendente de alemão, que, assim como nós, tinham dois filhos homens, sendo que o mais velho deles, era da idade do meu mais novo. Nossos quatro filhos estudavam na mesma escola, Costa Braga, na Granja Julieta. Daí para formarmos uma trupe só, foi um pulo. Passamos a viver meio tudo junto e misturado a ponto de, quando estavam juntos as duas mães e os quatro filhos, ser meio difícil de saber quem era mãe de quem e quem era filho de quem, tamanha era a integração entre a gente. Na mesma época que mudamos desse conjunto, o marido dessa nossa amiga resolveu se separar dela, mas isso não impediu que continuássemos com os fortes laços com ela e seus filhos.
Trata-se de Luciman Maria de Sousa, ou simplesmente Tia Lú, como meus filhos sempre a chamou. Essa mulher é guerreira. Na mesma proporção que sonha e fantasia a vida, ela luta para vencer os desafios que a vida lhe apresenta. Apesar de todos os perrengues pelos quais essa mulher passou, que, sou testemunha disso, não foram poucos, jamais a vi reclamar de alguma coisa ou fraquejar. Sempre ela via uma fresta por onde passar, quando as portas e as janelas se fechavam.
Pois bem, se essa mulher já era assim em tempos normais, imagine quando eu sofri o acidente. Nos primeiros meses, quando a gente ainda estava tentando nos adaptar à nova situação, essa mulher era capaz de esquecer da própria vida para cuidar da nossa. Não fosse esse anjo chamado Lú, esse período teria sido muito mais difícil do que realmente foi.
Passado o tempo, mudamos de cidade, pensando eu, que apenas ela tinha muita importância na vida da minha família, eis que ela nos prova que a recíproca era rigorosamente verdadeira. Das poucas pessoas que ousamos chamar de amigos em São Paulo, a Lú foi a única que compareceu numa comemoração que fizemos, no Paraná, para festejar a vitória em dois concursos: eu acabava de passar num concurso público para trabalhar em Rondônia e meu filho mais velho obteve êxito no vestibular para a Faculdade de Direito da FURG, de Rio Grande, Rio Grande do Sul. Não bastasse isso, foi a única daquelas pessoas que, anos depois, já em Rondônia, compareceu no casamento de meus dois filhos, um em dois mil e seis e outro em dois mil e oito. Isso me provou que as amizades, quando são verdadeiras, são eternas, independentemente do tempo, da distância e de qualquer outra coisa que possa acontecer. Sempre que encontro com esses amigos queridos, parece que a gente havia se encontrado ontem, que o tempo não passou, mesmo que o ontem tenha sido há mais de dez anos.

Portanto, com tanta demonstração de carinho e com tanta prova de amor para com a gente, não é possível dizer que aquele período em que eu passei boa parte dele sobre uma cama, tenha sido uma época ruim. Ao contrário, aquele período fez um bem enorme para mim e minha família, de tal forma que saímos dele com a certeza que Deus é generoso e com muito mais vontade de retribuir todo o carinho e amor que recebemos. Com isso em mente, nossa vida foi norteada para as melhores coisas que se pode imaginar.



APRENDENDO A ...


... SER SOGRO


Deveria deixar para escrever este parágrafo mais pra frente, já que tive a oportunidade de ser avô antes de ter a experiência de ser sogro. Mas, para ficar com a ordem natural das coisas, vou continuar escrevendo este capítulo antes dos próximos.
Quando os filhos namoram, é como se a gente estivesse fazendo um treinamento para ser sogro. Mas, “treino é treino, jogo é jogo”, dizem os boleiros. Enquanto os filhos estão namorando o contato que temos com os agregados é muito superficial, não existe uma interação maior entre a gente e a pessoa com quem seu filho está namorando.
Cabe um comentário sobre o genro, antes de falar sobre as noras. Como já dito por aí, tenho uma filha postiça, que me deu um casal de netos. Essa menina namorou e casou-se com um amigo do nosso filho mais velho. Então, formalmente esse marido da minha filha postiça é meu genro. Mas nossa relação pouco tem a ver com uma relação entre genro e sogro. Então daqui pra frente vou concentrar nos aspectos do relacionamento com minhas noras.
Entretanto, devo abrir uns parênteses aqui para relatar um fato que indica muito bem o nível de integração entre o meu “genro” e os meus filhos, sobretudo com o filho mais velho.
(No nascimento da minha neta mais velha, como disse por aí, foi um pouco tenso, pois ela demorou um pouco para nascer e teve que ir para a UTI-neonatal. Num determinado momento foi liberado para que o pai da menina entrasse para vê-la. Avisaram a todos nós que estava liberada a entrada do pai e o meu filho mais velho e o “genro” se apresentaram na porta da UTI para ver a criança. A moça que estava na porta para controlar a entrada, então, avisou que só podia entrar o pai da criança. Meu filho e meu genro, olhou um para o outro e quase em uníssono disseram: “mas nós dois ainda não sabemos qual dos dois é o pai da criança”. A enfermeira olhou para os dois e não viu outra solução senão deixar os dois entrarem.
Quando minha filha postiça, que havia acabado de dar à luz, soube do ocorrido ficou possessa da vida, pois, o que os dois fizeram foi sugerir à enfermeira que a mãe da criança não passava de uma desavergonhada, que nem sequer sabia quem era o pai de sua filha. Hoje, ainda sem aceitar aquele episódio, ela dá risada disso, mas no dia ficou foi muito furiosa.
Me parece que a atitude daqueles dois rapazes na porta da UTI-neonatal dá a exata proporção da perfeita integração entre meu filho e esse grande amigo que havia feito durante suas vindas nas férias. Por óbvio que uma menina que namorasse esse rapaz não poderia ser recebida de forma diferente no seio de nossa família).
Quando tomei posse na função em que me aposentei, depois de passar no concurso para funcionário público, fiquei lotado no departamento de informática da secretaria em que eu trabalhava, em função da experiência que havia acumulado nos vinte três anos anteriores à minha posse. Com o passar do tempo acabei por assumir a gerência desse departamento. Minha missão ao assumir este setor seria implementar a parte de tecnologia que fazia parte de um programa das Nações Unidas em conjunto com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Como na época a secretaria que eu trabalhava não possuía nenhuma tecnologia implantada, caberia a mim montar toda a infraestrutura de informática nos três pilares necessários: hardware, software e peopleware.
Quando já estava no processo de montagem do peopleware que iria tocar o projeto, apareceu por lá uma menina recém-formada na área de sistema numa universidade paranaense pedindo emprego. Como a equipe que estava montando seria fornecida através da companhia de processamento do Estado, tinha a prerrogativa de selecionar as pessoas, que a empresa contrataria e deixaria à minha disposição. É difícil dar o primeiro emprego para alguém, sobretudo quando se está montando uma equipe que se pretendia ser precursora na secretaria, mas alguma coisa me chamou a atenção naquela mocinha e eu decidi arriscar e dei uma das vagas da equipe para uma analista de sistema que tinha acabado de deixar os bancos escolares.
Essa mocinha viria a se tornar a nora que se casou com meu filho mais velho. Depois que ela começou a fazer parte da equipe, descobri uma pessoa determinada, sabendo muito bem onde estava e aonde queria chegar. Uma personalidade forte, às vezes até intransigente, mas justa. Lutava pelas suas ideias e só desistia delas depois de batalhar muito para vê-las aceitas. Muito pouco tempo depois já era uma referência na equipe. Apenas uma pessoa da equipe a enfrentava, exatamente por ter o mesmo temperamento. Tratava-se de um técnico de rede que trouxemos para a equipe. Um dia precisava em um subprojeto dois profissionais com aqueles perfis, coloquei-os juntos, sabendo que iria sair faísca, mas no final o resultado seria o melhor possível. Não deu outra, os dois discutiam muito e, às vezes, chegavam até a brigar, mas o resultado foi excelente para o projeto.
Meu filho mais novo tinha uma função naquela equipe que foi montada e acabou por fazer amizade com aquela que se tornaria minha nora. Sempre que os via juntos, imaginava que seria muito interessante tê-la como nora. Mas nunca forcei a barra e deixei as coisas rolarem. Então, a minha nora mais velha se tornou amiga do meu filho mais novo.
Essa menina tinha mais três irmãs, uma delas, na ocasião fazia odontologia em Minas Gerais. Certa feita, fizemos uma festa numa localidade que demos o nome de “no limite”, em referência a um reality show que existia na televisão, onde os participantes viviam no meio do mato. Como a festa também era num ambiente totalmente inóspito, apelidamos a festa desta forma. Neste evento foram convidadas todas as pessoas da minha equipe. Nem todos encararam enfrentar aquilo, mas muitas pessoas foram, inclusive a funcionária que era amiga do meu filho mais novo. Ela levou sua irmã que estudava em Minas, que estava de férias na cidade. Quando olhei aquela menina chegando, que eu não conhecia, junto com a sua irmã que trabalhava comigo, fiquei imaginando o quanto interessante seria se algum filho meu namorasse uma das duas, se bem que a mais nova, que era, e é, muito bonita, achei que fosse areia demais para o caminhãozinho dos meus filhos.
Mas o tempo foi passando e aquela amizade do meu filho mais novo continuou com aquela que se casaria com meu filho mais velho. Um belo dia, para minha surpresa, recebo a notícia pela minha nora mais velha, que ela estava namorando meu filho mais velho. Não entendi nada, mas gostei imensamente da notícia e curti muito aquele momento. Depois fiquei sabendo que meu filho mais novo já namorava a irmã da minha nora mais velha. Ou seja, os anjos haviam ouvidos duplamente minhas preces e Deus concedeu-me ter como nora duas pessoas sensacionais, responsáveis, justas, honestas, em suma duas pessoas bonitas que qualquer sogro gostaria de ter como nora. Então ficou assim, os dois filhos meus se casaram com duas irmãs e os quatros viraram também parentes, pois além delas serem irmãs, passaram a ser concunhadas, da mesma forma, meus filhos além de serem irmãos, passaram a ser concunhados. Os filhos que ambos os casais teriam seriam primos-irmãos.
Isso nos traz muitas facilidades, especialmente quando se trata das comemorações, pois o natural é que os pais gostam de estar com os filhos e os filhos gostam de estar com os pais. Quando as noras são de famílias diferentes, ou se promove uma integração, que não é muito fácil, ou é necessário escolher onde comemorar as datas festivas, tipo natal, ano-novo, dia das mães, dia dos pais e tantas outras oportunidades de se comemorar alguma coisa. Do jeito que ficou configurado, basta nossos filhos convidarem o casal de pais que o problema está resolvido. A lógica é mais ou menos a seguinte: quando você se casa, está meio implícito, que faz parte do pacote, os pais da esposa e do marido. Entretanto, normalmente estão excluídos os pais de seu cunhado ou sua cunhada. Quando todos esses personagens são as mesmas pessoas, facilita tudo.
Só uma coisa me entristece nessas ocasiões. Quando a comemoração não é feita por mim e minha esposa, nem sempre minha filha postiça é convidada. Com isso, nem sempre todos os netos estão presentes nessas ocasiões.
Vamos abrir um parêntesis. (A experiência mostra que promover a integração entre famílias é muito desgastante. Vamos imaginar numa festa para comemorar alguma data especial: ano novo por exemplo. Quando se tem muitas famílias envolvidas, uma delas tem que ter a iniciativa de disponibilizar sua casa. Isso envolve um certo dispêndio de recursos, seja para assumir os custos para a montagem do ambiente, que pode envolver o aluguel de um salão de festas do prédio, decoração etc., ou para assumir os custos para desmontar o ambiente, a fim de, por exemplo, entregar o salão de festas. Mas além disso, a família que se dispõe a receber as outras em suas dependências, sempre fica com alguns gastos extras, tipo gelo, água e outras coisas que teoricamente não representa muito gasto no geral. Mas, vencido o patamar de ter um lugar para fazer o evento, vem a distribuição do que cada família deve trazer para a celebração. Neste momento, alguém faz uma lista e distribui. Começa a briga de foice, sempre é criado um perrengue em função de alguém escolher pouca coisa da lista e outras ficarem com muita coisa. A verdade é que sempre tem os mais espertos que escolhem primeiro o que levar, para ter a opção de escolher a coisa mais em conta. Então, antes de se promover a integração entre as várias famílias, o que há é um desgaste muito grande. Chega no dia da confraternização, todos se cumprimentam de forma efusiva, muito mais pela lembrança do motivo da celebração do que pela participação das pessoas que colaboraram para aquele evento). Reafirmando, isso foi só um parêntesis.  
Treino é treino, jogo é jogo. Lembram-se que já foi dito por aí. Enquanto os meninos estavam namorando, a fase era aquela do treino. Eu imaginando que era sogro e elas imaginando que eram noras. Os encontros eram sempre em ocasiões especiais, normalmente em alguma festa. Eu cheiroso, elas bem arrumadinhas. No máximo uma vez por semana a gente se via. Não era possível, mesmo que alguém quisesse, eu criar atrito com elas ou elas criarem atrito comigo.
Primeiro é preciso fazer uma observação relevante sobre essas duas pessoas que, graças a Deus, foram agregadas à minha família. Apesar de serem irmãs, são duas pessoas tão diferentes que, observando ao longe, seria muito difícil imaginar tratar-se de duas irmãs. Apenas quando se aproxima das duas é que se percebe que elas são irmãs, pois somente observando os valores que elas trazem impregnados em suas personalidades é que se pode chegar à conclusão que foram criadas pelos mesmos pais. Fora isso, em nada se parecem.
Para não ficar aqui desfilando teorias sobre as diferenças mais profundas entre as duas, pois correria o risco de arrumar confusão com elas, gostaria apenas de relatar uma de ordem prática: quando meus netos fazem aniversário, ambas fazem festas memoráveis, impecáveis naquilo que oferece aos convidados, independentemente do tamanho do evento. Gastando pouco ou muito, dependendo das condições presentes, as festas são sempre um primor. Entretanto, as festas da nora mais velha são planejadas com tanta antecedência que, às vezes, ficamos com a sensação de que ela vive planejando festas. Normalmente com meses de antecedência já estão definidos cada detalhe. Onde vai ficar cada um dos enfeites e outros elementos da decoração, onde vai ficar a mesa com o bolo e salgados e tudo o mais que fizer parte da festa, estará definido com uma antecedência espantosa.
Já, a nora mais nova, suas festas são finalizadas nos últimos dias. Com muita frequência na semana da festa ela ainda não sabe como será a decoração. Já presenciei ela definir o tema com menos de um mês de antecedência. É muito comum ela trazer elementos para enfeitar a festa, sem saber como serão usados. Onde vai ficar o bolo, onde vão ficar os salgados, terá balão, de gás ou normal, onde vão ficar os balões, o que será servido. Tudo isso são decisões tomadas nos últimos dias. Quem olha de fora imagina que ela está no meio de uma confusão tão grande que será muito difícil sair uma festa daquele caos.
Porém, quando você vai à festa de uma ou de outra nora, é garantido que você vai participar de um evento único, lindo, que agrada a todos, adultos e crianças. Mas isso dá bem a noção das diferenças existentes entre essas duas meninas que Deus colocou no caminho de nossos filhos. Por outro lado, Deus sempre escreve certo, suas histórias. Não consigo imaginar a minha nora mais velha casada com meu filho mais novo, tampouco imagino minha nora mais nova casada com meu filho mais velho.
Os mais novos começaram a namorar primeiro, mas os mais velhos se casaram antes. É uma sensação muito diferente casar um filho. Não que seja ruim. É apenas diferente. É como se fosse um nascimento ao contrário. Quando o filho nasce, você fica feliz porque ele está chegando para uma vida cheia de possibilidades que você não sabe quais são, mas fará de tudo para que seja exitosa. Quando ele se casa, você fica feliz porque está saindo para uma vida também cheia de possibilidades, que você também não sabe quais são, mas, igualmente, fará tudo para que seja profícua.
Posso considerar meu relacionamento com as minhas noras muito bom. Entretanto, não posso falar que não existem problemas. Eles existem aos montes. Alguns são criados por mim mesmo, outros são criados por elas e outros tantos são criados por falta de conversar sobre o assunto. Lógico, que se perguntar às minhas noras, muitos problemas que eu acho serem causados por elas, elas irão dizer que foram causados por mim e vice-versa.
Quando o primeiro filho do meu filho mais velho nasceu, imaginei que iria estar sempre presente na vida do neto e com esta ideia na cabeça, parece que errei a mão. Pelo menos foi essa a impressão que fiquei quando arrumava um jeito de passar todos os dias na casa deles para ver aquela criança. Não sei se minha nora se sentiu invadida na sua missão de ser mãe, mas ela achou que eu a estava sufocando quando fazia essas minhas visitas diárias. Primeiro ela foi muito sutilmente me dando umas dicas de que eu estava incomodando. Depois, quando ela percebeu que não estava resolvendo, decidiu por reclamar ao meu filho que me falou com todas as letras para eu diminuir a marcação serrada. Quando meu filho me chamou a atenção, fiquei revoltado, mas com o passar do tempo, percebi que ela havia me dado várias dicas e eu não havia percebido.
Após a conversa que tive com meu filho, puxei um pouco o freio de mão nas visitas, mas, mesmo assim, não consegui deixar de fazê-las. Entretanto, procurava fazer essas visitas em horários que minha nora não estivesse em casa. Normalmente ia visitar o neto na parte da manhã, em um horário que ele não estivesse dormindo e eu pudesse interagir com ele. Chamava essas visitas de clandestinas. Na época em que as fazia publiquei no meu blog Netos e Netas, o seguinte post:
De vez em quando faço umas visitas clandestinas ao meu neto. Costumo chamar de visitas clandestinas, mas poderia acrescentar também o adjetivo roubadas, pois são visitas que faço na surdina. Não tem dia, nem hora e ninguém sabe com antecedência. Nem todas as pessoas que convivem comigo são a favor dessas visitas, mas uma coisa garanto, não existe coisa melhor no mundo. É uma graça divina perceber que meu neto gosta tanto quanto eu dessas visitas. É o nirvana quando eu chego à sua casa e ele vem ao meu encontro com aquele sorriso do tamanho do mundo. Embora ele ainda não pronuncie palavras, o seu olhar e seu comportamento me dizem coisas que somente o coração é capaz de perceber. É nesse momento que a gente se dá por inteiro um ao outro. As únicas amarras nesses momentos são as convenções estabelecidas tacitamente entre seus pais e eu. Fora isso é só alegria. Eu sou cavalo, ele, cavaleiro. Sou bandido, ele, herói. Sou nada, ele, tudo. Vezes sou pouco, ele é muito, outras sou muito, ele é pouco. São momentos tão absolutamente ternos que nem sempre é possível perceber quem sou eu e quem é ele. Só quem vive essa experiência é capaz de entender do que estou falando. Que Deus nos conserve assim.
 Distante no tempo agora, consigo saber o que causou tudo isso. Meu “genro”, quando nasceu a minha neta mais velha, dizia que ele tinha me dado de presente uma personnal neta. Ele dizia isso porque imaginava que ela serviria como um treino para eu aprender a ser avô. De fato, um pouco do que eu sei sobre ser avô, eu devo a esse treinamento intensivo que fiz com a neta mais velha. Entretanto, meu relacionamento com minha neta me deixou mal-acostumado. Quando ela nasceu sua mãe tinha uma loja de bijuteria no centro da cidade e minha neta ficava o dia todo por lá. Com isso, me acostumei a vê-la todos os dias, pois sempre arrumava um jeito de passar na loja e brincava nem que fosse meia-hora com ela. Ou seja, tinha acesso ilimitado à minha neta.
Quando o neto nasceu, quatro anos depois, minhas visitas à neta mais velha já não era tão amiúde, pois sua mãe não possuía mais a loja e ir à sua casa requeria uma operação mais elaborada. Mas pensei que o meu acesso ao neto recém-nascido seria igual àquele que tinha com a neta mais velha. Ledo engano. Foi uma fase terrível para mim que imaginava grudar pra valer no neto.  Certa feita cheguei a temer que meu neto seria afastado de mim por completo, foi num período em que só me era concedido encontrá-lo nos finais de semana, quando a gente se reunia para o almoço do sábado. Devo confessar que nesta fase, se não fosse a neta mais velha, acho que teria enlouquecido. Chegou a um nível de tensão tão intenso que decidi sentar e escrever uma carta para meu filho e minha nora. No final, acabou ficando uma carta muito pesada e eu decidi não entregar esses escritos a eles. Vou colocar aqui alguns trechos menos forte para se ter noção de como eu me senti na época.
... Apesar disso, tenho o firme propósito em desistir dessas visitas matinais. Vai ser difícil, eu sei. Nesses dias tenho exercitado isso e estou sentindo o quanto isso faz falta para mim. Imagino que para o meu neto também. Sei que com o passar do tempo essa falta passa. Afinal existem muitos avós que vivem sem fazer visitas aos netos e muitos netos que vivem sem receber visitas dos avós.
A decisão de não participar dos almoços de domingo na casa de vocês eu já havia tomado, pois considerei que esses almoços são da família da tua esposa. Já concordei também que nos eventos mais ampliados o meu contato com meu neto deve ser mais restrito, para que todos possam curti-lo. Analisando bem de perto, até o almoço de sábado fica, de certa forma, enquadrado naqueles eventos ampliados, já que são duas horas que todos nós queremos curtir este ser absolutamente carismático que vocês estão educando de uma forma espetacular. Filtrando tudo, então, não sobrará muito tempo para que eu e o meu neto possamos ter um relacionamento mais profícuo. Então, ficarei a mercês de vocês para proporcionar algum momento em que eu possa exercitar minha paixão por esse meu herói.
... Para encerrar, gostaria de dizer a vocês que continuo absolutamente disponível a vocês três. Qualquer coisa que precisarem, por favor, estalem os dedos. Vocês não sabem quanto eu torço para vocês estalarem os dedos.
Foi mais ou menos nesta mesma época que publiquei também em meu blog outro post que retratava bem o meu estado de espírito. É um pouco longo, mas vou reproduzir aqui. Publiquei com o sugestivo nome de “Conselho aos avós: devaneios, sonhos, desejos e frustrações”.
Já há muito tempo eu pensava em postar aqui alguns conselhos aos avós, mas sempre me faltou disposição. Agora, com o nascimento de mais um neto, imagino que é inadiável, pois é com a chegada de neto que os devaneios dos avôs afloram e podem levá-los, se não tomarem cuidados, a traumas terríveis.
Quando nascem os filhos a gente ousa sonhar uma série de coisas para eles. Ocorre que os sonhos que você tem para os filhos são um misto de bonança com bem-estar. Bonança, no sentido de o filho ser alguém bem-sucedido na vida e que consiga ser um profissional de sucesso revertido em realização material e financeira. Já o bem-estar a gente coloca no patamar das realizações pessoais traduzida normalmente como felicidade.
Do alto desses sonhos a gente sai a tentar realizá-los. Muitas vezes de forma destrambelhada, dando, não muito raro, valor a coisas que de fato não tem. Mas, em nome dos sonhos, nos cegamos para muitas coisas e vamos levando a vida como se isso fosse tudo na vida. Enfim, conseguimos sobrepor a bonança ao bem-estar e, ao final, quase sempre, a frustração é meio generalizada, já que os pais nem sempre conseguem realizar todos os seus sonhos de bonança para os filhos e aos filhos não é dada a oportunidade de realizar os seus próprios sonhos. 
Quando nascem os netos, as coisas são diferentes. Também existem os sonhos. E como existem! Entretanto, são sonhos diferentes. Você já não precisa sonhar em bonança, basta sonhar bem-estar. Então, é sobre o bem-estar que a gente sonha pra valer. Só que, também aqui, às vezes somos tentados a sonhar errado, pois nem sempre a gente sonha o bem-estar dos netos. De quando em vez nos vemos sonhando no bem-estar nosso e não dos netos.
Assim é, que se faz necessário esses conselhos. Tome alguns cuidados para não se machucar. É amargurante, mesmo nesta idade, descobrir-se frustrado com alguma coisa, mas a frustração pode ser grande ou pequena, dependendo de como você se prepara.
Quando você se sentir tentado a comprar um assento de criança para colocar em seu carro, pensando que a partir daquele momento você terá várias oportunidades de carregar seu neto no carro, pense direito. As oportunidades que você terá para transportar seu neto no seu carro serão tão pequenas que talvez não valha a pena ocupar uma vaga no banco de trás de seu carro com uma cadeirinha de bebê que será usada uma vez a cada dois ou três meses. É muito frequente você encontrar essas cadeirinhas no porta-malas do carro dos avós.
Outra tentação que aparece, é imaginar uma reforma na casa, sobretudo em seu quarto para receber de vez em quando seu neto. Essa tentação acontece porque você imagina ser mais fácil as coisas já estarem mais ou menos arrumadas quando algum neto seu vier dormir em sua casa. Mas a experiência indica que é melhor deixar do jeito que está porque seu neto irá dormir tão pouco em sua casa, que é absolutamente suportável a cada dois ou três meses arrastar cama pra tudo que é lado para acomodar um colchão para algum neto dormir.
Não muito raro também, a gente flexibiliza todos os compromissos nossos com a vã esperança de que vai pintar uma oportunidade inesperada para estar junto de um neto seu. Infelizmente a esperança continua vã, pois na verdade dura e crua, o inesperado nunca acontece. Então, quando você for tentado a flexibilizar seus compromissos para estar com seu neto, pense bem antes de fazer. E isso vale para tudo. Sabe aquele desejo seu de curtir uma missa junto com o seu neto. Esqueça. Mesmo que você passe a ir à missa em horário que seu neto pode ir, você não terá a companhia dele.
Todos esses devaneios que os avós têm, é imaginando o bem-estar deles e dos netos. Aquele bem-estar que se traduz em uma vivência saudável e uma aproximação profícua entre os dois. Lógico que não é só o neto que tem benefício nesta relação. Talvez até os avós tenham mais benefícios que os netos. Mas, em nenhum momento os avós pensam em bonança, já que isso deve ser sempre uma função dos pais. Mas os devaneios estão carregados de bem-estar.
Entretanto, infelizmente, os filhos, as filhas, as noras e os genros pensam diferente da gente e as coisas não acontecem da maneira como sonhamos. É lógico que eles têm as razões e os motivos deles. Mas isso não tira o nosso direito de espernear.
Além de espernear existem coisas que podemos fazer. Por exemplo: se nossos sonhos são no sentido de proporcionar um bem-estar para nós e nossos netos, então devemos aproveitar o escasso tempo que ficamos juntos deles para fazer esses momentos inesquecíveis para ambos. Nem sempre é fácil, nem sempre os pais deles entendem o que você pretende fazer, mas vale a pena tentar e é muito bom quando você percebe que pelo menos está no caminho certo.
A única coisa que não nos cabe fazer é agir de forma diferente daquela permitida pelos pais do seu neto. Isso, com certeza, só traria prejuízos aos netos e não garante que torne os avós felizes. Então, como último conselho de um avô que delira de vez em quando, é: apesar de, boa parte das vezes, você não concordar com o tipo de relação que seus filhos (filhos, filhas, noras e genros) querem impor a você e seus netos, nunca faça com seus netos alguma coisa que seus filhos não concordam. O resultado disso é uma relação harmônica entre você e seus filhos, que, em última análise se transforma em benefício aos netos que, afinal de contas, é o que todos queremos.
Esse foi o pior momento no relacionamento com a minha nora. Quando escrevi aquela carta, que não foi entregue, fiquei mesmo um pouco afastado do meu neto mais velho. Foi uma fase tensa que passou e só teve algumas intercorrências no nascimento do segundo neto. Mas hoje tudo está muito bem resolvido e nossa convivência é a mais cordial possível, não tenho nenhuma restrição de acesso aos meus netos. Aliás, um dos programas favoritos meu e dos netos é quando eles vêm dormir aqui em casa às sextas-feiras à noite e só vão embora no sábado depois do almoço, quando todos se reúnem e é uma efusão de felicidade, depois irei explorar um pouco mais esse convívio nos finais de semana.
Esse fato narrado me parece que não deixou marcas em mim, só narrei aqui para que, quem ler esse livro não pensar que ser avô é só alegria. Às vezes tem algum dissabor e é preciso ter paciência e não desistir dos netos, pois vale a pena lutar para manter a relação com esses seres maravilhosos. E é bom ficar claro também que este foi o último perrengue que tive com qualquer uma das noras. Acho que esses episódios serviram para eu amadurecer como sogro e, de certa forma, me refinou como avô. Hoje me considero um sogro mais seguro e um avô bem mais fácil de conviver do que era antes de tudo isso acontecer.
A conclusão que tiro disso tudo, então, é que quando chegou a vez de deixar os treinos e entrar no jogo pra valer, não fui muito bem-sucedido. Pisei na bola feio. Não soube lidar com a minha nora mais velha, mesmo que, teoricamente tivesse experiência em lidar com ela, pelo fato de já ter sido o líder de uma equipe na qual ela participava profissionalmente. Mas isso não adiantou nada. Quando coloco as coisas em perspectiva e acompanho o presente, fica nítido pra mim que as intransigências dela tinham apenas um motivo: o bem de seus filhos que, em última análise significava que tudo o que eu passei é porque meu filho mais velho arrumou uma mãe maravilhosa para meus dois primeiros netos homens.
Mas tudo isso ficou lá no passado e espero que fique assim. Bem guardadinho lá e, se algum dia, a gente revisitar aqueles acontecimentos seja apenas para tomar como parâmetro para que não se cometa os mesmos erros.
Quando tive que exercer essa mesma função com a nora mais nova, a mais velha já havia feito o trabalho mais pesado e, parece que a mais nova não enfrentou graves problemas comigo. Ou seja, eu já estava bem adiantado no aprendizado para ser sogro e isso facilitou muito as coisas. Junte-se a isso o fato de a nora mais nova ter um temperamento diferente e formou a química perfeita para que não houvesse sobressaltos nesta segunda experiência de ser sogro. Para se ter uma ideia de como as coisas vão evoluindo, minha primeira neta foi dormir em casa a primeira vez quando tinha mais de três anos, o neto mais velho dormiu com mais de dois anos e a neta mais nova dormiu a primeira vez em casa com menos de um ano. Lógico que isso tem a ver com o que pensa cada uma das mães sobre as crianças dormirem fora de casa, mas também dá uma ideia de como a gente vai evoluindo como avô e como sogro. Pois, se como sogro não conseguíssemos algum progresso, essas primeiras dormidas iriam aumentando a idade mínima, ou nem acontecendo. Por isso, afirmo que as experiências todas que vivi foram me fazendo crescer mais nas relações familiares.
Apesar disso, a gente nunca está maduro o suficiente para agir sempre da forma necessária. Aconteceu um fato bem recentemente que serviu para me provar o quanto ainda tenho que caminhar nesse aprendizado de ser avô.
Todos meus netos são muito ligados em tecnologias e é muito raro vê-los sem um tablet ou um smartphone nas mãos, jogando em rede ou sozinhos ou assistindo algum vídeo. Ou seja, acesso à internet para eles é tão essencial quanto o sangue que corre em suas veias. Para se ter ideia do quanto isso significa para eles, não muito raro, tenho que colocar, enquanto dirijo, meu celular roteando os equipamentos deles, para eles continuarem jogando em seus tablets. Quando eles não estão com seus aparelhos, deixo meu smartphone mostrando clips de músicas que eles vão escolhendo, um de cada vez. Como o carro é grande e todos querem ouvir, tenho que conectar o celular ao som do carro. Assim, o percurso passa a ser uma viagem musical com os mais variados tipos de músicas, já que cada um gosta de um tipo diferente.
Essa fixação em tecnologias é um grande problema e uma grande solução. Problema, no sentido de que deve fazer mal para as crianças ficarem tanto tempo assim conectadas jogando alguma coisa ou vendo vídeos que, na maioria das vezes, são alienantes. Solução, a partir do momento em que a gente tem uma opção pronta para distrair todo mundo sem que necessite de qualquer investimento, a não ser uma infraestrutura de rede razoável, que consiga dar vazão às necessidades de um exército de netos.
Dentre as audiências dadas pelos netos, os canais ganham de lavada. Eles consomem muitos canais. Dois deles curtem esta modalidade intensamente e, é claro, sonham em ter seus próprios canais. Certo dia, sem ter muito o que fazer numa noite chuvosa em casa, aceitei o desafio desses dois netos para criar um canal para eles e dei todo o suporte até o canal ficar pronto e hospedado no youtube. Depois disso fui o cameraman para eles gravarem o vídeo de estreia e gravamos mais um. Subi esses vídeos para o canal deles e eles se colocaram na expectativa da audiência. Nunca tinha visto aqueles dois tão excitados como estavam naquela noite. Era interessante vê-los conversando sobre quais os próximos vídeos que seriam produzidos, quais os assuntos que iriam tratar. Como um deles gosta muito de futebol e o outro nem tanto, o que gosta de futebol fez a proposta para o outro de publicar um vídeo de futebol e depois nunca mais teria outro desse assunto. Só sei que aquele entusiasmo contagiava todo mundo. Mas a noite se findou e não se produziu mais nenhum vídeo. Na manhã seguinte, como estava programado que iríamos fazer um bingo, os dois concordaram que iriam gravar um vídeo jogando bingo para postar no canal. O vídeo foi gravado, mas acabou também não sendo publicado.
Quando seus pais chegaram para o almoço de sábado, pois é nesse dia que fazemos o encontro familiar, cada um deles falou todo empolgado para seus pais sobre a novidade. Por parte de um dos casais de pais houve uma reação normal. Ou seja, nem ficaram muito empolgados, tampouco incentivaram em demasiado a iniciativa. Já outro casal de pais teve uma reação que mais parecia uma ducha de água fria na grande realização daqueles meninos. Quando percebi aquela reação, descobri que o canal dos meninos havia subido no telhado. À noite, pela conversa havida entre mim e meu filho, vi que o sonho desses dois netos meus havia feito água.
As alegações foram as mais diversas, mas, enfim, eles são os pais e devem saber bem o que escolheram para seus filhos. Os argumentos giravam em torno da exposição excessiva nas redes sociais, desaconselhada por especialistas. Não concordo com isso, mas critérios são critérios. O pior seria não ter critério nenhum. A minha opinião é um pouco diferente da dos especialistas, pois hoje em dia o mundo está dividido em dois grupos: os influenciadores digitais e os influenciados digitais. Proibir o filho de possuir um canal é deixá-lo confortavelmente instalados na condição passiva de influenciado. Ao passo que ao deixá-lo possuir um canal você está colocando-o na posição ativa de influenciador. Ser influenciador ou influenciado não faz a mínima diferença, mas ser ativo ou passivo com relação ao mundo digital, faz toda a diferença. É a passividade que leva a pessoa a ser sedentária, submissa e resignada. Nada quero, nada posso e nada muda.
Mas, enfim, não tinha muito o que fazer além de ajudar meus netos abortarem aquele sonho de ser um youtuber. Acho que foi a atitude mais correta que tomei, depois de analisar melhor a questão descobri que estava cometendo um desatino para o padrão de conduta que sempre procurei preservar. E isso levou a me penitenciar diante do ocorrido.
Sempre que tenho a oportunidade de falar para pais sobre a educação dos filhos, lembro a questão do exemplo. Vocês já viram a discussão sobre isso aí pra cima. E, nesta questão da montagem do canal, movido pelo anseio de realizar o desejo dos netos, desobedeci a uma norma imposta pelo provedor de conteúdo que só permite que pessoas com mais de treze anos defina um canal em seus domínios. Para conseguir isso tive que falsear a idade deles e, inocentemente, coloquei o dia do meu nascimento como data de nascimento deles. Embora eles nem faziam noção de que isso fora feito, ainda assim me corrompi para conseguir montar o canal deles. Péssimo exemplo que só fui tomar consciência da gravidade quando me pus a refletir depois que os pais de um dos netos decidiram por não o permitir fazer parte de um canal.
 Esse acho que é um caso daqueles que ilustra bem o quanto a gente erra tentando acertar. Parece que na hora de fazer as coisas não se mede as consequências dos nossos atos. Colocando em outra perspectiva: como poderia desobedecer a uma norma, num ato de corrupção explícito, apenas para atingir um objetivo? Com que moral um dia, poderia chegar para meus netos e pedir a eles obediência das leis se eu não as obedeço. Será que esta regra vale apenas para eles?

Então, como disse por aí, ainda estou num processo de aprendizagem em todas as áreas da minha vida. Enquanto o palco de atuação, nos vários perfis que tenho, estiver montado, estarei aprendendo alguma coisa. Sei, portanto, que ainda não sou o sogro que deveria ser, mas vou tentando aprender a sê-lo e, mais ainda, torcendo para atingir esse estado da arte. Oxalá alcance tão grande façanha.



APRENDENDO A ...



... SER AVÔ


Apesar de não atualizá-lo com a frequência que eu gostaria, mantenho um blog, iniciado em 2010, chamado Netos e Netas, hospedado com o endereço http://essesnetosqueridos.blogspot.com/. Na mensagem de abertura eu coloquei o seguinte texto:
Como tive dois filhos homens, sempre sonhei que teria uma neta. Isso aconteceu em 2005, quando nasceu a minha neta mais velha. Essa menina chegou e deu um sentido diferente para minha vida. Era essa pessoinha que me fazia condicionar minha agenda diária para conseguir um tempinho para passar na loja de sua mãe uma vez por dia para vê-la. Assim fomos levando a coisa. Em 2009 nasceu o meu neto mais velho, que, de novo, causou uma revolução na minha vida. Mais uma vez apareceu uma pessoinha capaz de definir meus compromissos diários de forma que pudesse vê-lo.

Neste blog costumo publicar apenas textos meus, incluindo poesias que fiz para meus netos. Mas num determinado dia recebi uma definição de avô que não resisti e colei, pois achei de uma perfeição incrível como uma criança de oito anos consegue enxergar com tanta sutileza esse estágio das nossas vidas. Vou reproduzir aqui, sem citar o nome do autor, porque não o tenho, para todos verem que tenho razão.

Redação de uma menina de 8 anos (adaptada), publicada no Jornal do Cartaxo, em Florianópolis. “Um avô é um homem que não tem filhos, por isso gosta dos filhos dos outros.  Os avôs não têm nada para fazer, a não ser estarem ali. Quando nos levam a passear, andam devagar e não pisam nas flores bonitas e nem nas lagartas. Nunca dizem: some daqui!, vai dormir!, agora não!, vai pro quarto pensar! Normalmente são gordos, mas mesmo assim conseguem abotoar os nossos sapatos.  Sabem sempre o que a gente quer. Só eles sabem como ninguém, a comida que a gente quer comer. Os avôs usam óculos e, às vezes, até conseguem tirar os dentes. Os avôs não precisam ir ao cabeleireiro, pois são carecas ou estão sempre com os cabelos arrumadinhos. Quando nos contam histórias nunca pulam partes e não se importam de contar a mesma história várias vezes. Os avôs são as únicas pessoas grandes que sempre têm tempo para nós. Não são tão fracos como dizem, apesar de morrerem mais vezes do que nós. Todas as pessoas devem fazer o possível para ter um avô, ainda mais se não tiverem televisão”.

Parece-me uma definição precisa, com uma percepção ímpar do que é ser avô. Olhando meus netos tenho a impressão que é exatamente desta forma que eles pensam sobre nós. Quantas vezes em nossas brincadeiras um neto vai para o chão brincar e pede para que a gente faça a mesma coisa. Quando conseguimos nos agachar e chegar ao nível deles, eles se levantam abruptamente e já exige a presença nossa em outra posição, de pé ou mesmo sentado no chão, mas em outro lugar, que envolve uma manobra de nos levantarmos de um lugar, agacharmos em outro, ou ir se arrastando até chegar no novo local. Ou seja, uma aventura que o avô leva séculos para executar, ao neto não significa nada, pois o avô está ali só para ele, só para brincar com ele, seja lá do que for.
Mas a experiência de aprender a ser avô não tem igual no mundo. Tudo o que a gente passa até chegar nesta fase da vida, fica no chinelo diante da imensidão dessa missão. Não conheço nada no mundo que nos cause mais a sensação de conforto do que a de estar junto dos netos, dormindo com os netos, viajando com os netos, olhando para os netos, convivendo com os netos. Acho que Deus foi generoso com o ser humano quando deixou esta possibilidade para nós.
Não se pode ter a ilusão de que cumprir esta missão é coisa fácil. Mil vezes não. Requer muito mais que uma habilidade. Requer uma constelação delas que se a gente for relacioná-las é necessário escrever uma enciclopédia contendo todas as especialidades ou as áreas do conhecimento humano que os avós precisam saber para conseguir levar adiante o aprendizado de ser um avô minimamente antenado com os netos.
As situações do dia a dia te colocam diante de fatos tão inusitado que muitas são as ocasiões em que, depois da ocorrência, você se pergunta, como foi possível sair daquilo. Tente imaginar você no meio do nada, ou no meio de todos e um neto seu pede para fazer uma das necessidades fisiológicas, o que fazer? Vocês verão mais adiante as saias justas em que já fui colocado e, para deleite dos meus netos, tive que me virar para dar a solução que mais os agradava.

Nas próximas páginas tentarei narrar algumas das muitas habilidades que um ser humano precisa ter para alcançar o privilégio de ser chamado de avô. Lógico que o espaço seria pouco para descrever todas as experiências vividas, mas selecionei algumas habilidades e dentro dessas, selecionei alguns eventos para ilustrar a narrativa.


APRENDENDO A...

... SER MÉDICO-AVÔ

Embora uma das muitas profissões que tive, tenha sido “prático de farmácia”, medicina definitivamente não é a minha praia. Desde quando deixei de ser prático, o meu contato com os assuntos correlatos era apenas para aplicar injeção nos meus filhos, fazer um ou outro curativo neles e nada mais que isso. Depois que os filhos cresceram, nem isso eu fazia mais.
Mas aí vem os netos e tudo toma dimensões inimagináveis. Aliás, a própria medicina toma outras dimensões. São muito frequentes as ocasiões em que o problema maior é um ralado no joelho, um espinho no pé, uma picada de abelha ou uma canela na borda da piscina. O problema ganha dimensões estratosféricas e ultrapassa a possibilidade de um adulto entender o que se passa com esses seres que Deus nos presenteou na velhice.
Uma picada de abelha toma as proporções de uma guerra com armas atômicas. Aquela abelha tem a capacidade de provocar nos netos uma sensação de que o mundo está acabando numa hecatombe tão completa que jamais o universo será o mesmo depois daquilo. O mundo desmorona quando um neto seu sofre uma picada de abelha. Se existir um ferrão, então, aí a hecatombe é para as próximas gerações até o fim dos tempos.
Diante da possibilidade de nossos netos passarem por essa tragédia toda, o bom seria que ela nunca acontecesse. Entretanto, para desespero dos avôs, elas acontecem e é preciso estar preparado para isso. Sobretudo para a primeira vez que a tragédia acontecer, pois muitas irão ocorrer durante sua convivência com os netos.
Mas, como se preparar para tanto? Existe uma fórmula para isso? Primeiro, não é possível a preparação, segundo, é claro que não existe uma fórmula pronta. Aqui entra a porção saia-justa que falava antes. Cada uma dessas situações nos coloca problemas muitas vezes sem solução lógica. Vejam bem, não é que não se deve agir com lógica e racionalidade para cuidar dos netos. Mas isso não resolve, os problemas ocorrem numa camada supranatural. Aquele ser que está ali na sua frente sofrendo os males do mundo porque levou uma picada de abelha, está sofrendo é com a alma e não com o corpo. Senão, como explicar a intensidade daquele choro? Isso só pode ser sofrimento transcendental. Logo, a cura só irá acontecer se existir um tratamento dado coração a coração. A sintonia, então, que deve existir entre você e seu neto tem que ser aquela em que somente será perceptível quando você a enxergar naquele nível que está um pouco acima da razão.
Numa das minhas saídas com meus netos, minha neta mais nova estava feliz da vida, correndo pra cá e pra lá de tal forma, que observar aquilo era a comprovação de que o nirvana existe. De repente ela cai e rala o joelho. Aquilo foi uma ducha de água fria sobre toda aquela alegria saltitante. Ela saiu do melhor dos mundos e foi direto para o centro de uma guerra. Chorava tanto que só de ver aquela cena doía muito e, com certeza, doía muito mais na gente do que nela. Ela se levantou, se aproximou de mim, sofrendo aquele desabar do mundo sobre sua cabeça, eu a coloquei no colo, encostei seu coração no meu e a apertei junto ao peito. Nesse momento entrei nos escombros da explosão que ela acabara de sofrer. Ali, assim, agarradinhos, eu sentindo o pulsar do seu coração, percebendo as lágrimas escorrerem de seus lindos olhinhos, mas eu não tinha a menor ideia do que fazer. Aliás, sem poder fazer nada. Naquele momento, mesmo que tivesse à minha disposição uma ambulância com todos os recursos para tratar de qualquer ferimento físico, ainda assim não seria suficiente para resolver o problema. O ferimento não era físico. Era de outra ordem.
Uma canção muito bonita que minha neta vive cantarolando, diz em um de seus versos que “um joelho ralado dói bem menos que um coração partido”. Quando a minha neta estava ali no aconchego do meu colo, que a gente sentia um o pulsar do coração do outro, me lembrei dessa canção e comecei bem baixinho cantarolar apenas esse verso da letra. Devagarinho seu choro foi se transformando em soluço, seu soluço foi se transformando em silêncio e de repente ela estava repetindo comigo essa parte da música. Com certeza uma criança de três anos não consegue entender qual o sentido que foi dado a “coração partido” na canção, mas, era nítido que no momento anterior àquele sorriso penetrante que minha neta me deu, ela estava com o coração partido por estar transitando por escombros de uma batalha que ela travava consigo mesma. Muitos são os fatores que levam a isso. Tente imaginar o quanto as pessoas ficam de mau humor quando estão com sono. Imagine você com sono. Normalmente a gente se transforma em outra pessoa. Os adultos normalmente têm consciência disso e não deixam esse estado influenciar no relacionamento, mas uma criança não tem esse filtro. Agora associe um joelho ralado a tudo isso e estão criadas as condições para que seja declarada a maior de todas as guerras mundiais.
Terminada esta intervenção médica ela se recompôs e foi ao encontro dos demais combatentes, que naquela manhã eram dois primos e seu irmão. O joelho ralado não doeu mais, o coração partido agora estava refeito e tudo foi recolocado em seus devidos lugares. É provável que ela nem se lembre mais daquele episódio, mas em suas sinapses sentimentais, com certeza aquele momento tem posição de destaque.
Concluindo, é esse tipo de medicina que os avôs devem praticar, onde a parte física é o que menos conta. O que importa mesmo é a disponibilidade, a atenção e dar toda importância possível a qualquer reclamação mesmo que seja a coisa mais sem sentido que você já ouviu na vida.    

APRENDENDO A...

... SER JUIZ-AVÔ

Se tem uma função que o avô é chamado a exercer a todo instante, essa função é a de ser juiz. Não passa um minuto sequer sem que você seja demandado a tomar uma decisão a favor desse ou daquele neto. Claro que, como todas as decisões judiciais, ao dar uma sentença você agrada apenas à metade dos demandantes. Quem não teve suas pretensões atendidas, jamais achará que foi feito justiça. Se nos tribunais é assim, por que seria diferente nas relações entre avôs e netos?
Quem tem a experiência de conviver com crianças deve saber que elas são dadas a reclamar umas das outras de forma veemente. Quem prestou atenção aí pra cima, percebeu que tenho um neto que, neste quesito, é mestre. Ele não reclama contra os outros apenas quando os outros lhe perturbam. Ele reclama contra os outros sempre que vê algum deles fazendo alguma coisa que ele acha reprovável. Um verdadeiro “x-9”, como eu e o pai dele o chamamos.
Então, um neto chega para você e delata o outro, conta todos os detalhes do delito que o outro está cometendo. Você sabe que aquilo pode estar errado, mas que, se ninguém fica sabendo, não vai alterar nada. Que diferença faz se o neto jogou uma almofada em cima de um armário? Nenhuma. Apenas poderia acontecer de a almofada atingir uma lâmpada, caso o jogador errasse a pontaria. Entretanto, quando o delator vem nos contar isso. Você vai até a cena do crime e percebe que a almofada já foi jogada. Já está sobre o armário. Não machucou ninguém. O jogador não errou a pontaria. Ou seja, aquele ato, que é próprio de uma criança, praticado daquele jeito não fez e não fará mal a ninguém. No entanto, veio um delator e nos relata aquele episódio nefasto, que poderia ter causado um grande estrago na humanidade e que, na visão dele, precisa ser evitado a todo custo para que não coloque mais a humanidade em risco. O que fazer diante disso, então?
Prestem bem atenção no que está acontecendo por aqui. Uma pessoinha praticou um ato que, potencialmente poderia ter causado algum estrago, mas, na prática não causou nenhum dano à toda a humanidade dos netos reunidos na casa do avô. Entretanto, veio um delator e narrou o acontecido para você e, a partir desse momento, você é sabedor de que alguém cometeu um delito em potencial. Se você não der o devido valor à narrativa do “x-9”, você estará, de certa forma, fornecendo ao delator a autorização para praticar aquele ato. Se você der atenção ao ato delitivo, você incentivará os outros a praticar o dedurismo, macartismo, xixnovismo e outros ismos que pode receber o ato de delatar as pessoas. E mais ainda. Se você der ouvidos ao delator, é necessário montar um tribunal de júri para julgar a pendenga.
Eu sempre opto por montar um tribunal para atender esta demanda. Nessas horas entra em ação o avô-juiz. É preciso de plano ver um advogado para o faltoso que precisa ser alguém que presenciou o delito, ouvir as testemunhas, que não pode ser o advogado. Depois de ouvir as testemunhas, deve-se ouvir as partes e prolatar a sentença. Se estiver difícil um advogado para o faltoso, entra em ação a figura do avô-juiz-advogado.
Neste ponto entra a corda bamba. Qualquer escorregão você cai feio e não consegue mais se levantar. Ali, diante de vários olhares sedentos por justiça, como você vai fazer para praticá-la? Se você decidir a favor de um, pode estar passando uma mensagem errada para ele e para os outros. Se você decide a favor de outro, não muda nada, o corolário é o mesmo.
Nesse momento, seria melhor um buraco. Daí a gente entrava nele e só sairia dali quando os ânimos se acalmassem. Mas, não adianta, eles estão ali esperando que você dê uma decisão e não tem como escapar deste cadafalso. Você pronuncia a sentença esperando que aqueles serezinhos tenham compaixão de um avô-babão-juiz, que não sabe o que fazer para agradar a todos. Felizmente os netos são muito mais piedosos que as demais pessoas do mundo. Quem teve a sentença desfavorável, te olha com a cara de quem sabe que você só tomou aquela decisão porque foi pressionado pelas forças ocultas da associação dos outros netos, aqueles que não cometeram o delito que está sendo julgado naquele momento.
O bom de tudo é que isso não dura mais que dez minutos. Aliás, não pode durar mais do que isso, senão não dará tempo de eles cometerem outros delitos, oferecendo a chance de alguém delatar e começar tudo de novo. Quando acontece de novo, a sentença sai contra outro, e outro, e outro, assim numa série de julgamentos, que, ao fim e ao cabo, fazem esses netos sentirem-se importantes por estar recebendo a atenção integral de um avô que adora fazer parte das aventuras desses pequeninos seres que iluminam nossas vidas, mesmo tendo que julgá-los de vez em quando.

APRENDENDO A...

... SER FONOAUDIÓLOGO-AVÔ

Sempre tive muita curiosidade para entender como as crianças ouvem certas palavras que são pronunciadas pelos adultos. Pelo que elas devolvem para nós de vez em quando, é muito difícil decifrar como a mensagem chega até eles.
Um sobrinho da minha esposa quando pequeno sempre que ia falar cavalo, trocava por uma palavra que não existe no português e que a partir de seu lançamento passou a ser utilizada por todas as pessoas que convivia com ele. A palavra era “palau”. Sempre, então, que a gente via um cavalo, chamávamos de palau e assim ficou. Até hoje ainda nos lembramos dessa palavra.
Da mesma forma, este mesmo sobrinho deu o nome de “cabeço” para travesseiro. Sempre que ele ia dormir pedia o cabeço para encostar a cabeça. Essa palavra, com esse significado, acabou por fazer parte do nosso vocabulário.
Depois vieram os filhos e nenhuma palavra nova lembro de ter sido inventada nesta fase, embora tivemos problemas fonoaudiológicos com eles, sobretudo na escrita, trocando “d” por “t”, “p” por “b” e outras coisinhas que algum tempo de tratamento profissional resolveu e, parece, não ficou sequelas.
Quando os netos começaram a nascer o neologismo voltou a atacar e me deparei com algumas palavras novas inventadas pelos netos. A que mais chamou a atenção foi uma palavra tirada não sei de onde, que representava tartaruga. Meu neto mais velho, sempre que via uma tartaruga pela frente, ao vivo ou em algum filme ou desenho, falava que ali estava uma “catatai”. Isso mesmo, catatai. O que isso tem a ver com tartaruga, não faço a menor ideia, mas era assim que ele chamava os coitados dos quelônios.
Entretanto, às vezes a gente é colocado de frente com algumas expressões que saem da cabecinha desses seres iluminados, que a mente criativa deles nos mostra o quanto eles são inatingíveis em seus pensamentos e elucubrações. Noutro dia, estávamos todos, eu e os netos, num passeio de um sábado qualquer, e, nestas ocasiões, as conversas, como sempre, giram em torno de qualquer assunto. Nesse dia, a pauta era um assunto escatológico, pois girava em torno das necessidades fisiológicas, sobretudo a necessidade do número dois mesmo que, trocando em miúdo, girava em torno de cocô. A certa altura o neto número três fala a palavra concordar sem que ninguém estivesse discutindo sobre concordância ou não a cerca de determinado tema. Ninguém entendeu a palavra “concordar” ali, totalmente fora de contexto e, todos queriam saber a explicação. Sem se fazer de rogado o neto deu a resposta esperada por todos. “Concordar de cocô”. Pronto estava tudo explicado. Que bom!
Noutra ocasião, enquanto passeávamos de carro, estávamos discutindo alguma coisa sobre música, pois eles vivem querendo ouvi-las no bluetooth do veículo. O meio para eles ouvirem é o youtube, busca-se alguma música no aplicativo posiciona-se o celular no suporte e assim todos podem assistir. A certa altura, o neto número três, sempre ele, lascou a palavra “repertório”. Aos demais netos aquela palavra passou despercebida. Quem não estivesse ligado, também não iria notar, já que estávamos discutindo sobre música e repertório tem tudo a ver com o assunto. Mas achei estranha a palavra, pois não se encaixava no que se falava na ocasião. Quis saber, então, o que ele queria dizer com repertório. A resposta foi singelamente “vô é que eu quero repetir a música, então é repertório de repetir”. Mais uma vez, tudo explicado e segue o barco.
Com essas e outras a gente tem que exercer a função de fonoaudiólogo, misturado com intérprete de linguagem exóticas e tradutor de palavras inventadas ao sabor do vento. Quando o tempo vai passando e aquelas situações ficam esmaecidas na memória, sobram as lembranças de que um dia tivemos com nossos netos um relacionamento simbiótico capaz de misturar tudo a ponto de ser impossível saber onde termina eu e começa os netos ou onde termina os netos e começa eu. Isso é muito gratificante.

APRENDENDO A...

... SER GUIA TURÍSTICO-AVÔ

Quando se mora em uma grande cidade são muitas as opções para levar crianças a passear. Mas se a cidade que você mora é a capital de um Estado periférico do país, é muito difícil encontrar locais para levar os netos para passear e, nessas condições, é necessário ter muita imaginação para inventar lugares interessantes para as crianças passearem.
Todas as sextas-feiras nossos netos, todos, vêm dormir em casa. É nesse dia que a gente dá um vale night aos filhos, noras e genro. A programação começa já na sexta-feira, mas neste dia já se estabeleceu uma programação padrão. Existe uma sorveteria por aqui que oferece um ambiente com uma quantidade boa de aparelhos e brinquedos que os atrai sobremaneira. É neste local que a gente vai todas as sextas-feiras. Colocamos seis netos no carro e ficamos por lá durante uma hora em que eles se esbanjam e, ao final deste tempo todos vamos tomar um sorvete e depois voltamos pra casa.
Não é nem preciso narrar a logística que é para sair de casa, colocá-los no carro, tirá-los do carro, fazê-los ingressar no espaço onde estão os brinquedos, já que cada um tem que estar portando uma pulseira e, ao final, servir sorvete para todos. Cada um quer um tipo de sorvete diferente, servido de forma diferente com uma embalagem diferente e, pior ainda, é um buffet de sorvete self-service e um avô só, para servir todos. Quando a avó vai junto, já é um alívio. Mas é uma logística complicada para cada um desses momentos.
Sempre tínhamos problema já para levá-los todos para os lugares. Para resolver isso, decidimos que deveríamos comprar um carro maior. Na primeira oportunidade de fazer um upgrade nos carros, optamos por um que tinha sete lugares. Cabe o motorista e mais seis netos. Quando a avó está junto, ela fica com a menor no colo, no banco do meio e assim colocamos oito pessoas no carro. Nunca mais tivemos problema de transporte de netos.
Coloquei como regra levar os netos no sábado de manhã para algum lugar. Isso, porque depois do programa da sexta-feira, a casa fica de pernas pro ar. Quando a gente vai dormir, por volta da meia-noite, parece que passou um furacão na casa. Não existe cômodo que não esteja revirado. Apenas as camas ficam livres para a gente encostar os corpos.
Aliás, na hora de dormir a gente divide a turma por gênero. Eu fico com os quatro meninos no “quarto amarelo” e a avó fica com as meninas no nosso quarto. Quarto amarelo foi o apelido que um dos netos deu para um dos quartos que tinha uma cama e quase sempre protegida por uma colcha meio amarela, meio laranja, meio bege e acabou ficando “quarto amarelo”. Depois tiramos a cama e preparamos o ambiente com tapete de EVA e três colchões que ficam empilhados durante a semana e na sexta-feira são usados para brincar até a hora de dormir, depois o quarto vira uma grande cama para cinco pessoas. É neste quarto que ficam todos os brinquedos dos netos, videogame, gibis e demais coisas necessárias para distrair uma turma do barulho.
Então, quando chega o sábado de manhã a casa está quase inabitável. Coitada da pessoa que nos ajuda na limpeza. Quando eles acordam é outra loucura para servir o café da manhã pra turminha. O cardápio é razoavelmente sossegado: bisnaguinha para comer e achocolatado para beber. Ocorre que, na hora de servir cada um desses dois itens do cardápio é que a coisa pega. Um gosta do achocolatado frio, outro morno, outro quente. A bisnaguinha, um a come pura, outro com doce de leite, outro com requeijão, uns comem duas, outras comem quatro. Ou seja, apenas dois itens no cardápio se transformam em muitas variações.
Depois do café da manhã, faço questão de sair com todos, para que a pessoa que nos ajuda tenha pelo menos umas duas horas para dar uma geral na casa, enquanto a avó prepara o almoço que será servido por volta da uma da tarde para todos, incluindo os netos e os pais. São quatorze pessoas, seis crianças e oito adultos, que se juntam em casa para almoçar no sábado. Logo, é necessário um mínimo de organização da casa para quando os pais dos netos chegarem, ter pelo menos um lugar para pisar. Para que esta organização aconteça é preciso liberar a casa.
Mas, o grande desafio é montar um roteiro para cada sábado de manhã, de forma que seja atraente, pois é importante dar esse tempo para a nossa ajudante limpar a casa. Aqui, tive que colocar toda a minha habilidade de agente de viagem e guia turístico pra fora. Comecei por mapear todas as opções que tinha, e não eram muitas. Aliás, eram pouquíssimas. Imagine onde eu poderia levar um grupo de seis crianças para passear, num sábado de manhã. Haja criatividade!
Dentre as poucas opções, a do kartódromo foi bastante utilizada. Eles gostam muito do local. Quando eu narro isso para as pessoas, a reação normal é pensarem que meus netos gostam muito de corridas. Mas não é bem assim. O kartódromo sempre está em reforma e atrás do paddock sempre tem um morro de areia para construção. Essa é a atração. Isso mesmo, a gente sai do prédio, anda mais ou menos uns cinco quilômetros para chegar no kartódromo, tudo isso para meus netos brincarem num monte de areia. Eles levam tão a sério isso que, com certa frequência, são levados de casa algumas vasilhas para que eles possam brincar melhor com a areia. Quando não levam vasilhas de casa, aproveitam alguma embalagem pet que encontram, para suas brincadeiras. Cansei de trazer para casa garrafas pet cheias de areia, que eles dão algum destino.
Depois que eles brincam até cansar naquelas areias, se sujam muito, vamos para o paddock, que tem uma cantina, cada um compra um salgadinho ou um doce, ou os dois, um suco e vamos embora. Às vezes forço um pouco a barra, e levo eles até o local onde os karts de aluguel ficam estacionados, ali tiro alguma foto deles em posição de pilotar. Esse é o máximo de contato que eles têm com os karts. Ou seja, o negócio deles não é automobilismo e sim construção.
Outro passeio que eles curtem bastante são as visitas que fazemos pela barranca do Rio Madeira. Existe um lugar aqui onde, no início do século vinte, funcionava o complexo de estação e oficinas da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Esse lugar, apesar de meio abandonado, sempre esteve aberto à visitação. Existe uma espécie de porto onde embarcam turistas nos “gaiolas” que fazem um passeio pelo rio. Um passeio que dura em torno de trinta minutos, custa em torno de quinze reais e crianças não pagam. De vez em quando a gente sobe num desses passeios e as crianças se divertem bastante. Entretanto, um passeio que qualquer turista aproveitaria para apreciar aquele mundão de rio, as crianças o utilizam para brincar durante todo o percurso e, lógico, comer alguma coisa que é vendida no bar do “gaiola”.
Neste mesmo ambiente, existe um restaurante flutuante. Na verdade, um barco adaptado que foi colocado perto da barranca do rio que serve refeições e à noite funciona uma espécie boate. Para atingir esse barco/restaurante/boate é necessário atravessar um negócio que eles chamam de ponte, que não passa de umas tábuas jogadas sobre outras tábuas com uns pregos aqui, outros ali. Lá no interior do Paraná a gente chamava isso de pinguela, mas aqui recebeu o nome de ponte e é por esse meio que se tem acesso àquela embarcação. As crianças gostam muito desse barco e sempre que vamos lá eles preferem isso ao passeio de “gaiola”. E o que eles fazem neste barco/restaurante?
O lado de fora do barco, na parte que dá para o Rio Madeira tem uma plataforma pequena onde foram colocadas umas cadeiras e depois de colocadas as cadeiras, sobra em torno de meio metro para as pessoas transitarem. Quando a gente chega no barco, a primeira coisa que eles pedem é para comprar salgadinho, que eles estão com fome. Nunca vi criança ter tanta fome. Sentamo-nos naquela plataforma para que eles comam os seus salgadinhos e descansem um pouco. Isso é só desculpa para eles jogarem comida para os peixes do Rio Madeira. Aquela imensidão de rio, com tantas opções para os peixes se alimentarem e eles pensando que um salgadinho vai chamar a atenção de algum peixe. Um dia, tive e impressão que um dos netos conversando com o outro num desses momentos, disse que gostaria que um boto viesse comer o salgadinho que ele estava jogando na água. Não é nenhum absurdo, já que botos existem aos montes neste rio. Quando a gente faz o passeio nos “gaiolas” é possível ver alguns brincando pelas águas.
Faz parte desse complexo também um porto flutuante onde são embarcadas as pessoas e as mercadorias com destino a várias localidades da Amazônia e mesmo para Manaus. Funciona mais ou menos assim, os barcos, também gaiolas, um pouco maiores que aqueles usados para passeio, estacionam no porto e começam a ser carregados, tanto de pessoas, quanto de mercadorias. Ao redor do porto existem várias agências que vendem passagens para Manaus, Parintins, Humaitá e tantas outras localidades amazônicas. As pessoas compram as passagens e já vão se acomodando nos barcos. Tem vantagem quem chega primeiro, porque pode instalar sua rede em lugar mais bem localizado, já que, como a viagem chega a levar quatro dias, a opção para dormir é apenas a rede. Então, chegar mais cedo pode significar montar a rede em um lugar privilegiado. Nisso, os barcos vão recebendo as pessoas que irão seguir viagem, ao mesmo tempo que as empresas de transportes, que aproveitam esse modal, vão trazendo suas encomendas e os barcos se enchem de tudo que deve ser levado pelo rio afora.
Durante esse período em que as embarcações são carregadas, de pessoas e mercadorias, é uma confusão só. Ao mesmo tempo em que as pessoas estão armando suas redes, mercadorias são colocadas dentro do barco. Às vezes os compartimentos de carga se esgotam e mercadorias são colocadas no mesmo ambiente onde as redes estão sendo instaladas. Quem olha aquilo de fora pensa que não vai dar certo, mas no final tudo se ajeita e, muito tempo depois, a embarcação sai e segue seu destino rio abaixo.
Pois bem, uma das opções de passeio que temos, e que os netos gostam muito, é visitar esse porto flutuante e ajudar a estabelecer o caos no ambiente, pois, além de tudo o que está acontecendo por ali, ainda chega um avô com uma penca de netos para passear. A gente entra nos barcos que estão esperando para zarpar, alguns já com passageiros, outros apenas com mercadorias e transitamos por aquela balburdia toda para o deleite dos netos. Alguns barcos chegam a possuir até três andares, além do porão. Tirando o porão, que nunca ousei deixá-los entrar, vamos em todos os andares e, sempre a transição dos netos de um andar para outro da embarcação é uma função, pois a ligação entre os andares, normalmente é uma escada muito estreita. Quando acho que está na hora de sair, sugiro a eles que a gente compre um din-din, um tipo de picolé em saquinho, para cada um, que sempre é possível comprar de um ambulante que está ali para atender aos passageiros que estão embarcando ou embarcados. Como eles sempre estão com vontade de comer alguma coisa, a ideia de chupar um din-din é aceita por todos, faz-se uma pausa para isso e vamos embora todos exaustos, eu por ter que redobrar a atenção, em função do ambiente inóspito e eles por ter aproveitado até a última gota do passeio.
Entretanto, nenhum outro passeio atrai tanto os netos quanto passear de ônibus. Para se ter ideia de como essa atividade atrai a moçada, tenho um neto que troca qualquer programa por um tablet. Sempre que vamos fazer um passeio, gastamos um bom tempo para convencê-lo a nos acompanhar. Porém, quando se trata de andar de ônibus, é o primeiro que fica pronto para sair. A atividade é relativamente simples: você entra em um determinado ônibus, vai até o ponto final e volta. O problema é operacionalizar essa atividade.
Quando me ocorreu esta ideia, imaginei que deveria primeiro testar com poucos netos. Numa manhã de sábado, estava com dois deles e decidi fazer a experiência. Acho que nenhum dos dois havia andado de ônibus urbano, por isso a missão de convencê-los não foi tão difícil, eles ficaram excitados com a ideia.
Saímos de casa e ficamos em torno de trinta minutos na parada esperando um ônibus passar. Qualquer um servia, já que não tínhamos destino certo e a ideia era ir até o ponto final e voltar. Quando chegou o “busão” entramos e eu não sabia como proceder para pagar, quanto custava, se os meninos tinham que pagar etc. Resolvidas essas questões burocráticas, os meninos passaram por baixo da catraca, paguei apenas a minha passagem, nos instalamos nos bancos, àquela altura de uma manhã de sábado, vazios, e iniciamos nossa aventura.
A minha ideia inicial era dar um “balão”, como se diz, quando o ônibus dá uma volta completa em seu itinerário, e depois descer no mesmo ponto em que havíamos iniciado a viagem. Entretanto, a certa altura, um dos netos me falou que estava com vontade de fazer xixi. O que fazer? Todos sabem que nos ônibus urbanos não há banheiro. Tinha que resolver o problema e propus descermos do ônibus para procurar um lugar apropriado. Assim que terminamos de descer, avistei um poste de eletricidade, há uns dois passos, sugeri a eles que fizessem xixi no pé daquele poste. Claro que eles aceitaram de pronto e acharam aquilo o “maior legal” como diriam os paulistanos.
Assim foi a nossa estreia num dos passeios que acabou sendo eleito por todos o melhor. Sempre que tenho alguma dúvida para preencher a manhã de sábado de meus netos, sugiro o passeio de ônibus e eles curtem bastante. Com o tempo a gente vai adquirindo experiência e já leva coisas para comer dentro do ônibus e isso, na maioria das vezes, envolve uma passada no supermercado para cada um comprar o que vai levar para o “picnic” itinerante. A bagunça já começa no supermercado, pois é um bando de netos fazendo compra de salgado, doces e sucos para viajar de ônibus.
Outro episódio envolvendo vontade de fazer xixi, aconteceu dentro de casa mesmo. Estávamos reformando um dos banheiros do nosso apartamento e só estava disponível o banheiro da suíte. Nesta noite estavam os dois netos mais novos. Ocorre que a neta menor já estava dormindo com a avó e deu vontade de fazer xixi no neto. Para resolver o problema, peguei uma garrafa pet de água mineral que estava vazia e ofereci ao meu neto para que fizesse xixi nela. Ele fez, achou aquilo o “top das galáxias”, segundo o dialeto deles, e ficou comentando aquilo durante muitos dias.
Aquilo foi a sensação do neto número cinco por muito tempo. Seu pai narrou que ele lembrava do fato várias vezes ao dia. Ou seja, um ato quase banal, torna-se um acontecimento para esses seres que temos o prazer de conviver e que ficarão marcado indelevelmente em suas mentes e corações para toda a vida.
Minha experiência como guia turístico tem sido uma das mais agradáveis. Ninguém sabe o que é, por exemplo, você sair de ônibus urbano com uma galera e interagir com eles durante uma viagem cheia de novidades. No dia a dia eles sempre andam pela cidade, para ir à escola, à natação, à aula de inglês ou outras atividades. Entretanto, eles sempre andam de carro, praticamente ao nível do chão. De ônibus eles têm uma outra perspectiva de visão. Enxergam as coisas de cima e isso faz toda a diferença. Sob este ponto de vista, lembra muito “Sociedade de poetas mortos”, com Robin Williams, na cena clássica em que os alunos sobem nas carteiras e passam a enxergar o ambiente diário deles sob outra perspectiva. Acho que isso que as viagens de ônibus causam nesses queridos seres.
Eu, como testemunha ocular desta experiência vivida por eles, não poderia sentir mais recompensado do que sou e agradeço muito a Deus de me permitir chegar nesta idade, tendo forças e meios de poder curtir isso.

APRENDENDO A...

... SER ADVOGADO-AVÔ

Hoje, como aposentado, decidi por abraçar a profissão de advogado. Sonho antigo esse, mas, como na cidade onde tive a chance de fazer a primeira faculdade não tinha o curso de direito, decidi por fazer ciências econômicas. Como economista, consegui entrar numa carreira de estado, numa função que exerci até a aposentadoria. Enquanto estive nesta carreira foi-me possível fazer o curso de direito e me tornei bacharel, aprovado no exame da ordem, congelei a aprovação, pois minha função pública não permitia que exercesse a advocacia.
Aposentado, então, não existia mais impedimento para eu exercer esta profissão que sempre sonhei em seguir. Assim, me lancei em mais um desafio da minha vida. Trocar de profissão, é a quarta vez que ocorre em minha vida. Na minha tenra infância eu trabalhei na casa de uma família como pajem de criança. Foi o meu primeiro emprego formal que tive fora de casa. Depois vieram: balconista de farmácia e técnico em informática, onde exerci várias funções, de operador de computador a gerente de CPD. Essas duas foram narradas com mais detalhes aí pra cima. Depois disso, entrei numa carreira de funcionário e agora advogado.
Nos dias que precederam a minha entrada definitivamente nessa nova profissão, tive uma demonstração de como a atividade de operador de direito é importante. Um dos meus netos me fez ver que sempre tem alguém precisando de um advogado.
Em um determinado dia da semana, o meu filho mais velho costuma almoçar comigo e minha esposa, já que é um dia que a diarista está em casa e é uma chance de ele e seus filhos não comerem comidas compradas em restaurantes.
Embora, muito antes que eu dedicasse oficialmente à carreira de advogado, tive que exercer essa profissão como meio de sobrevivência no emaranhado de situações que meus netos me colocam sempre que tem mais de um envolvido em alguma atividade. Sempre tive que respeitar o sacrossanto direito que todas as pessoas têm a uma defesa justa e eficaz. Embora isso, entretanto, foi num desses almoços de meio de semana que um dos meus netos me acendeu a luz de que eu não fugiria de exercer oficialmente a profissão.
Estávamos todos almoçando quando meu neto me lançou a pergunta: - vô, você está precisando de “criente”? Assim mesmo, nem falar cliente direito o gaiato sabia, mas já estava interessado em saber se eu estava precisando de alguns. Quando entendi a pergunta, seguiu-se o seguinte diálogo. – Sim, estou precisando muito de cliente, pois estou começando a carreira agora. – É que eu tenho um amigo que o pai dele está precisando de um advogado. – Tá certo, vou te dar um cartão meu e você entrega pra ele. Tá bom? – Aí eu levo pra ele. Detalhe importante, esse meu neto tinha seis anos quando esse diálogo foi travado. Ainda tinha o agravante de que o pai dele também é advogado e ele queria indicar a mim, como advogado do pai do amigo dele. Fiquei muito lisonjeado, mas aquilo me levou a algumas questões interessantes: como serão as conversas entre duas crianças de seis anos, para que uma delas fale para o amiguinho que o pai dele está precisando de um advogado? Por que será que meu neto ignorou seu pai e veio oferecer para apresentar ao seu amiguinho, que tinha um pai que estava precisando de advogado, justamente a mim?
Fiquei sem resposta a essas questões, mas tive a certeza que estava sendo avalizado pelo meu neto para o exercício da profissão. Ter a aprovação de um neto em qualquer atividade é tudo que qualquer avô quer. Aliás, não existe honra maior que essa.
Mas, não abri esse capítulo para falar do exercício de uma profissão formal, que escolhi para exercer depois de me aposentar. Abri esse capítulo para falar sobre o exercício da advocacia no convívio diário com os netos. Não é possível exercer a função de avô se não conseguir ser um bom advogado, pois tem horas que se é demandado para defender os casos mais esdrúxulos trazidos pelos netos e nessas horas você tem que ter em mente que até os mais gaiatos dos seres merecem uma boa defesa. Sempre existe um neto mais gaiato que o outro, sobretudo quando se tem tantos. Aliás, em qualquer grupo de pessoas essa verdade vale.
Noutro dia, um dos meus netos entrou em meu escritório correndo e minha neta menor vinha atrás dele. Ao fechar a porta machucou a mão da minha neta. O irmão da minha neta, viu a irmã dele chorando, avançou sobre aquele que tinha fechado a porta e deu-lhe alguns tapas. De repente estava na minha frente uma neta chorando porque tinha machucado os dedos e outro neto chorando porque tinha levado uns tabefes. Nessas horas a boa psicologia de avô manda que se dê uma bronca genérica em todos, já que não se sabe quem é que tem razão. Os motivos da bronca, com certeza devem ser diferentes, mas, todos devem se sentir repreendidos. Depois de passado o efeito da mordida, deve-se conversar separadamente com cada um, para assoprar mordendo.
Quando entrei na segunda fase da repreensão, aquela em que tinha que assoprar mordendo, o carinha que tinha machucado a mão da minha netinha me veio com um argumento quase irresistível do ponto de vista do direito. Disse ele: - Vô, sei que machuquei minha prima, mas foi sem querer, mas o irmão dela me bateu por querer. Como ir contra um argumento desse. Do ponto de vista do bom direito penal, na ação de um, não havia o dolo, apenas a culpa. Ou seja, não era intenção de machucar a prima, portanto, pode ter havido culpa, já que o machucado se deu por uma ação dele. Mas, por outro lado, não houve dolo, pois a intenção dele não era machucar. Já o outro, que deu uns tabefes no primo, agiu com dolo, pois quis aquele resultado.

Só esclarecendo um pouco aos não iniciados em direito. Quando a legislação fala em culpa, está dizendo que o dano, provocado pela pessoa, não foi de propósito. Então, diz-se que houve a culpa, pois o dano foi causado sem que o praticante do ato tenha a intenção de atingir aquele resultado. Diferentemente do dolo. O ato doloso é aquele que a pessoa assume o risco do dano, que se chama, neste caso, dolo eventual. Por exemplo, quando alguém dirige a duzentos por hora numa rua está assumindo o risco de causar um acidente. Ou quando a pessoa quer o resultado. Neste caso diz-se dolo direto. Por exemplo, quando um condutor vê uma pessoa na calçada e joga o veículo sobre esta pessoa.
Diante disso, o que fazer? Como um pretenso advogado que quero ser, tenho que passar a defender o argumento da culpa e não do dolo, para um, e defender o dolo para outro. Lógico que é preciso defender os dois, pois a ninguém pode ser negada uma defesa competente. Mas, é pisar em ovos. Sobretudo porque o advogado é um avô babão que ama demais as vítimas e os culpados, se é que existem vítimas e culpados nesses imbróglios



O SÉTIMO ELEMENTO

Iniciei esses escritos, falando sobre o sétimo neto que havia acabado de ouvir sua pulsação através de um áudio enviado para minha esposa, numa noite qualquer de dezembro de dois mil e dezessete. Na ocasião foi uma sensação realmente indescritível que senti e, acho, que foi o empurrão que faltava para eu tirar do papel o desejo de escrever alguma coisa sobre a grande experiência de ser avô.
Entretanto, num dos parágrafos da introdução fiz o seguinte comentário “... essa nova filha nos presenteou com a sua gravidez de mais uma criança que seria incluída na nossa galeria de netos e, dali a alguns meses, se tudo acontecesse do jeito que pensávamos, estaria por aí correndo na frente e a gente correndo atrás, como faz com todos eles que ‘poluem’ a nossa casa e nossa vida...”. Fiz uma ressalva importante nesse trecho do livro, de que seria daquela forma se acontecesse do jeito que pensamos.
Pois é. Não saiu do jeito que pensávamos. Durante o período, entre começar a escrever e terminar a missão, percebemos que a gravidez dessa menina, ao invés de nos aproximar, nos distanciou mais. Não conseguimos detectar quem teve mais culpa neste distanciamento, mas sem dúvidas temos nossa dívida por ter contribuído para isso acontecer.
Na nossa cabeça, ou pelo menos na minha, durante a gravidez a gente ia passar por um processo de aproximação natural, quando pais e filhos começam a curtir juntos a espera de um neto, filho. Isso implicaria que aquela menina e seu marido começassem a frequentar mais amiúde nossa casa, se integrando mais com os outros filhos e, assim, quando o novo neto nascesse, todos estivessem convivendo como uma grande família.
Para isso, o casal de novos filhos deveria frequentar os almoços semanais que aconteciam aos sábados. Assim, seriam convidados para frequentar as casas dos outros filhos, as fotografias seriam normalmente inseridas nos porta-retratos da família, até que terminasse numa simbiose familiar como acontece com milhares de famílias que povoam esse mundo.
Desafortunadamente não foi assim que aconteceu. Esse querido casal de “filhos adotivos” preferiu não seguir o roteiro que havíamos escrito e, por mais que tentássemos, decidiu por não participar das celebrações familiares que propusemos a eles.
Foram, então, várias oportunidades perdidas por nós e por eles durante esse período todo. Festividades como dia dos pais, dia das mães, carnavais, natal, ano novo, aniversários diversos, todas aconteceram sem a presença daquele casal e do neto que esperávamos ver integrado ao nosso meio-ambiente familiar.
Hoje a gente tem um relacionamento com este casal, da mesma forma que tínhamos antes da gravidez. Com o filho deles, até arremedamos um tratamento de avós e neto, mas aquele vínculo forte, que conseguimos criar com os outros seis netos, se perdeu no meio de um caminho percorrido por adultos que, com certeza, poderiam proceder de forma diferente e não procederam.
Por isso chego a afirmar que não é possível determinar de quem é a culpa desta ruptura, embora não seja impossível desenvolver inúmeras teorias sobre o fato.
A maior de todas as teorias que desenvolvi e nem sei se a minha esposa, a avó, concorda, é que houve um processo de introspecção, um voltar para dentro do casal para sorver e absorver cada gota desse processo que estava acontecendo com eles. Esse filho deles foi muito aguardado, desejado, esperado e sonhado pelo casal. Quando o sonho estava prestes a ser realizado, eles decidiram que iriam se fechar em copas e curtir esse momento exclusivo deles, como se fosse uma conquista única deles, proporcionada por Deus e, como acontece com muitos casais nessas condições, eles se acharam bastantes.
É uma teoria. Mas pode explicar muito bem o fato de ter acontecido de perdermos um neto de verdade que quase o conquistamos e, a partir de agora, temos que nos contentarmos de sermos perifericamente lembrados de que podemos ser avós desse menino.
Foi difícil aceitar esta situação, mas tive que me acostumar com ela, pois essas coisas não dependem muito, ou quase nada, da gente. Nós nos colocamos à disposição das situações, esperando que elas aconteçam, mas são as forças do universo que podem ser conjugadas para elas acontecerem. No nosso caso, as forças agiram de forma a não entrelaçarem os elos corretos para a concretização de uma ideia muito linda que tivemos.
Assim foi que, ao longo do livro, deixei de mencionar o sétimo neto. Pensei em reescrever o início, mas decidi por deixar daquela forma, pois naquele momento era exatamente aquilo que estava sentindo. Até porque, se, de repente, as coisas mudarem e esse menino decidir me adotar como avô materno dele, saberá que um dia eu já desejei muito isso.

EPÍLOGO
  

Seria necessária uma vida toda para narrar a grande experiência de ser avô, ou melhor, narrar toda a experiência da caminhada no aprendizado de ser avô, pois a caminhada é longa, maravilhosa e difícil. Mas cada centímetro do caminho é uma descoberta de coisas que encantam a alma de qualquer pessoa normal, pois os anormais não saberão o tamanho desta felicidade. Aqueles que acham a experiência de ser avô um porre, com certeza irão prestar contas em algum lugar no futuro, sentirá um vazio na alma que jamais será preenchido.
Cada gesto nesta caminhada tem um significado diferente e mais, ou menos, importante, dependendo do meio-ambiente em que o gesto acontece. Quantas vezes me vi diante de situações em que era necessário que eu me fizesse forte, embora me borrando todo de medo. Noutras era necessário que eu me fizesse fraco, embora com a certeza concreta das pedras. Entretanto, em nenhuma das situações, sejam de fraqueza ou de fortaleza, me deixei levar pelo cenário presente. Sempre tentava enxergar aquilo em perspectiva, pois o que interessava era a obra completa.
Certa feita, fiz alguma coisa para meu neto número cinco que o deixou muito chateado. Uma daquelas atitudes que imediatamente depois que você faz, se arrepende, mas não tem como voltar atrás. Mais um daqueles momentos em que seria muito útil um buraco para você entrar e só sair quando a poeira abaixasse. Mas não tinha o buraco e foi necessário enfrentar a situação. Pedir desculpa simplesmente, não iria adiantar. Esses seres iluminados vivem pedindo desculpas por uma série de coisas que eles fazem e o sentido que o pedido de desculpa tem para eles é um sentido já gasto. Para eles é como pedir licença. Você a pede, a pessoa dá, você passa, segue o caminho, quem deu licença fica lá e a vida segue. Naquele momento era necessário inventar um pedido de desculpa para aquele neto que realmente indicasse a ele que eu estava arrependido do que havia feito.
Chamei-o ao meu colo, abracei-o com a maior ternura que eu poderia demonstrar, apertei-o no meu peito e disse baixinho no seu ouvido: “perdoe o vovô que é um burro”. Naquele momento estava me despindo de todas as possibilidades que me pudessem levar a ser um herói de alguém, como os avôs sempre tentam fazer, para me fazer fraco diante daquele neto magoado e desta fraqueza fazer brotar um sentimento da parte dele de que estava verdadeiramente recebendo um pedido de desculpas legítimo e sem subterfúgio. Aos poucos sua revolta foi passando e as coisas entraram nos eixos.
Certa noite, prestes a sair para um dos passeios que fazemos, eu e os seis netos, pelas sextas-feiras da vida, percebi a roupa que estava vestido e decidi que iria “causar” antes da saída e parti para a execução do plano.
Meu gosto por roupa é bastante simples e sempre que posso, e na maioria das vezes posso, coloco uma camiseta básica, branca ou preta, um calção de academia e assim passo o dia. Quando os netos estão em casa uso esse traje também para dormir e, no dia seguinte, já acordo pronto para sair para onde for necessário.
Acontece que as camisetas vão se acabando e apresentando algumas deformações ou apresentam algum rasgo ou buracos. Não sei por que cargas d’águas, essas camisetas desgastadas com o tempo voltam para a gaveta de camisetas. Lógico que escolho a cor, branca ou preta, e pego a primeira que aparece pela frente. Caso seja uma daquelas que estão avariadas, coloco-a no corpo e não tiro, mesmo que perceba o defeito.
Naquela sexta-feira, vesti uma dessas camisetas e passei a tarde toda com ela, inclusive atendi algumas pessoas no prédio onde moro, na função de síndico. De repente olhei o buraco na camiseta, um pouco acima do umbigo e decidi aplicar o golpe. Chamei minha neta mais nova, mostrei aquele buraco na camiseta e sugeri que ela rasgasse a partir dali. Ela ficou um pouco apreensiva, mas cedeu. Enfiou dois dedinhos lindos, um em cada lado do buraco e iniciou a destruição da camiseta. Quando o buraco estava em mais ou menos uns dez centímetros, ela decidiu que não iria participar daquela aventura sozinha e foi no meu escritório, onde os meninos fazem seu QG e chamou os quatro meninos para participar da destruição da camiseta.
Daquele momento em diante o que se passou foi surpreendentemente impressionante. Os cinco netos, a mais velha preferiu ficar em seu canto, se juntaram em torno de mim e iniciaram a destruição total da camiseta e faziam aquilo com uma satisfação tão grande que parecia que estavam fazendo a maior traquinagem que se tem notícia. De repente estava eu de pé na frente deles imitando o Hulk, quando ele passava pela transformação e suas roupas iam se rasgando.
Mas, nenhum dos netos ficou tão satisfeito com aquilo, como o neto número três. A certa altura ele pegou uma parte da camiseta com as duas mangas e um pedaço de tecido das costas, vestiu aquele trapo e não teve quem conseguisse tirar dele aquele pedaço de malha que vestia. Fomos para nosso passeio, o mesmo que fazemos todas às sextas, uma sorveteria que tem um parquinho com muitos brinquedos. Na volta para casa, acho que por ele ter cutucado muito o nariz, começou a sangrar pelas narinas, ele usou o pedaço de camiseta para estancar o sangue. O sangramento parou e chegamos em casa. A primeira coisa que o neto três fez, foi ir para o tanque a fim de lavar aquele trapo que estava cheio de sangue. No dia seguinte, dia das crianças, ele pegou no varal aquele pedaço de malha, botou no corpo, por cima da camisa e ficou assim o dia todo.
Ou seja, se minha intenção era “causar” pra cima de meus netos, acertei em cheio, sobretudo para minha neta mais nova e para meu neto número três. Uma simples camiseta rasgada causou essa ebulição toda.
São tantas as situações onde somos jogados em sensações tão incríveis que sempre me pergunto se por acaso quando alguém fala que é possível atingir o nirvana, não está falando desta sensação que sentimos quando se está diante dessas situações.
De vez em quando sou escalado para pegar os meus netos mais novos na escola, as atividades da neta mais nova se encerram às 11:45 e as do neto mais novo se encerram ao meio-dia. Quando eu chego para pegar a neta na sala dela, olho pela janelinha da porta e, geralmente, ela está brincando com alguma coisa, naquele momento em que as atividades já se encerraram e eles ficam ali apenas com um entretenimento suficiente para esperar os pais buscarem. Quando a professora/tia me vê na porta e avisa pra minha neta que eu estou ali, ela solta um grito tão esfuziante de “vovô!?!” como se estivéssemos há anos sem nos encontrar e sai correndo em direção à porta. Enquanto isso, eu me curvo o suficiente para receber o abraço que mais parece um bálsamo para nossa alma. Quando nossos corações se encontram, ela me dá um beijo apaixonado e ficamos alguns segundos ali num abraço inebriante. Depois ela pega sua mochila e sai pelo corredor do colégio, em direção à sala do seu irmão, correndo e brincando como se não houvesse amanhã. Todo dia que tenho o privilégio de buscar meus netos na escola, este ritual é sagrado. Tem coisa melhor que isso?
Se fosse possível resumir essas loucuras que acontecem quando a gente é avô, talvez seria necessário compilar um compêndio literário para expressar um pouquinho disso. Fico imaginando o quanto sofre a pessoa que passa por esta vida sem sentir a grandiosidade de ter esses pequenos como combustível para tocar a vida em frente.
Para encerrar esse livro, vou reproduzir o primeiro post que fiz no meu blog, que está no ar desde 2010, lembrando que nessa ocasião eu tinha apenas os dois primeiros netos da série.
Abre aspas. Sempre achei que teria muito prazer na experiência de ser avô. Mas, em hipótese alguma imaginei que seria do jeito que está sendo. É indescritível a sensação quando estamos ao lado de um neto ou neta.
Não consegui, por vários motivos, ter uma vivência com meus avós. Aliás, só conheci um dos quatro. Não sei também, se consegui propiciar uma vivência adequada de meus filhos com seus avós. Acho que não. Apesar disso, sempre pensei em uma relação diferente com os meus netos. Sempre pensei que iria ser para meus netos muito mais que um retrato na gaveta ou uma lembrança de infância. Imaginei ter com eles uma relação onde cada um de nós teria uma importância muito grande na vida do outro. Mas sem dependência de qualquer tipo. Qualquer relação que cause dependência, não faz bem para as pessoas.
Até o momento parece que estou conseguindo levar as coisas da maneira que precisa. Parece que estou conseguindo sair do lugar comum e ser um avô um pouco diferente para meus netos. Isso tem me trazido grandes alegrias e uma felicidade enorme nos momentos em que estou longe deles.
Pode ser devaneio de avô, mas tenho a impressão que o meu relacionamento com os meus netos têm me devolvido uma reciprocidade ímpar. Sinto que não sou só eu que me alegro quando nos encontramos, eles também se apresentam nesses encontros com um brilho diferente em seus olhinhos. Isso é o máximo que qualquer avô pode esperar. É impagável, ver a festa que o Vitor faz, quando eu chego à sua casa para minhas visitas, clandestinas ou não. Também, não menos impagável é, quando decido pegar a Lara na escola, a reação dela de euforia demonstra que ela achou muito bom a gente estar lá.
Alguém pode perguntar como se consegue isso. Na minha opinião, duas maneiras para se chegar ao mesmo resultado. Uma, a mais fácil, é fazer todas as concessões. Ser um avô tradicional, daqueles que “os pais educam, os avós deseducam”. Esta forma, com certeza, encanta qualquer ser humano, imagine uma criança. Quem não gostaria de ter um avô permissivo, que não está preocupado com os limites? A tentação para ser assim é grande. É muito mais fácil dizer “sim” que dizer“não”, para uma criança.
A segunda maneira de atingir este objetivo é manter com a criança uma relação do mesmo nível que ela. Não existem previamente coisas proibidas de serem feitas. O que existem são os limites. Os avôs, e os adultos de um modo geral, deveriam sempre se preocupar com os limites existentes, já que isso as crianças não têm. Para elas tudo é permitido. O papel dos adultos deveria ser apenas de orientar essa permissão que, em última análise, é colocar os limites necessários.
Mas a coisa pega, exatamente quando é necessário determinar um limite. Jamais alguém poderia corrigir uma criança por seus medos e suas neuroses. Brigar com uma criança porque ela está se aproximando da janela do apartamento, simplesmente porque sou acrofóbico, é prestar um desserviço na formação da criança. Entretanto, é muito comum pais, avós, tios e adultos de um modo geral, que tenham alguma ascendência sobre a criança, achar que o limite da criança deve ser os seus (dos adultos) medos. No caso da janela do apartamento, caso seja uma janela com grade, que seja impossível da criança cair, por que brigar com a criança para se afastar? Ao invés de brigar, bastaria conversar. Isso é necessário porque dentro de sua ignorância, a criança não percebe se existe proteção ou não na janela. O ideal é fazer a criança evitar os perigos sem adquirir fobias. Às vezes nós adultos não conseguimos delimitar a fronteira entre impor limites e proibir a criança de viver.
Na minha relação com meus netos, procuro sempre buscar a tênue linha que separa os limites da proibição. Procuro não ultrapassar essa linha. Para ilustrar vou citar um exemplo.
Minha neta, já tem cinco anos. Quando ela tinha, mais ou menos quatro anos e meio, numa das noites que ela dormiu em casa, pediu para fazer algumas experiências no banheiro. Pegava creme dental, shampoo, sabonete líquido e outras coisas que deixo sobre a pia, colocava tudo isso dentro de um copo, misturava tudo, fazia espuma e virava pra lá e pra cá. Via o efeito, deixava sua experiência lá quietinha, assistia um pouco de TV, enquanto a mistura se assentava e assim passou mais de duas horas brincando de alquimista. Depois desse dia sempre que vem aqui, pede para fazer experiência no banheiro.
Na primeira vez que minha neta me pediu para brincar do jeito que brincou nas experiências dela, fiquei em dúvida sobre deixar ou não. Nessas horas vem um monte de coisas na cabeça da gente. Muitas de ordem material. Algumas de ordem psicológicas. Vem a imagem da bagunça que o banheiro vai ficar, o desperdiço de creme dental, sabonete, shampoo etc. Mas, algumas coisas nobres também nos vêm ao pensamento, como o perigo da criança engolir alguma coisa, por exemplo. A bagunça no banheiro é uma questão de esforço físico. O desperdício tem duas questões envolvidas: o gasto, que é desprezível, visto que qualquer outra atividade que uma criança exerce também envolve gasto. Mas tem também a questão de ensinar a criança a não desperdiçar qualquer coisa. Isso é fundamental para a formação de qualquer pessoa. Mas, será que sob a ótica da criança aquela experiência será considerada um desperdício de produtos, ou será considerada um caminhar para a descoberta de uma série de coisa e os produtos utilizadas foi simplesmente um meio para se atingir esse objetivo?
Pesa pra cá, pesa pra lá, minha neta fez a experiência e a repete de vez em quando. Às vezes quando ela dorme em minha casa se lembra da experiência e pede para repeti-la. Lógico que deixo. Ela faz, depois de certo tempo, pede para tomar banho. Às vezes pede para levar a experiência pra terminar durante o banho, o que permitimos também. Ao final da noite dorme como um anjo feliz da vida, sem correr nenhum risco, descobrindo coisas maravilhosas em suas experiências e, penso eu, ela vai vivendo a vida. Sempre que vem à casa do avô, sabe que não existe nada proibido e sim limites a serem respeitados.
Não sei se conseguirei, mas tentarei ser um avô com essa visão, para ter com meus netos uma relação que ficará longe de ser uma lembrança na gaveta ou uma foto impressa na infância. Fecha aspas.
Com isso, imagino que estou deixando uma pequena contribuição para as pessoas que estão verdadeiramente decididos a ser um avô com todas as consequências que isso implica.

Poderia dizer a todos feliz reinado como avô, mas vou lançar um neologismo: feliz avônado.